24 de dezembro de 2010

Natal do Senhor

Sermão de Santo Antônio de Pádua


No Natal do Senhor



1. Naquele tempo, "saiu um edito de César Augusto, ordenando o recenseamento de toda a terra" (Lc 2, 1).
Nesse evangelho três coisas se hão de notar: o recenseamento da terra, o nascimento do Salvador e o anúncio dos anjos aos pastores, do que falaremos, com a ajuda de Deus, suscinta e distintamente.

I. DO RECENSEAMENTO DA TERRA
2. Recenseamento da terra, como está escrito: "Saiu um edito". Note-se que, nessa primeira sentença, há um sentido moral, pois quando alguém quer fazer penitência dos males que cometeu, primeiro deve recensear toda a sua vida na contrição, e depois passar à confissão.
Está escrito: "Saiu um edito de César Augusto". César, que quer dizer "possuidor", "príncipe", e Augusto, que quer dizer "aquele que está solenemente em pé", é Deus onipotente, possuidor de toda criatura: "A minha mão", diz em Isaías LXVI, "fez tudo isso" (Is 66, 2); "e sob o qual", como diz Jó IX, "se curvam os que carregam o globo" (Job 9, 13), isto é, o peso do globo, notadamente osprelados da Igreja e os príncipes do século; que permanece em pé solenemente, pois, como diz Daniel VII, "milhares de milhares são seus ministros, e centenas de milhares de dezenas de milhares assistem-no" (Dan 7, 10). Diz-se que permanece em pé, quando auxilia os seus; senta, quando exerce o juízo, e, em ambos os casos, solene, glorioso e nobre. Assim o nosso imperador, pelos seus arautos, isto é, os pregadores da Igreja, todo dia ordena um edito para que seja recenseado o globo inteiro. "Globo" é chamado pela redondeza do círculo, pois o Oceano, delimitando-o por todos os lados, descreve um círculo. O globo é a vida do homem, que é como um círculo, e por isso fala-se-lhe no Gênesis III: És pó e ao pó retornarás (cf. Gen 3, 19). A totalidade desse globo ele deve recensear, examinando, na amargura da sua alma, o que cometeu na infância, na adolescência, na juventude e na velhice. E veja-se que é dito totalidade, para que se entenda que se devem recensear os pecados pelo coração, pela boca, pelas obras, e pelas omissões, com as suas circunstâncias, motivo pelo qual é usado o verbo "describeretur", e não "scriberetur", isto é, recensear de todos os modos e em todos os lugares.
"Esse foi o primeiro recenseamento feito sob o governo de Cirino da Síria" (Lc 2, 2). Cirino, que quer dizer herdeiro, é o penitente, herdeiro de Deus e coerdeiro com Cristo (cf. Rom 8, 17), que diz: "A minha herança é esplêndida" (Ps 15, 6). Ele faz o primeiro recenseamento dos seus pecados quando, pela primeira vez, perscruta minuciosamente na contrição o que cometeu ou omitiu. Ele é o governador da Síria, que quer dizer sublimidade, ou seja, soberba e arrogância. Jó XLI, do diabo, diz: "Vê tudo sublimemente; e ele é o rei de todos os filhos da soberba" (Job 41, 25). Há prelatura mais louvável do que subir acima de si mesmo, e humilhar a própria soberba?

