4 de março de 2015

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem - Parte 22

Artigo II

A Santíssima Virgem e os seus escravos por amor

201. Eis, em seguida, os caridosos deveres que a Santíssima Virgem cumpre como a melhor das mães, para com seus fiéis servos, que a ela se deram como indiquei, e conforme a figura de Jacó.
§ I. Ela os ama.
“Ego diligentes me diligo” – Eu amo aqueles que me amam” (Prov 8, 17). Ela os ama 1º porque é sua verdadeira Mãe; ora, uma mãe ama sempre seu filho, o fruto de suas entranhas; 2º ela os ama por reconhecimento, pois que eles efetivamente a amam como sua
boa Mãe; 3º ela os ama, porque, sendo predestinados, Deus os ama: “Iacob dilexi, Esau autem odio habui – Amei Jacó, porém aborreci Esaú” (Rm 9, 13); 4º ela os ama porque eles se lhe consagraram, e porque são sua partilha e herança: “In Israel hereditare” (Ecli 24, 13).

202. Ela os ama ternamente, e com mais ternura do que todas as mães juntas. Acumulai, se puderdes, num só coração materno e por um filho único, todo o amor natural que todas as mães deste mundo têm por seus filhos: sem dúvida essa mãe amaria muito esse filho. É verdade, entretanto, que Maria ama ainda mais ternamente seus filhos do que aquela mãe amaria o seu. Ela não os ama somente com afeição, mas também com eficácia. Seu amor por eles é ativo e efetivo, como aquele de Rebeca por Jacob, e muito mais. Eis o que esta boa Mãe, da qual Rebeca era apenas a figura, faz com o fito de alcançar, para seus filhos, a bênção do Pai celestial.

203. 1º Ela espreita, como Rebeca, as ocasiões favoráveis de lhes proporcionar algum bem, de os engrandecer, de os enriquecer. Ela vê claramente em Deus todos os bens e males, as boas e más fortunas, as bênçãos e as maldições divinas, e por isso, já de longe, dispõe as coisas para isentar seus servos de todo mal e cumulá-los de todos os bens; de sorte que, se há um bom proveito para alcançar em Deus, pela fidelidade duma criatura em algum alto emprego, é certo que Maria o conseguirá para algum de seus filhos, e lhe dará a graça de chegar ao fim com fidelidade: “Ipsa procurat negotia nostra”, diz um santo.

204. 2º Ela lhes dá bons conselhos, como Rebeca a Jacó: “Fili mi, acquiesce consiliis meis” – Meu filho, segue meus conselhos” (Gn 27, 8). E, entre outros conselhos, ela lhes sugere levar-lhe dois cabritos, isto é, seu corpo e sua alma, de lhos consagrar para que ela prepare um manjar agradável a Deus, e de fazer tudo que Jesus Cristo, seu Filho, nos ensinou pela palavra e pelo exemplo. Se não é diretamente que lhes dá seus conselhos, fá-lo pelo ministério dos anjos, para os quais constitui o maior prazer e a maior honra obedecer à menor de suas ordens para descer à terra e auxiliar seus fiéis servos.

205. 3º Quando lhe levamos e consagramos nosso corpo e nossa alma com tudo que deles depende, sem nada excetuar, que faz esta boa Mãe? O mesmo que fez, outrora, Rebeca aos dois cabritos que Jacó lhe trouxe: 1º mata-os, tirando-lhes a vida do velho Adão; 2º escorcha-os e despoja da pele natural, das inclinações naturais, do amor próprio, da vontade própria e de todo apego à criatura; 3º purifica-os de toda mancha, sujeira e pecado; 4º prepara-os ao gosto de Deus e para sua maior glória. Ninguém como ela conhece perfeitamente este gosto divino e esta maior glória do Altíssimo, e, portanto, só ela pode, sem enganar-se aprontar e preparar nosso corpo e nossa alma de acordo com esse gosto infinitamente elevado e essa glória infinitamente oculta.

