3 de novembro de 2016

Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

IV

Cristo é Deus e homem. A alma fiel não se limita a proclamar a Divindade de Jesus, quer igualmente honrar a Sua santa Humanidade : a nossa piedade não seria perfeita, integral, se, confessando a Divindade de Jesus Cristo, perdêssemos de vista a Sua Humanidade.
Almas há que julgam ser melhor para a sua vida espiritual não meditar na Humanidade de Jesus Cristo, e contemplar apenas a Sua Divindade. Santa Teresa caiu durante algum tempo neste erro. Mais tarde, a grande contemplativa reconheceu-o ; e então, em que amargos termos o deplora ! Com que vivacidade previne as suas filhas e, com elas, todas as almas, contra esta opinião, que declara «errônea» e da qual nunca se lembra «sem que se sinta acabrunhada de dor», pois se
«embrenhava por um caminho detestável» e «parece-lhe ter-se tornado culpada para com o Senhor duma grande traição». Na realidade, era «ignorância».
Segundo a Santa, uma ilusão destas é motivada por «uma pequena falta de humildade, tão encoberta e oculta que passa despercebida ... ». Devemos considerar-nos «muito ricos» por nos ser dado estar junto da Humanidade de Jesus nos Seus mistérios.  «Ê  uma pequena falta de humildade ... não se contentar com um objeto tão excelente como a Humanidade de Jesus Cristo... Esta pequena falta de humildade ... , que parece insignificante, prejudica muito o progresso na
contemplação».
Outro inconveniente deste erro apontado pela Santa é deixar a alma sem apoio. «Não somos anjos, diz ela ; temos um corpo . . . No meio dos negócios. das perseguições, das provações. no tempo de aridez, Jesus Cristo é um  excelente amigo. Vemo-Lo homem como nós. contemplamo-Lo na enfermidade, no sofrimento... Pois somos homens. é-nos muito vantajoso. enquanto estiver­mos nesta vida. considerar a Deus feito homem». Não é acaso lei da nossa natureza ir ao invisível através das coisas visíveis? Ora, a Incarnação é a mais divina aplicação desta lei psicológica.
A  Esposa do Cântico dos Cânticos dizia: «Sen­tei-me à sombra daquele que era o objeto dos meus
desejos»:  Sub umbra illius quem desideraveram sedi. Esta  umbra  é a santa Humanidade que permite aos nossos olhos contemplar a Divindade, que se nos revela sob aparências sensíveis.
E a santa conclui:  «E  sumamente agradável a Deus ver uma alma pôr, com humildade, o Seu divino Filho como intermediário entre ela e Ele».
E qual a razão íntima de tudo isto?
E  que a lncarnação é um mistério  divino ;  a obra-­ prima da sabedoria eterna e do amor infinito. Porque não nos havemos de compenetrar dos pensamentos e desígnios de Deus? Porque havemos de recusar subordinar à sabedoria infinita a nossa ciência tão limitada? Serão tão ineficazes os recursos divinos, que julguemos dever corrigi -los com os nossos cálculos humanos?  Se Deus houve por bem realizar a nossa salvação e a nossa santidade por meio duma Humanidade unida ao Verbo, ao Seu Filho, porque não recorrer a este  meio? Admiramos aqui tanto a sabedoria como a condescendência divina.
Não receemos, pois, quando lemos o Evangelho, quando celebramos os mistérios de Jesus, contemplar em Cristo o homem : esta Humanidade é a Humanidade dum Deus. Este homem, que vemos agir e viver no meio dos homens para os atrair com as provas sensíveis do Seu amor, é Deus, é o nosso Deus.
Sobretudo, não receemos prestar a  esta  Humanidade todas as homenagens que lhe são  devidas.
Em primeiro lugar a adoração. - E:  verdade que esta Humanidade é criada como a nossa. Não a adoramos por causa de si mesma ; todavia, temos de a adorar em  si, por causa da sua união com  o Filho de Deus. A nossa adoração é prestada à  Humanidade.  mas termina na pessoa divina à qual está  substancialmente unida.
Depois, confiança absoluta. - Deus quis  fazer  da Humanidade de Cristo o  instrumento  da graça ;  é  por intermédio dela que a recebemos.  Não é do Verbo no seio do Pai mas sim do Verbo  Incarnado  que S. João disse:  «E  cheio de graça e da sua plenitude todos nós
recebemos».
Durante a Sua vida terrestre nosso Senhor sendo Deus como era, podia ter operado todos os milagres e distribuído a graça aos homens  apenas  por um ato da Sua divina vontade. Cada vez que apresentavam  a  Je­sus doentes para os curar, mortos para os ressuscitar, Ele podia por um simples ato interior  da Sua Vontade eterna, operar o milagre solicitado. Mas não o fez. Lede
o Evangelho: vereis que Ele quis tocar com a mão  os olhos dos cegos, os ouvidos dos surdos,  colocar  a  saliva na língua dos mudos, tocar no esquife do filho  da  viúva de Naim, pegar na mão da filha de  Jairo,  comunicar o Espírito Santo aos Apóstolos soprando sobre eles. Era, portanto, pelo contato da Sua santa  Humanidade  que Jesus Cristo operava os milagres e distribuía  a  graça: a Humanidade servia de instrumento  unido  ao Verbo.  E esta lei admirável e enternecedora  verifica-se  em todos os mistérios de Jesus.
