17 de setembro de 2013

Caridade com o próximo

“(...) que diremos duma teoria errônea da correção fraterna? É o mais difícil dos deveres e a mais obscura das obrigações, e uma teoria errônea a seu respeito causa muito escândalo aos outros e muitas vezes infunde também uma idéia exagerada da nossa própria importância.

Devemos nos lembrar que são poucos os que, em virtude de sua posição ou adiantamento, são de qualquer modo chamados a corrigir os seus irmãos; ainda um menor número é competente para fazê-lo com doçura; e não há ninguém cuja santidade não seja submetida à mais rude provação pelo perfeito cumprimento deste dever.

Ao contrário, os que assumirem com leviandade e por conta própria esta responsabilidade delicada não somente pecam por desobediência, por falta de respeito, por arrogância, por azedume, por presunção e por exagero, como são causa de pecado para os outros, fazendo das coisas de Deus um escândalo e um obstáculo. 

Antes, portanto, de empreender a correção fraternal, verifiquemos se temos vocação para isto, consultando a opinião de outros, tanto quanto a nossa própria. Quando tivermos certeza desta vocação, façamos preceder nossa correção pela oração e a deliberação.

Podemos acrescentar que corrigir o nosso próximo com o fim de edificar uma terceira pessoa é uma prática que raramente evita conseqüências desagradáveis, e só não prejudica nossa humildade por ser uma prova de que não temos esta de todo.

Nessa fase da vida espiritual [isto é, na via purgativa ou dos principiantes], só podemos, a respeito da correção fraternal, reconhecer que ela existe. Mais adiante, Deus no-la confiará e saberemos empregá-la. Se por acaso este dever nos fosse imposto agora, não deveríamos empreendê-lo sem tremer e refletir, esperando que Deus nos ajude com o resto. 


Portanto, guardar-nos-emos de edificar o próximo por estes meios. Vejamos agora o verdadeiro meio de edificá-lo. Podemos fazê-lo de dois modos: pela mortificação de Jesus e pela doçura de Jesus.

Primeiro, pela mortificação de Jesus, isto é: guardar o silêncio sob justas repreensões, abster-nos de julgamentos levianos e superficiais, não insistir pelos nossos direitos de um modo pedante e desagradável, servir aos outros com desinteresse, sem nos queixarmos das dificuldades e dos transtornos que nos causam, e sem exagerarmos, teimosa e tolamente, os pontos onde todos têm direito de guardar sua liberdade; são estes os modos pelos quais devemos praticar a mortificação de Jesus no nosso trato com os outros, e, além da edificação que assim daremos, conseguiremos por essas práticas um grau de perfeição interior acima de toda a nossa previsão. E isso porque quase não há uma inclinação corrupta, orgulho secreto ou dobra de amor próprio que elas não atinjam e purifiquem. 

Entretanto, devemos também edificar pela doçura de Jesus.
Uma resposta branda afugenta a cólera, diz a Escritura.

Palavras boas e meigas, como as de Nosso Senhor, são em si um apostolado.

Ao contrário, palavras irônicas e mordazes, embora tenhamos muitas vezes o direito de empregá-las, ajudam continuamente o demônio em seu trabalho, prejudicam as almas dos outros, infringindo na nossa feridas que não deixam de ser sérias. 

Nossas maneiras devem ser cheias de unção, sendo por si um meio de atrair os outros, e de fazê-los amar o espírito que nos anima.

A frieza, a falta de interesse, um certo e inexplicável ar de superioridade ou mesmo uma afetada condescendência, no entanto, são coisas não raro encontradas em pessoas piedosas. Não dominaram ainda o seu espírito a ponto de empregá-lo graciosamente, ou não apreciam como deviam a delicadeza e a ternura. Não têm, portanto, presente ao espírito uma imagem fiel de Jesus, e dificilmente O podem refletir na sua conduta exterior.

Nosso próprio aspecto deve estar sujeito à Graça.

Quanto mais nos esforçarmos em gravar a imagem de Jesus em nossos corações, tanto mais a Sua doçura transparecerá, sem o sabermos, em nossas feições.

A não ser em tempos de grande dor física (e mesmo isto nem sempre o impede), a paz interior e a harmonia da alma se refletem visivelmente no semblante.

Notemos que no Evangelho de São Marcos, escrito sob o ditado de São Pedro, há freqüentes alusões à expressão e aos gestos de Nosso Senhor; e a história do jovem que não teve coragem de renunciar ao dinheiro, bem como a própria conversão de São Pedro, mostram o que podia a doçura do olhar de nosso Salvador.

Praticamos também esta doçura, louvando todo o bem que descobrirmos nos outros, mesmo quando ele se mistura ao que não é bom.

Quem louva livremente, porém sem extravagância, sempre influi na conversa, e pode empregar sua influência na causa de Deus.

Um espírito crítico, pelo contrário, diverte pela vivacidade ou assusta pela malícia, mas não suaviza, não atrai, não persuade, não governa. 