206. 4º Esta boa Mãe, depois de receber a oferenda perfeita que lhe fizemos de nós mesmos e de nossos próprios méritos e satisfações, pela devoção de que falei, depois de nos ter despojado de nossos antigos hábitos, limpa-nos e nos torna dignos de aparecer diante de nosso Pai celeste. 1º Ela nos cobre com as vestes limpas, novas, preciosas e perfumadas de Esaú, o primogênito, isto é, de Jesus Cristo seu Filho, daquelas vestes que ela conserva em sua casa, ou, por outra, em seu poder, pois que é a tesoureira, a dispensadora universal dos méritos e virtudes de seu Filho Jesus Cristo, dons que ela dispensa e comunica a quem quer, quando quer, como quer, e em quanto quer, como já vimos acima (cf. nn. 25 e 141). 2º Ela rodeia o pescoço e as mãos de seus servos com o pelo dos carneiros mortos e escorchados, quer dizer, ela os reveste dos méritos e do valor de suas próprias ações. Ela mata e mortifica, em verdade, tudo que eles têm de impuro e imperfeito em suas pessoas; mas não perde nem dissipa o bem que neles a graça já realizou; pelo contrário, guarda-o e aumenta-o para lhes ornar e fortalecer o pescoço e as mãos, isto é, para que eles tenham força para carregar o jugo do Senhor, que se carrega ao pescoço, e para fazerem grandes coisas que redundem na glória de Deus e na salvação de seus irmãos. 3º Ela põe um novo perfume e uma nova graça nessas vestes e ornamentos, pelo contato de suas próprias vestes: seus méritos e suas virtudes, que ela, ao morrer, lhes legou em testamento, como diz uma santa religiosa do século 17, morta em odor de santidade, e que o soube por revelação; de modo que todos os seus servidores, seus fiéis servos e escravos ficam duplamente vestidos: com as vestes dela e com as de seu Filho: “Omnes domestici eius vestiti sunt duplicibus” (Prov
31, 21). Por isso eles não têm que recear o frio de Jesus Cristo, branco como a neve, que os réprobos, completamente nus e despojados dos méritos de Jesus Cristo e da Santíssima Virgem, não poderão suportar.

207. 5º Ela consegue-lhes, enfim, a bênção do Pai celeste, se bem que eles sejam os segundos, os filhos adotivos, e, portanto, não devessem recebê-la. Com essas roupas novas, preciosas e odorosas, e com seu corpo e alma bem preparados e dispostos, eles se aproximam confiantes do leito de repouso do Pai celeste. Este os ouve e os reconhece pela voz, a voz do pecador; toca-lhes as mãos cobertas de pêlos; aspira o perfume que de suas vestes se desprende; come alegremente o que Maria lhe preparou; e neles reconhecendo os méritos e o bom odor de seu Filho e de sua Mãe Santíssima: 1º dá-lhes sua dupla bênção, bênção do orvalho do céu: “De rore caeli” (Gn 27, 28), isto é, da graça divina que é a semente da glória: “Benedixit nos in omni benedictione spirituali in Christo Iesu” (Ef 1, 3: Deus nos abençoou com toda a bênção espiritual em Cristo Jesus); bênção da fertilidade da terra: “De pinguetudine terrae” (Gn 27, 28), em outras palavras, que este bom Pai lhes dá seu pão cotidiano e uma abundância suficiente de bens deste mundo; 2º fá-los senhores de seus outros irmãos, os reprovados, embora esta primazia nem sempre transpareça neste mundo que passa num instante, e no qual dominam muitas vezes os reprovados: “Peccatores effabuntur et gloriabuntur... (Sl 93, 3, 4), Vidi impium superexaltatum e elevatum” (Sl 36, 35); essa primazia é, no entanto, verdadeira e será manifestada por toda a eternidade, no outro mundo, onde os justos, como diz o Espírito Santo, dominarão e comandarão as nações: “Dominabuntur populis” (Sb 3, 8); 3º sua majestade, não contente de abençoá-los em suas pessoas e em seus bens, abençoa ainda todos os que eles abençoarem, e amaldiçoa todos os que os amaldiçoarem e perseguirem.
§ II. Ela os mantém.

208. O segundo dever de caridade que a Santíssima Virgem exerce para com seus fiéis servos é provê-los de tudo para o corpo e para a alma. Ela lhes fornece as vestes duplas, como acabamos de ver; dá-lhes de comer os manjares mais finos da mesa de Deus; dá-lhes o pão da vida que ela formou: “A generationibus meis implemini” (Ecli 24, 26): “Meus queridos filhos, lhes diz ela, sob o nome da Sabedoria, enchei-vos de meus frutos, isto é, de Jesus, o fruto de vida que eu pus no mundo para vós. – “Venite, comedite panem meum et bibite vinum quod miscui vobis” (Prov 9, 5); “comedite et bibite, et inebriamini, carissimi” (Cant 5, 1): Vinde, lhes repete, comei do meu pão, que é Jesus, e bebei do vinho de seu amor, que para vós preparei com o leite de meus seios. E como é a tesoureira e a dispensadora dos dons e das graças do Altíssimo, ela toma uma boa porção, a melhor, para alimentar e sustentar seus filhos e servos. Eles são fortalecidos com o pão vivo, embriagados com o vinho que gera virgens (cf. Zc 9, 17); são levados ao seio: “ad ubera portamini” (Is 66, 12); e têm tanta facilidade em carregar o jugo de Jesus Cristo, que quase não lhe sentem o peso, graças ao óleo da devoção com que ela o faz apodrecer: “Iugum eorum computrescet a facie olei” (Is 10, 27).
§ III. Ela os conduz.