3. "E iam todos" (Lc 2, 3). Eis a ordenação correta para fazer penitência: primeiro recensear e depois ir à confissão. "Iam", está escrito, "todos, declarar-se" (Lc 2, 3). Ai!, quão poucos hoje o vão. Por isso chora Jeremias I: "As ruas de Sião lamentam que não haja ninguém que venha para a solenidade" (Lam 1, 4). Mas "José", isto é, o verdadeiro penitente, "da casa e família de Davi" (Lc 2, 4), que fez verdadeira penitência, e a cuja casa prometeu o Senhor em Zacarias XIII: "Naquele dia haverá uma fonte aberta para a casa de Davi" (Zach 13, 1). Pois a fonte da divina misericórdia é aberta para a congregação dos penitentes, "para a ablução dos pecadores e das menstruadas" (Zach 13, 1), isto é, purgando os seus pecados manifestos e ocultos. Esse "José subiu da Galileia", que quer dizer rota, ou seja, a descrição da sua vida, como foi dito acima, "da cidade de Nazaré" (Lc 2, 4), que quer dizer flor.
À flor sucede-se o fruto; pela primeira chega-se ao último. Assim, à contrição deve suceder-se a confissão; pela contrição se chega ao fruto da confissão, isto é, à absolução e à reconciliação. E note-se que José subiu "para declarar-se, com Maria, casada consigo e grávida" (Lc 2, 5). Maria quer dizer mar amargo, e significa o duplo amargor com que deve subir o pecador à Judeia, isto é, a confissão, na qual está a cidade de Davi, "chamada Belém" (Lc 2, 5), isto é, casa do pão. Ela é a refeição das lágrimas: "As minhas lágrimas", está escrito, "foram-me pães" (Ps 41, 4) etc.
Quanto a isso, há concordância em Isaías XV: "Luit, chorando, sobe pela ladeira, e na estrada de Oronaim elevarão o clamor da contrição" (Is 15, 5). Eis o mar amargo. Luit quer dizer bochechas ou maxilas, e Oronaim, buraco da sua tristeza. Chorando, isto é, arrependido, subiu à confissão, derramadas lágrimas, que das bochechas sobem a Deus, como diz o Eclesiástico XXXV: "Não descem as lágrimas das viúvas às bochechas, e a sua exclamação ao seu diretor? Das bochechas, porém, sobem até o céu, e o Senhor, que as atende, deleita-se nelas" (Eccli 35, 18-19). O buraco da tristeza é a dor do coração contrito, do qual deve proceder o clamor da confissão, que o penitente deve elevar, de modo que tudo seja confessado nua e abertamente.

4. E note-se que subiu com Maria grávida. A alma é engravidada pelo temor de Deus com uma dupla dor, como diz Isaías XXVI: "Como aquela que concebe, quando se aproxima o parto, doendo-se, grita em suas dores, assim nos fez a vossa face" (ou, segundo outra tradução - LXX [Septuaginta] -, "o vosso temor"), "Senhor, concebemos e parimos, e demos à luz o espírito da salvação" (Is 26, 17-18). A face de Cristo, vindo para o juízo, engravida a alma de temor, para que conceba e dê à luz o espírito da salvação.

II. DO NASCIMENTO DO SALVADOR
5. Natividade do Salvador, como está escrito: "Aconteceu, enquanto estavam lá" (Lc 2, 6). "Lá" onde? Na casa do pão; e Maria é a casa do pão. O pão dos anjos fez-se leite dos pequeninos, para que os pequeninos se tornassem anjos. "Deixai vir a mim os pequeninos" (Mc 10, 14), para que mamem e se saciem do seio da sua consolação (cf. Is 66, 11). Note-se que o leite é de sabor doce e de aparência graciosa. Assim Cristo, como diz a boca de ouro, com a sua doçura, atraía os homens a si, como o ferro os ímãs, dizendo no Eclesiástico XXIV: "Os que me comem voltarão a ter fome, e os que me bebem voltarão a ter sede" (Eccli 24, 29); e é de aparência graciosa, que os anjos desejam contemplar (cf. 1Pt 1, 12).
"Completaram-se os dias para o parto" (Lc 2, 6). Eis a plenitude dos tempos (cf. Gal 4, 4), o dia da salvação (cf. 2Cor 6, 2), o ano da benignidade (cf. Ps 64, 12). Desde a prevaricação de Adão até o advento de Cristo foi: o tempo vazio, por isso diz Jeremias: "Olhei a terra, e eis que estava vazia e não havia quase nada" (Jer 4, 23), porque o diabo devastara tudo; o dia da dor ou enfermidada, por isso diz o Salmo: "Mudaste todo o seu leito na sua enfermidade" (Ps 40, 4); o ano da maldição, por isso diz o Gênesis III: "A terra foi maldita no teu feito" (Gen 3, 17); mas hoje "completaram-se os dias para o parto". Da compleição daquele dia nós todos desfrutamos (cf. Jo 1, 16), por isso diz o Salmo: "Encher-nos-emos dos bens da vossa casa" (Ps 64, 5). A vós, ó bem-aventurada Virgem, louvor e glória, porque hoje, na bondade da vossa casa, isto é, do vosso útero, enchemo-nos. Nós, antes vazios, estamos cheios; antes enfermos, sãos; antes malditos, abençoados, porque, como dizem os Cânticos IV: "O que emitis é o paraíso" (Cant 4, 13).