Esta ordem. querida pelo próprio Deus, continua, visto a união das naturezas, em Cristo, ser indissolúvel. Portanto, quando percorremos as páginas do Evangelho, quando acompanhamos a Igreja na sua Liturgia, quando nos unimos à santa Humanidade de Jesus por um ato de fé, quando sobretudo recebemos  o  seu Corpo na Eucaristia, a santa Humanidade de Jesus, inseparável
do Verbo divino, serve de instrumento de graça para
as  nossas almas.
<<É  para mim coisa evidentíssima, escreve Santa Te­resa, que para agradar a Deus e receber d'Ele grandes graças, é necessário e é vontade Sua que elas passem pelas mãos desta santa Humanidade na qual Ele próprio declarou ter posto todas as Suas complacências.
Disto fiz eu a experiência inúmeras vezes e o mesmo Nosso Senhor mo disse. Reconheci claramente que esta é a porta por onde havemos de entrar, se quisermos que a soberana majestade nos revele altos segredos ... Por esta estrada, caminhamos seguros».
E se bem refletirdes, vereis que toda a economia da vida sobrenatural se baseia nesta verdade. A Igreja, os  Sacramentos, o santo Sacrifício, a pregação, são outros tantos meios sensíveis pelos quais Deus nos conduz a Si. E' um como prolongamento da Incarnação.
Já vedes como é útil e importante permanecer unidos à santa Humanidade de Jesus ; nela, diz S. Paulo, habita a plenitude da Divindade, e  é do Verbo, por intermédio da Humanidade, que recebemos todas as gra­ças:  Verbum caro factum est.. . et vidimus e um plenum gratiae et de plenitudine ejus nos omnes accepimus.  A Humanidade de Jesus é o meio divinamente estabelecido para transmitir a graça às almas.
É também para as almas um meio de chegar até à Divindade. - Verdade não menos importante. de que jamais nos devemos esquecer. Não devemos ficar-nos na santa Humanidade de Jesus como no termo final. Podeis dizer-me: «Para mim. toda a devoção consiste em me dar a Jesus Cristo. em me entregar a Ele>>. É bom, excelente, nada melhor do que dar-se a Cristo. Mas  o que é dar-se a Nosso Senhor? É unir a nossa vontade à d'Ele. Ora. a vontade de Jesus é conduzir-nos para o Pai. Toda a Sua obra consiste nisto ; o Pai é o termo. «Eu sou o caminho». dizia Jesus. falando da Sua Humanidade. Ele é o único caminho. é verdade ; mas não passa dum caminho ; o fim supremo ao qual nos conduz este caminho é o Pai Eterno:  Nemo venit AD PATREM nisi per me. A Humanidade entrega-nos ao Verbo, o Verbo ao Pai.
É o que dizia S. Paulo aos cristãos do seu tempo : Omnia vestra sunt .. vos autem Christi, Christus autem Dei (45 .  Por estas simples palavras,  o  grande Apóstolo indicava os degraus da obra divina na terra: «Tudo é vosso, vós sois de Jesus Cristo. Cristo é de Deus».
Pela Humanidade de Jesus pertencemos ao Verbo, ao Filho: pelo Filho vamos ao Pai. Cristo conduz-nos assim  in sinu Patris.  Aqui est, contemplada do nosso lado. a íntima razão de ser do inefável mistério do Homem-Deus.
Conta-nos S. João que. no início da Sua vida pública, o  nosso divino Salvador, passando pela Sama­ria, chegou a uma cidade chamada Sicar. perto do poço de Jacob. Entre as circunstâncias da cena minuciosamente descrita pelo Evangelista, há uma que particularmente nos comove o coração:  Jesus ergo fatigatus ex itinere, sedebat sic supra fontem :  <
Leia-se o admirável comentário de Santo Agostinho, sobre estes pormenores, feito com aquela oposição de ideias e de termos de que ele possui o segredo, principalmente quando quer pôr em relevo a união e o contraste do divino e do humano em Jesus. «Está cansado, diz, Aquele que restaura as forças dos que se acham extenuados, Aquele cuja ausência nos acabrunha, cuja presença nos fortalece» :  Fatigatur per quem fatigati recreantur: quo deserente fatigamur. quo praesente firmamur.  «É por vós que Jesus se cansa da caminhada. Encontramo-Lo cheio de força e de fraqueza. Porquê cheio de força? Porque  é  o Verbo eterno, e todas as
coisas foram criadas pela Sua sabedoria e pela sua força. Porquê cheio de fraqueza?  Porque este Verbo se fez carne e veio habitar entre nós. A força divina de Jesus Cristo vos criou, a Sua vinda na fraqueza da nossa humanidade vos resgatou» :  Fortitudo Christi te creavit: -infirmitas Christi te recreavit.
E o Santo concluiu: «Jesus  é  fraco na Sua Huma­nidade. Quanto a vós, cuidado, não vos fiqueis na vossa fraqueza ; vinde antes buscar a força divina n'Aquele que, sendo por natureza a Omnipotência, quis tornar-se fraco por amor de vós» :  lnfirmus in carne Jesus: sed noli tu infirmari. in infirmitate illius tu fortis esto!

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