19 de março de 2021

Histórias das Cruzadas - Livro Primeiro - Origem e Progresso do Espírito das Cruzadas 11

Hakem desprezava Maomé, mas não ousou perseguir os muçulmanos, muito numerosos em seus territórios. O deus tremeu pela autoridade do príncipe e fez desabar toda sua cólera sobre os cristãos, que ele entregou ao furor de seus inimigos. Os lugares que os fiéis ocupavam na administração, os abusos introduzidos na arrecadação dos impostos de que eram encarregados, haviam-lhes atraído o ódio de todos os muçulmanos. Quando o califa Hakem deu o sinal da perseguição, encontraram carrascos por toda a parte. Perseguiam a princípio os que haviam abusado do poder, depois atacaram a religião cristã e os mais piedosos entre os fiéis foram os mais culpados. O sangue dos cristãos correu em todas as cidades do Egito e da Síria; sua coragem no meio dos tormentos só fazia aumentar o ódio de seus perseguidores. As queixas que lhes escapavam em sua miséria, as orações que eles dirigiam a Jesus Cristo para obter o fim de seus males, eram consideradas como uma revolta e castigadas como o mais culpado dos atentados.

É possível que os motivos da política se tenham reunido então aos do fanatismo, para fazer perseguir os cristãos. Gernert, Arcebispo de Ravena, que foi papa sob o nome de Silvestre II, tinha visto os males dos fiéis numa peregrinação que fez a Jerusalém. Ao seu regresso, ele incitou os povos do Ocidente a tomar as armas contra os sarracenos. Em suas exortações, ele fazia a mesma Jerusalém falar, deplorando suas desgraças e conjurando seus filhos, os cristãos, a vir quebrar seus grilhões. Os povos comoveram-se com os gemidos de Sião. Os pisanos, os genoveses e o Rei de Arles, Boson, empreenderam uma expedição marítima contra os sarracenos e fizeram uma excursão até as costas da Síria. Essas hostilidades e o número dos peregrinos, que cada dia crescia mais, podiam dar justas desconfianças aos senhores do Oriente. Os sarracenos, alarmados pelas sinistras predições e pelas imprudentes ameaças dos cristãos só viam inimigos nos discípulos de Cristo.

É impossível, diz Guilherme de Tiro, dar a conhecer todas as espécies de perseguição que então os fiéis sofreram. Entre os trechos de barbárie citados pelos historiadores, um houve que deu a Tasso a ideia do seu tocante episódio de Olindo e Sofrônia.

Um dos mais acérrimos inimigos dos cristãos, para excitar ainda mais o ódio dos seus perseguidores, atirou durante a noite um cão morto numa dás principais mesquitas da cidade. Os primeiros que vieram à oração da manhã, foram tomados de horror à vista daquela profanação; bem depressa clamores ameaçadores ecoaram por toda a cidade. A multidão reúne-se em tumulto, em redor da mesquita; acusam os discípulos de Cristo. Jura-se lavar em seu sangue o ultraje feito a Maomé. Todos os fiéis iam ser imolados à vingança dos muçulmanos; já eles se preparavam para a morte, quando um moço, cujo nome a história não conservou, apresenta-se no meio deles. "O maior mal que pode acontecer, lhes diz ele, é que a igreja de Jerusalém venha a perecer: o exemplo do salvador nos diz que somente um deve se imolar para a salvação de todos. Prometeis bendizer todos os anos à minha memória, honrar sempre minha família, e eu irei com o auxílio de Deus, afastar a morte que ameaça todo o povo cristão". Os fiéis aceitaram o sacrifício desse generoso mártir da humanidade e juraram abençoar para sempre seu nome. Para honrar sua descendência, decidiram naquele mesmo instante, na procissão solene que se faz todos os anos na Páscoa, cada um dos seus parentes levaria, entre ramos de palmas, a oliveira consagrada a Jesus Cristo. Contente com a honra que obtinha em troca de sua vida mortal, o jovem cristão deixa a assembleia que chorava copiosamente e vai aos juízes muçulmanos, ante os quais ele se acusa do crime que era imputado a todos os discípulos do evangelho: os juízes pouco comovidos com essa dedicação heroica, pronunciaram contra ele a terrível sentença. Desde então não esteve mais a espada suspensa sobre a cabeça dos fiéis e aquele que por eles se havia imolado foi receber no céu o prêmio reservado aos que ardem no fogo da caridade.

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