6. Segue-se: "E deu à luz o seu Filho primogênito" (Lc 2, 7). Eis a bondade, eis o paraíso. Correi, pois, glutões, avaros e usurários, que gostam mais do dinheiro do que de Deus, e "comprai sem prata e sem nenhuma troca" (Is 55, 1) o grão de trigo, que hoje a Virgem frutificou do celeiro do seu seio. "Deu à luz seu Filho". Que Filho? O Deus Filho de Deus. Ó, mais feliz que todos os felizes, vós que tivestes um Filho em comum com Deus Pai! Quanta glória seria para uma pobrezinha mulher, se tivesse um filho com um imperador mortal! Quanto maior a glória da Virgem, que teve um filho com Deus Pai! "Deu à luz seu Filho". O Pai deu ao Filho divindade e a Mãe, a humanidade; o Pai, a majestade, e a Mãe, a vulnerabilidade. "Deu à luz seu Filho" Emanuel, isto é, Deus-Conosco (cf. Mt 1, 23). Quem será contra nós (cf. Rom 8, 31)? Como disse Isaías LIX: "Na sua cabeça está o elmo da salvação" (Is 59, 17). O elmo é a humanidade, a cabeça, a divindade; a cabeça fica escondida sob o elmo, como a divindade sob a humanidade. Não se deve, pois, temer. A vitória está para a nossa parte, porque Deus conosco está armado. Graças a vós, gloriosa Virgem, porque por Vós Deus é conosco. "Deus à luz seu Filho primogênito", isto é, antes de todos os séculos gerado pelo Pai, ou primogênito dos mortos (cf. Col 1, 18), ou de muitos irmãos (cf. Rom 8, 29).

7. Segue-se: "E envolveu-o em panos, e deitou-o num presépio" (Lc 2, 7). Ó pobreza! Ó humildade! O Senhor de todas as coisas envolvido num paninho, o rei dos anjos deitado num estábulo. Enrubesce, ó avareza insaciável! Cala-te, soberba do homem! "Envolveu-o em panos." Note-se que Cristo, no princípio e no fim da sua vida, foi envolvido em panos. "José", diz Marcos XV, "tendo comprado um sudário, tirou-o [da cruz] e envolveu-o no sudário" (Mc 15, 46). Feliz aquele que na inocência batismal termina a sua vida. O velho Adão, quando foi expulso do paraíso, vestiu-se com uma túnica de pele (cf. 3, 21), que, quanto mais é lavado, tanto mais se estraga, e que significa a carnalidade sua e dos seus. Mas o novo Adão envolveu-se em panos, em cuja brancura está representada para nós a limpeza de sua Mãe, a inocência batismal, a glória da ressurreição geral. "E deitou-o num presépio" (Lc 2, 7), porque não havia lugar para eles na hospedaria. Eis, como dizem os Provérbios V, uma cerva preciosíssima e um cervozinho agradabilíssimo. A história natural dez que a cerva dá à luz numa estrada batida; assim a Virgem deu à luz numa estrada, visto que na hospedaria, que é chamada em latim "diversorium" porque pessoas oriundas de diversas estradas aí se reúnem.