Devemos exercer também essa doçura cristã, interpretando favoravelmente as ações duvidosas, sem tomarmos todavia atitude forçada ou pouco natural, e sobretudo sem desculparmos pecados positivos. Fora disto há vasto campo de ação para essa amável prática. Nunca a praticareis sem fazerdes obra de missionário pela glória de Deus, ainda que de modo inconsciente.

Devemos guardar-nos também de certos olhares, de umas certas maneiras, e sobretudo de um certo silêncio, que fazem sentir aos outros que interiormente os censuramos. Nada é mais irritante do que isto. Quando o pecado presenciado torna o santo silencioso, há no seu silêncio uma triste doçura, que mostra sua aflição pelo pecador, e que se esforça por amá-lo apesar do pecado. O nosso silêncio crítico, tão contrário à doçura de Jesus, irrita aos outros e os põe na defensiva. Assim arrojam o pouco de Graça que ainda possuíam, endurecendo seus corações contra qualquer Graça possível. Esse silêncio severo, sendo de fato a mais clara das correções fraternas, ninguém o pode exercer sem verificar, pelos métodos que indiquei, se tem ou não o direito de corrigir seu irmão. Ainda assim é o meio mais arriscado de cumprir uma obrigação já por si perigosa.

Faz também parte da doçura de Jesus não permitirmos que nossa piedade ou devoção incomode aos outros. Quando Santa Joana Francisca de Chantal passou a estar sob a direção espiritual de São Francisco de Sales, seus criados diziam que o antigo diretor da senhora a fizera rezar uma ou duas vezes por dia, e ela todos incomodava assim, ao passo que o novo diretor a fazia rezar o dia inteiro e a ninguém incomodava. Um pouco de prudência bastaria, de certo, para que as nossas Comunhões e orações não perturbassem o arranjo da família, nem exigissem dos outros a menor abnegação. Ninguém deveria ter má vontade para essas coisas; mas nós nada lhes devemos impor.

Assim é que o nosso trato com os outros deve a um tempo santificar a nós mesmos e edificar ao próximo, pelo duplo exercício da mortificação e da doçura de Jesus. 

Provavelmente já nos ocorreu que, nesta fase da nossa carreira, nosso trato com os outros se resumisse principalmente no governo da língua.

Não sei o que deve surpreender mais: se a importância inesperada que a Santa Escritura assinala ao dever de governar a língua, ou se a inteira indiferença que este dever inspira até às almas piedosas. Só quem toma a concordância [bíblica] e procura na Bíblia todas as passagens que se referem ao assunto, desde os Provérbios e o Eclesiástico até S. Tiago, terá uma idéia da soma total de ensinos contidos sob este título [do governo da língua] e do espaço que ocupa naquele único volume. É incompatível com a brevidade que me proponho o entrar detalhadamente no assunto. Basta sugerir a cada um esta única pergunta: a atenção escrupulosa que cada um presta ao governo da língua está de todo em proporção com a tremenda verdade revelada por São Tiago quando disse: ‘Se eu não puser um freio à minha língua, toda a minha religião é vã’? A resposta dificilmente deixará de ser tão assustadora quanto humilhante.

Mas como governar a língua? A simples enumeração dos males há de implicitamente sugerir os remédios. Atendei a uma hora de conversa em qualquer companhia cristã. O assunto volve quase unicamente em torno das ações e dos caracteres dos outros! A razão é provavelmente esta: o trono do juízo de Nosso Senhor como que já está erigido na terra, não estando porém ocupado, mas à Sua espera. Nós, entretanto, com incivilidade, sem convite, subimos constantemente os degraus, sentamo-nos no Seu trono, antecipando e imitando a Sua sentença sobre os nossos irmãos. Procedendo deste modo, vemos quanto nossa conduta é perniciosa. Esta idéia nos ajudará de certo a purificar a nossa conversa da discussão desnecessária sobre motivos e ações alheias. Na maioria das vezes, porém, é só depois de longamente percorrido o caminho da devoção, e quando já nos prejudicamos irreparavelmente, que começamos a dedicar ao governo da nossa língua um pouco do cuidado que merece e que imperiosamente exige. 

O primeiro efeito da espiritualidade em nós é o de avivar o nosso lado crítico. Temos novas medidas para avaliar, temos nova luz para ver tudo, e com esses novos meios de observação prejudicamos nosso juízo sobre o próximo. Fazei disto o assunto do vosso exame particular, e vos surpreendereis de ver quão numerosas são vossas quedas. Com efeito, é difícil exagerar a facilidade, a multidão ou os efeitos fatais dos pecados a que nos levam todas essas conversas sobre os outros, mesmo quando temos e melhor e mais benévola das intenções. (...)”

FABER, Padre Frederick William [1814 – 1863], in: O PROGRESSO NA VIDA ESPIRITUAL, tradução segundo o original inglês por Marianna Nabuco, Editora Vozes, Petrópolis:1924, páginas 82-87, copiado Da Grande Guerra.

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