209. O terceiro bem que a Santíssima Virgem faz a seus fiéis servos é conduzi-los e dirigi-los conforme a vontade de seu Filho. Rebeca conduzia o pequeno Jacó e de vez em quando lhe dava bons conselhos, e deu-lhos tanto para ele atrair a bênção de Isaac, como para subtrair-se à fúria de Esaú. Maria, a estrela do mar, guia todos os seus fiéis servos a bom porto; mostra-lhes os caminhos da vida eterna; desvia-os dos passos perigosos; leva-os pela mão nas sendas da justiça; sustém-nos quando estão prestes a cair; levanta-os quando caíram; repreende-os, como mãe caridosa, quando comentem alguma falta; e, até, às vezes, os castiga amorosamente. Um filho que obedece a Maria, pode acaso errar o caminho que leva à eternidade? “Ipsam sequens, non devias: Seguindo-a, não vos extraviareis”, diz São Bernardo. Não temais que um verdadeiro filho de Maria se deixe enganar pelo demônio e venha a cair em alguma heresia formal. Onde se manifesta a mão condutora de Maria, aí não se encontram nem o espírito maligno com suas ilusões, nem os hereges com seus sofismas: “Ipsa tenente, non corruis”.79
79) Palavras de São Bernardo, citadas e comentadas mais acima, n. 174.
§ IV. Ela os defende e protege.

210. O quarto favor que a Santíssima Virgem presta a seus filhos e fiéis servos é defendê-los e protegê-los de seus inimigos. Rebeca, por seus cuidados e por sua habilidade livrou Jacó dos perigos que o ameaçavam, e particularmente da morte que lhe jurara Esaú, e que, no auge da raiva e inveja que o dominavam, ele teria levado a termo, como outrora Caim a seu irmão Abel. Maria, a Mãe misericordiosa dos predestinados, abriga-os sob as asas de sua proteção, como uma galinha aos pintinhos. Ela lhes fala, abaixa-se até a eles, é condescendente para com suas fraquezas, protege-os contra as garras do gavião e do abutre; acompanha-os como um exército em linha de batalha: “ut castrorum acies ordinata” (Ct 6, 3). Pode um homem, garantido por um exército de cem mil soldados, ter receio de seus inimigos? Menos ainda há de recear um servo fiel de Maria, rodeado que está da proteção e força de sua Mãe Santíssima. Esta Mãe e Princesa poderosa enviaria antes batalhões de milhares de anjos em socorro de um só de seus servos, para que se não dissesse que um servo fiel de Maria, que a ela se confiou, sucumbiu à malícia, ao número e à força do inimigo.
§ V. Ela intercede por eles.

211. O quinto, enfim, e o maior bem, que a amabilíssima Maria proporciona a seus fiéis devotos, é interceder por eles junto de seu Filho, apaziguá-lo por suas preces, uni-los a ele por um forte elo, e para ele os conservar.
Rebeca mandou a Jacó que se aproximasse do leito de Isaac; e o ancião tateou as mãos e os braços do filho, abraçou-o e beijou-o com alegria, mostrando-se contente e satisfeito com o acepipe que Jacó lhe apresentava. E ao aspirar com extrema satisfação o perfume que se evolava das vestes de Esaú, exclamou: “Ecce odor filii mei sicut odor agri pleni, cui benedixit Dominus: Eis que o cheiro de meu filho é como o cheiro de um campo florido que o Senhor abençoou” (Gn 27, 27). Este campo florido, cujo odor encanta o coração do pai, outro não é que o odor das virtudes e dos méritos de Maria, que é um campo cheio de graça, no qual Deus Pai semeou, qual grão de trigo dos eleitos, o seu Filho único.
Oh! benvindo é, junto de Jesus Cristo, Pai do futuro século, um filho que rescende o bom odor de Maria. E quão pronta e perfeitamente lhe fica unido, já o demonstramos longamente.

212. Além disso, depois de cumular de favores seus filhos e servos fiéis, Maria Santíssima lhes obtém a bênção do Pai celestial e a união com Jesus Cristo, e, mais, conserva-os em Jesus Cristo e Jesus Cristo neles. Ela os guarda e por eles vela constantemente, para que não percam a graça de Deus e não caiam nas armadilhas do inimigo: “In plenitudine sanctos detinet: Detém os santos em sua plenitude”80, e ajuda-os a perseverar até ao fim, como já vimos.
80) Palavras de São Boaventura já citadas e comentadas (n. 174).
Aí está a explicação desta grande e antiga figura da predestinação e da condenação, figura tão desconhecida e tão cheia de mistérios.

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