III. DO ANÚNCIO DOS ANJOS AOS PASTORES
8. Anúncio dos anjos aos pastores, como está escrito "Havia pastores naquela região, vigiando e guardando seu rebanho nas vigílias noturnas" (Lc 2, 8).
Vigílias são chamadas as estações em que os antigos romanos dividiam a noite em quatro vigílias, e alternadamente faziam a guarda da cidade. A noite é a presente vida, na qual andamos às palpadelas como de noite. Nós mesmos não vemos uns aos outros, isto é, as consciências uns dos outros; sempre ferimos os pés, isto é, os afetos da alma. Quem quiser guardar bem a sua cidade nessa noite, deve montar guarda diligentemente nas suas quatro vigílias. A primeira vigília é a da corrupção do nosso nascimento; a segunda, a malícia da iniquidade; a terceira, a miséria da peregrinação; a quarta, a lembrança da morte. Deve contemplar a primeira para desprezar-se; a segunda, para afligir-se; a terceira, para chorá-la; a quarta, para temer. Felizes aqueles pastores que assim montam guarda nessas vigílias, porque bem defenderão o seu rebanho. Note-se que por dois motivos o pastor vigia sobre o rebanho: para que não seja roubado pelo ladrão, nem atacado pelo lobo. Todos nós somos pastores; o nosso rebanho é a multidão dos pensamentos e vontades bons e simples. Sobre esse rebanho devemos diligentemente montar guarda nas vigílias acima mencionadas, para que não seja que o ladrão, que é o diabo, roube, pela sugestão, e o logo, que é o apetite carnal, ataque, pelo consentimento neles. Neste Natal é dado um anúncio de alegria aos que assim vigiam.

9. Segue-se: "E disse-lhes um anjo: Eis que vos anuncio uma grande alegria. Pois hoje vos nasceu o Salvador" (Lc 2, 10-11) etc. Acerca disso há concordância no Gênesis XXI: "Nasceu Isaac, e disse Sara: Deus fez um riso para mim; todos os que ouvirem rirão comigo" (Gen 21, 5-6). Sara quer dizer príncipe ou carvão. Assim é a gloriosa Virgem, princesa e rainha nossa, incendiada como um carvão pelo Espírito Santo. Esse riso fez hoje Deus, porque dela nasceu o nosso riso. "Anuncio-vos", disse ele, "uma grande alegria", porque nasceu o riso, nasceu Cristo. Ouvimos nós, hoje, do anjo: "Todos os que ouvirem, rirão comigo". Riamos, pois, e alegremo-nos com a vem-aventurada Virgem, porque nela Deus fez para nós um riso, isto é, uma causa de riso: "Nasceu-vos hoje o Salvador". Se alguém estivesse condenado à morte ou a uma dura prisão, e lhe fosse anunciado: eis que está aqui quem te salvou, não riria, ou não se alegraria? Certamente. Alegremo-nos, pois, também nós, em consciência limpa, em caridade não fingida (2Cor 6, 6), porque hoje nos nasceu o Salvador, que nos salvou do poder do diabo e da prisão do inferno.

10. É-lhes dado um sinal do encontro dessa alegria, dizendo-se: "Esse vos será o sinal: Encontrareis uma criança envolta em panos, e deitada num presépio" (Lc 2, 12). Duas coisas hão de notar-se: a humildade e a pobreza. Feliz aquele que receber esse sinal na testa e na mão, isto é, nas confissão e nas obras. Que quer dizer "encontrareis uma criança" senão: encontraries a sabedoria balbuciando, o poder feito tenro, a majestade prostrada, o imenso pequenino, o rico pobrezinho, o governador dos anjos jazendo num estábulo, o alimento dos anjos como feno dos jumentos, o ilimitado reclinado num estreito presépio? "Esse", pois, "vos será o sinal", para que não pereçais como os egípcios ou como os habitantes de Jericó.
Por isso ao Verbo encarnado, ao parto virginal, ao Salvador nascido seja dada glória nas alturas a Deus Pai, e na terra paz aos homens de boa vontade (cf. Lc 2, 14). Digne-se dar-no-lo aquele que é bendito pelos séculos. Amém.

