7 de março de 2021

Histórias das Cruzadas - Livro Primeiro - Origem e Progresso do Espírito das Cruzadas 2

Sob o reinado de Heráclio, a segurança de que gozavam os habitantes da terra santa foi perturbada por uma guerra vinda da Pérsia. Os exércitos de Cosroés II, invadiram a Síria, a Palestina e o Egito; a Cidade Santa caiu em poder dos adoradores do fogo; os vencedores devastaram as cidades, saquearam as igrejas e levaram um grande número de escravos. As desgraças de Jerusalém excitaram a compaixão do mundo cristão; todos os fiéis derramaram lágrimas ao saberem que o Rei da Pérsia, tinha levado, com outros despojos, dos vencidos, a cruz do Salvador, conservada na Igreja da Ressurreição.

No entretanto o céu deixou-se comover pelas orações e pela aflição dos cristãos; depois de dez anos de reveses, Heráclio triunfou sobre os inimigos do cristianismo e do império; quebrou os grilhões dos cristãos escravos e os reconduziu a Jerusalém. Viu-se então um imperador do Oriente, descalço, pelas ruas da cidade santa, a levar sobre seus ombros até o Calvário a verdadeira cruz que ele considerava como o mais precioso troféu de suas vitórias. Essa imponente cerimônia foi uma festa para o povo de Jerusalém e para a Igreja cristã, que todos os anos celebra-lhe ainda a memória. Quando Heráclio voltou a Constantinopla, foi recebido como libertador dos cristãos e os reis do Ocidente enviaram-lhe embaixadores para felicitá-lo.

Os triunfos de Heráclio haviam revertido para a glória do nome cristão; haviam dado à Palestina e à Síria uma liberdade pacífica, uma feliz segurança, que favorecia as peregrinações. Nos últimos anos do VI século, algum tempo antes da invasão de Omar, Santo Antonino, de quem encontramos o nome entre os guerreiros cristãos daquela época, partiu de Plaisance com alguns companheiros e foi procurar, além dos mares, as pegadas do divino salvador.

Uma interessante relação, que nos foi legada e escrita por um dos companheiros de Antonino, nos permitirá seguir em poucas palavras os peregrinos da Itália. Nossos piedosos viajantes, dirigindo-se à Síria passaram por Constantinopla e pela ilha de Chipre.

Visitaram os lugares principais das costas da Síria, a Galiléia e as margens do Jordão antes de chegar a Jerusalém, meta de sua peregrinação. Depois de alguns dias de oração junto do santo sepulcro e do Calvário, resolveram levar além a sua viagem e dirigiram-se para o deserto, visitando Ascalon e Gaza; longas caminhadas através das solidões levaram-nos aos montes de Oreb e do Sinai; atravessaram o Egito, sem se incomodar com as pirâmides, mas unicamente preocupados com as recordações de Maria, mãe de Jesus; depois, voltando a Jerusalém percorreram o norte da Síria, penetraram até às margens do Eufrates, para visitar o berço de Abraão e depois retomaram o caminho de sua pátria. Nossos peregrinos perderam um de seus companheiros, chamado João, na parte meridional da Galiléia, no lugar chamado banhos de Elias. O itinerário de Santo Antonino, do qual aqui somente podemos dar uns breves traços, é um precioso monumento para o estado religioso e político da Síria e da Judéia no VI século. Vê-se por essa relação que a terra santa era então um país próspero; essas regiões, hoje quase todas tão desertas e tão tristes, eram florescentes pela religião, pela agricultura e pelo comércio: por toda a parte havia mosteiros, cidades, aldeias; enquanto a Europa agitava-se no meio das calamidades da guerra e das revoluções, a Palestina era feliz à sombra do Calvário: havia-se tornado uma segunda vez à terra da promissão.

Mas essa doce paz devia desaparecer bem depressa sob uma imensa tempestade que já havia desabado do lado da Arábia. Os discípulos do Evangelho iam sustentar uma luta bem mais terrível que as até então travadas. O Oriente tinha então chegado a uma daquelas épocas de confusão e de decadência que favorecem a invasão de novas ideias, sobretudo quando elas se apresentam apoiadas pela espada. O culto dos magos caía no desprezo; os judeus espalhados pela Ásia eram contrários aos sabeenses e estavam divididos entre si; os cristãos sob o nome de cutiquianos, de nestorianos, de jacobitas cobriam-se reciprocamente de anátemas. O império dos persas, retalhado pelas guerras civis, tinha perdido seu poder e seu brilho; o dos gregos, enfraquecido em seu interior e externamente, caminhava para uma ruína próxima: tudo perecia no Oriente, diz Bossúet. As tribos espalhadas na península Arábica, divididas entre si mesmas, em interesses e crenças, não tinham nem paz, nem glória, nem caráter algum de nacionalidade. Por toda a parte só se encontravam fraquezas e decomposição.

Do meio dessas ruínas universais saiu um homem com um ousado projeto de uma nova religião e de um novo 1mpeno. Maomé, filho de Abdallah, da tribo dos koreéhitas, nascido em Meca em 469; a princípio havia sido um simples condutor de caravanas e os primeiros tempos de sua vida tinham-se passado na obscuridade; foi talvez durante as marchas longas e monótonas através dos desertos, que o gênio da meditação lhe revelou todo um mundo a ser criado. O filho de Abdallah possuía em altíssimo grau as qualidades que melhor agem sobre os povos do Oriente: tinha a imaginação ardente, a energia que arrasta, a gravidade que ordena o respeito; seu espírito firme e vivo sabia esperar e Deus mesmo, dizem os orientais, é pelos pacientes. Conhecia a fundo as populações da Arábia, que devia ser o instrumento de seus vastos pensamentos, e ele teve o cuidado de se dirigir aos seus pendores belicosos, ao seu gosto pelo movimento e pela dominação; prometia o império do mundo a discípulos que saíam quase nus do deserto e a vitória foi o primeiro de seus milagres. O Corão, que desceu lentamente do céu, trazia um tríplice caráter: Maomé nele mostrava-se poeta, moralista e homem político; trechos fabulosos, escutados avidamente num país, onde dominava o amor do maravilhoso, recebiam um encanto supremo daquela língua árabe, de que Maomé, melhor que qualquer outro, conhecia os poderosos recursos e a harmoniosa abundância.

Tudo o que a imagem poética pode ter de brilho e de sedução, servia para pintar um paraíso criado para os sentidos e que devia realizar todos os sonhos apaixonados do homem. O Corão, que materializava os sentimentos humanos, que, antes do mais, procurava mover o que há de mais violento no coração, pregava no entretanto em vários pontos uma moral nobre e pura; essa moral, no meio da decomposição geral daquele tempo levava a razão a verdades desconhecidas e contribuía para dar a Maomé o caráter de um gênio reparador, de um enviado sublime. As leis que o Corão prescrevia estavam em plena harmonia com as necessidades e os costumes dos povos da Arábia; sua política nada oferecia de complicado, era como um hino ao deus da guerra e aquela brutal política da espada era mais ou menos a única que poderiam compreender tribos acostumadas a decidir todas as coisas por meio de um combate. Tal era Maomé, tal o caráter da missão que ele empreendeu; o filho de Abdallah tomou da Bíblia e do Evangelho o que podia melhor entrar no espírito e nos hábitos do seu país; tomou dos outros cultos esparsos pelo Oriente o que melhor poderia convir aos seus ousados projetos de renovação e dessa mistura de diversas doutrinas ele compôs o livro confuso e tenebroso que há mais de mil anos se tornou o oráculo de metade do mundo.

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