IV. SERMÃO ALEGÓRICO
11. "Um menino nos nasceu, e um filho nos foi dado; e o seu principado se realizou sobre o seu braço; e o seu nome será chamado admirável, conselheiro, Deus, forte, Pai do futuro século, príncipe da paz" (Is 9, 6). Isso em Isaías IX. Acima (VII) dissera: "Eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, e o seu nome será chamado Emanuel" (Is 7, 14), isto é, Deus-Conosco. Assim Deus se fez menino por nós, nascendo-nos hoje. Havendo muitas razões pelas quais Cristo é chamado menino, apontarei apenas uma, em ordem à brevidade. Se se ferir um menino, ralhar com ele, bater-lhe, e depois lhe mostrar uma flor ou rosa, oferecendo-lhe, não lembrará mais das injúrias, abandona a raiva e corre abraçar-te. Do mesmo modo, se ofenderes a Cristo pecando mortalmente, e lhe fizeres qualquer injúria, e lhe ofereceres a flor da contrição ou a rosa da da lacrimosa confissão (porque as lágrimas são o sangue da alma), não lembrará mais das tuas ofensas, perdoará a culpa, e correrá abraçar-te e beijar-te. Por isso Ezequiel XVIII: "Se o ímpio fizer penitência de todos os seus pecados, não me lembrarei de todas as suas iniquidades" (Ez 18, 21-22). E em Lucas XV, sobre o filho pródigo: "Vendo-lhe o seu pai, moveu-se de misericórdia; e, correndo, lançou-se ao seu pescoço, e beijou-o" (Lc 15, 20). E no segundo livro dos Reis XIV diz-se que Davi recebeu em sua graça o fratricida Absalão e beijou-o (cf. 2Reg 14, 33). "Um menino", portanto, "nasceu-nos". E qual a utilidade para nós no nascimento deste menino? Muita, de todo modo. Ouve Isaías XI: "A criança se deliciará com os seios sobre a toca da áspide, e o lactente meterá a mão no buraco da víbora; não farão mal e não matarão em todo o meu monte santo" (Is 11, 8-9). A víbora é chamada "regulus", pois é como que o rei das serpentes, que é o diabo, que também é áspide, e cuja toca e buraco são os corações dos iníquos, nos quais o nosso menino meteu a mão, e com o poder da sua divindade tirou de lá o diabo. Por isso Jó XXVI: "A sua mão, como a de umaparteira, tirou a tortuosa serpente" (Job 26, 12). O ofício da parteira é conduzir o parido das trevas à luz; assim Cristo, com a mão do seu poder, tirou a antiga serpente, o diabo, dos tenebrosos corações dos réprobos, e assim nem ele nem seus asseclas farão mal aos corpos a não ser que sejam permitidos; nos próprios porcos não puderam entrar senão com permissão (cf. Mc 5, 13); e não matarão as almas com a morte eterna. Antes do advento do Salvador, eles exerciam tanto poder sobre o gênero humano, que possuíam torpemente os corpos, e conduziam miseravelmente as almas aos infernos. "No universo do meu monte santo", isto é, na minha santa Igreja, na qual habito.

12. Segue-se: "E um filho nos foi dado". Há concordância acerca disso no segundo livro dos Reis XXI: "Houve em Gob a terceira guerra contra os filisteus, na qual Adeodato, filho de Salto, pintor de tecidos multicores, de Belém, venceu Golias de Get" (2Reg 21, 19). Note-se que a primeira guerra foi no deserto, por isso: "Jesus foi conduzido ao deserto" (Mt 4, 1) etc.; a segunda, no campo, isto é, em público, por isso: "Jesus estava expulsando um demônio" (Lc 11, 14); a terceira, no lenho, pregado no qual combateu os filisteus, isto é, as aéreas potestades (cf. Eph 2, 2). Essa terceira guerra deu-se em Gob, que quer dizer vala, isto é, as feridas do Redentor, e principalmente na ferida do lado, da qual emanaram para nós dois rios de redenção. Nessa vala, só pela sua misericórdia, foi concedido por Deus Pai que Jesus fosse o nosso "campeão". Ele foi "filho de Salto (que também quer dizer campo)" porque, como disse Marcos, estava no deserto com os animais (cf. Mc 1, 13); ou "filho de Salto" porque coroado de espinhos. Foi pintor de tecidos multicores porque fez para si, no ventre virginal, uma veste multicor, isto é, a humanidade decorada com os sete dons do Espírito Santo. De Belém porque da mesma Virgem aí nasceu hoje. Ou então, foi "filho de Salto" na Paixão; "pintor de tecidos multicores" na ressurreição geral, quando nos vestirá de uma veste multicor, isto é, decorada com os quatro dotes; e "de Belém" na eterna refeição. O nosso lutador, ferido na vala da Paixão, venceu Golias de Get, isto é, o diabo.

13. Por isso se segue: "E o seu principado se realizou sobre o seu braço". Há concordância acerca disso no Gênesis XXII: "Abraão tomou a lenha para o holocausto, e a impôs sobre Isaac, seu filho" (Gen 22, 6). Por isso em João XIX: "E, carregando a sua cruz, saiu para aquele lugar chamado Calvário" (Jo 19, 17). Ó humildade do nosso Redentor! Ó paciência do nosso Salvador! Sozinho, carrega o lenho por todos, no qual será suspenso, crucificado, morto e, como disse Isaías LVII, "morreu o justo, e não há ninguém que medite isso no seu coração" (Is 57, 1). "O seu principado se realizou sobre o seu braço." Por isso o Pai diz em Isaías XXII: "Dar-lhe-ei a chave da casa de Davi sobre o seu braço" (Is 22, 22). A chave é a cruz de Cristo, que nos abriu a porta do céu. E note-se que a cruz é chamada chave e principado: chave porque abriu o céu aos eleitos, e principado porque por sua virtude lançou os demônios no inferno.

14. Segue-se: "E o seu nome será chamado admirável" no Nascimento; "conselheiro" na pregação; "Deus" na operação dos milagres; "forte" na Paixão; "Pai do futuro século" na Ressurreição. Quando ressuscitou, deixou-nos uma esperança certa de ressuscitarmos, como uma herança que deixou a seus filhos depois de si. "Príncipe da paz" ser-nos-á na eternidade. Digne-se conceder-no-la esse Deus bendito. Amen.

V. SERMÃO MORAL
15. "Um menino nos nasceu" no sentido moral. Desse menino, Mateus XVIII diz: Se não vos converterdes e não vos fizerdes semelhantes a esse menino (cf. Mt 18, 3) etc. O menino, acordado, no berço, chora; nu, não se envergonha; agredido, recorre ao seio da mãe; quando a mãe quer desmamá-lo, passa algo de amargo nos seios; não conhece a malícia do século; não sabe pecar; não faz mal ao próximo; não se encoleriza; não odeia ninguém; não procura riquezas; não admira a pompa deste mundo; não faz acepção de pessoas. O menino é o penitente convertido, que no passado teve o coração inflado pela soberba, ergueu-se na jactância das palavras, cresceu na opulência das coisas; mas fez-se menino, humilde e desprezível a seus olhos, que, quando acorda, isto é, examina na consciência a vida passada, chora amargamente; não se envergonha de ficar nu ou pobre por Cristo, ou não se envergonha de desnudar-se na confissão; quando sofre injúrias, não fica indignado, mas recorre à Igreja e reza pelos que o perseguem e caluniam. A Mãe Igreja o desmamou, quando juntou aos seios da volúpia carnal, que ele costumava sugar, o amargor das penas. As demais analogias dispensam explicação.
Quando, pois, um mundano se converte e se faz menino de Cristo, com júbilo no coração, em voz de exultação, devemos proclamar: "Um menino nos nasceu". Por isso está escrito em João XVI: "A mulher", isto é, a santa Igreja, "em trabalho de parto", na pregação ou compaixão dos pecadores, "sente-se triste, mas quando dá à luz", na contrição e confissão do pecador, "a criança", isto é, no novo converso, "não se lembra das dores por causa da alegria, porque nasceu um homem no mundo" (Jo 16, 21). E de São João Batista, por graça de Deus, é dito: "E muitos se alegrarão no seu nascimento" (Lc 1, 14).

16. "E um filho nos foi dado." Demos graças a Deus, porque de um servo do mundo e do diago recebemos um filho de Deus, que diz no Salmo: "O Senhor disse-me: Tu és meu filho, eu hoje te gerei", pela graça, tu que ontem eras escravo pela culpa; e, porque és filho, "pede-me, e dar-te-ei as nações", isto é, os pensamentos rebeldes, "em herança, e os confins da terra em tua posse" (Ps 2, 7-8), isto é, os sentidos da tua carne, para que venças sobre ambos. "Um filho" do qual se dizno Gênesis XLIX: "Um filho foi acrescentado a José, foi-lhe acrescentado um filho e de bela aparência" (Gen 49, 22). Acrescentado pela pobreza, por isso José, no Gênesis XLI, diz: "Deus me fez crescer na terra da minha pobreza" (Gen 41, 52). De bela aparência pela humildade, por isso no Gênesis XXIX diz-se que "Raquel", que quer dizer ovelha, isto é, humilde, "tinha uma bela face e aparência atraente" (Gen 29, 17). "Foi-nos dado. Porque estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado" (Lc 15, 24). A quem foi dado e encontrado? Ao trabalho da penitência.

17. Por isso se segue: "E o seu principado se realizou sobre o seu braço". Acerca disso, há concordância no Gênesis penúltimo: "Issacar é um asno deitado nos confins. Viu que o descanso era bom, e que a terra era ótima. Abaixou o braço para carregar" (Gen 49, 14-15). Issacar, que quer dizer "homem da recompensa" é o penitente, que trabalha virilmente por uma recompensa eterna, e por isso é chamado asno forte, do qual fala o Eclesiásitco XXXIII: "Ao asno o alimento, a vara e a carga" (Eccli 33, 15). Algum alimento para que não desfalesça; a vara da pobreza, para que não fique insolente e dê coices; e a carga da obediência, para que não deixe o trabalho. Essas três coisas constituem-se em remédio para o penitente.
Deite-se ele "nos confins". Os dois confins da vida são a entrada e a saída. Neles se deite, por que no primeiro se despreza, e no segundo chora sobre si mesmo. O estulto, pelo contrário, não nos confins, mas no meio do caminho habita. Por isso em Juízes V: "Por que habitas entre os dois confins, para ouvir os murmúrios dos rebanhos?" (Judic 5, 16). No meio do nascimento e da morte está a vaidade do século; os rebanhos são os movimentos carnais, cujos murmúrios, isto é, suaves deleites, ouve aquele que descansa na vaidade do século. Mas o penitente, morando nos confins, eleva o olho da mente e vê o descanso da glória feliz, vê quantos bens há na glorificação dos corpos e na terra da eterna estabilidade, e quão ótima é a contemplação da Trindade; abaixa o braço para carregar o principado, isto é, o jugo penitencial, pelo qual ele reina sobre si mesmo e sobre as suas tentações. Por isso o Eclesiástico VI diz: "Abaixa o teu braço e carrega-o" (Eccli 6, 26).

18. Segue-se: "E o seu nome será chamado admirável". Note-se que nestas seis palavras se encerra bravemente a perfeição do penitente ou do homem justo. Porque ele é "admirável" no minucioso e frequente exame de si mesmo, porque vê maravilhas no profundo do seu coração. Por isso é "admirável" aquele Jó, cuja paciência é admirada por todo o mundo, VII: "Eu não pouparei a minha boca; falarei na tribulação do meu espírito, confabularei com a amargura da minha alma" (Job 7, 11). A tribulação do espírito e a amargura da alma nada deixam sem examinar, quando examina tudo com a unha.
"Conselheiro" na necessidade espiritual ou corporal do próximo, por isso mais uma vez em Jó XXIX: "Eu fui o olho do cego e o pé do coxo" (Job 29, 15). Cego é aquele que não vê a sua consciência; coxo o que se desvia do caminho reto da justiça. Mas o homem justo ambos aconselha, porque ele é o "olho" que instrui aquele, para que conheça a própria consciência, e o "pé" desse, que o sustenta e o dirige, para que ponha os passos das obras no caminho da justiça.
Assim se segue: "Deus". No governar os súditos, o justo é chamado Deus. Por isso o Senhor diz a Moisés no Êxodo VII: "Eis que eu te constituí o Deus do Faraó" (Ex 7, 1), e no mesmo livro XXII: "Se o ladrão se esconder, o senhor da casa virá aos Deuses", isto é, sacerdotes, "e jurará que não extendeu a sua mão na coisa do seu próximo" (Ex 22, 8); e: "Eu disse: sois Deuses" (Ps 81, 6).
Ou ainda: "Deus" em grego é "Theòs", isto é, "vidente", pois "theorò" quer dizer "vejo", aquele que tudo "vê"; "thèo" também quer dizer "corro", porque tudo percorre. O penitente é chamado Deus, isto é, aquele que vê ou corre; porque vê o que está acima, na contemplação, e assim corre ao que está à frente, na agonia penitencial.
"Forte", na luta contra as tentações. Por isso, no livro dos Juízes XIV: "Apareceu um filhote de leão feroz, rugindo, e foi-lhe ao encontro Sansão. O Espírito do Senhor entrou em Sansão, e ele dilacerou o leão como se faz em pedaços um cabrito" (Judic 14, 5-6). O filhote de leão é o espírito de soberba ou luxúria ou outro vício; feroz pela insistência, rugindo pela astúcia; aparece de improviso, chega com ímpeto. Mas quando o espírio de contrição, de divino amor e temor, entra no penitente, dilacera o espírito de soberba, simbolizado no leão, e faz em pedaços o espírito da luxúria, simbolizado no cabrito, pois destroi minuciosamente ele e as suas ocasiões.
"Pai do futuro século", na pregação por palavras e exemplos. Por isso o Apóstolo diz: "Filhinhos meus, que repetidamente dou à luz, até que Cristo seja formado em vós" (Gal 4, 19), e: "Eu vos gerei pelo evangelho" de Cristo (1Cor 4, 15), para a vida eterna.
"Príncipe da paz", na tranquila coabitação da mente e do corpo. Por isso Jó V: "Os animais da terra", isto é, os movimetnos da tua carne, "ser-te-ão pacíficos; e conhecerás que haverá paz no teu tabernáculo" (Job 5, 23-24); e XI: "Enterrado", isto é, escondido do mundo pela contemplação, "dormirás seguro. Descanasrás e não haverá ninguém que te aterrorize" (Job 11, 18-19).
Isso se digne conceder-nos aquele que é bendito pelos séculos. Amém.

Traduzido por nós de http://www.santantonio.org/portale/sermones/indice.asp?ln=LT&s=0&c=0&p=0

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