27 de dezembro de 2010

27 de dezembro: São João Evangelista


SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA

1. Naquele tempo: Disse Jesus a Pedro: "Segue-me" (Jo 21, 19) etc.
Neste evangelho, duas coisas serão explicadas: a imitação de Cristo, e o amor deste para com o seu fiel.

I. DA IMITAÇÃO DE CRISTO
2. Imitação de Cristo, como está escrito: "Segue-me". Isso disse a Pedro; isso diz também a todo cristão: "Segue-me", nu, segue o nu, despojado, segue o despojado. Por isso diz Jeremias III: "Chamar-me-ás Pai, e não cessarás de seguir após mim" (Jer 3, 19). "Segue-me", portanto, larga a bagagem, porque, carregado, não consegues seguir a mim, que vou correndo. "Corri para a sede" (Ps 61, 5), isto é, para a salvação do homem, diz ele. Para onde correu? Para a cruz. Corre também tu após ele, e como ele carregou a sua cruz por ti, toma também tu a tua por ti mesmo. Por isso Lucas IX: "Se alguém quiser seguir-me, abnegue-se a si mesmo", na renúncia à própria vontade, "e tome a sua cruz", na mortificação da carne, "todo dia", isto é, continuamente, "e assim me siga" (Lc 9, 32). "Segue-me", portanto, "assim". E, se quiser vir a mim e encontrar-me, "segue", que em latim, "sequere", vem de "seorsum quaere", isto é, busca separadamente. Por isso falou aos discípulos em Marcos VI: "Vinte à parte, a este lugar deserto, e descansai um pouco. Porque havia muitos que iam e vinham, e não tinham nem tempo para comer" (Mc 6, 31). Ai! Quantos afetos e barulhos de pensamentos carnais vão e vem pelo nosso coração, de modo que nem temos tempo para comer o alimento da doçura eterna, e de sentir o sabor da contemplação interior. E, assim, diz o piedoso mestre: "Vinde à parte" da turba tumultuosa, "para este lugar deserto", isto é, para a solidão da mente e do corpo, "e descansai um pouco". Deveras "um pouco" porque, como diz o Apocalipse VIII: "Fez-se silêncio no céu, por cerca de meia hora" (Apoc 8, 1). "Quem me dará penas como a pomba" (Ps 54, 7) etc.
Por isso Oseias II diz: "Eis que eu o aleitarei, e conduzi-lo-ei para a solidão, e falarei ao seu coração" (Os 2, 14). Note-se que, nessas três palavras, apontam-se os três estados: incipientes, proficientes e perfeitos. O incipiente aleita-se, quando a graça o ilumina, para que cresça e aproveite de virtude em virtude; e então se o conduz, do barulho dos vícios, do tumulto dos pensamentos, para a solidão, isto é, para a quietude da alma; e aí, já perfeito, fala-se-lhe ao coração; isso se dá quando sente a doçura da inspiração divina, e suspende-se totalmente na alegria da alma. Ó quão grande é, então, a devoção, admiração e exultação no seu coração! A grandeza da devoção o eleva sobre si mesmo, a grandeza da admiração o conduz para cima de si mesmo, a grandeza da exultação o torna alheio a si mesmo. "Segue-me", pois.
Fala como uma mãe piedosa, que, quando ensina a criança a andar, mostra-lhe um pão ou uma maçã, dizendo: Vinde atrás de mim, e dar-te-ei isso. E, quando ela se aproxima, e quase o toma, a mãe afasta-se um pouco, e mostra a coisa, dizendo: Segue-me, se queres recebê-la. Algumas aves também tiram os seus filhotes dos ninhos, e ensinam-lhes o seu voo, e a seguir-lhes (cf. Deut 32, 11). Assim Cristo, para que o sigamos, mostra-se como exemplo, e promete um prêmio no reino.

3. "Segue-me", pois, porque eu conheço um bom caminho, pelo qual te conduzirei. Desse se fala nos Provérbios IV: "Mostrar-te-ei o caminho da sabedoria; conduzir-te-ei pelas veredas da equidade: quando entrares por elas, os teus passos não se estreitarão, e, correndo, não acharás tropeço" (Prov 4, 11-12). O caminho da sabedoria é o caminho da humildade; todo o mais é caminho da estupidez, posto que de soberba. Isso explicou-nos dizendo: "Aprendei de mim" (Mt 11, 29) etc. A vereda tem a largura de dois pés, de modo que não se pode passá-la a dois; é chamada, em latim, "semita", que vem de "semi iter", ou seja, meio caminho. As veredas da equidade são a pobreza e a obediência, pelas quais Cristo conduz o pobre e obediente com o seu exemplo. Nelas não há tortuosidade, mas tudo é equidade e retidão. Mas, vede que coisa admirável: sendo elas estreitas, diz-se que os passos, nelas, não se estreitam. A estrada do mundo é larga e espaçosa, cuja largura os mundanos, como bêbados, conseguem medir, porque para o bêbado toda largura é estreita. Porque a malícia tem angústia, ao passo que a pobreza e a obediência, naquilo mesmo que tiram, aí dão liberdade, porque a pobreza torna o homem rico, e a obediência, livre. Quem corre atrás de Jesus por essas veredas não tem o tropeço das riquezas ou da própria vontade.
"Segue-me", pois, e mostrar-te-ei "o que olho nenhum viu, nem ouvido ouviu, nem ninguém imaginou no seu coração" (1Cor 2, 9). "Segue-me, e dar-te-ei", como diz Isaías XLV, "os tesouros escondidos, e os mistérios dos segredos" (Is 45, 3); e no mesmo livro, LX: "Então verás e afluirás, e o teu coração admirar-se-á e dilatar-se-á" (Is 60, 5). Verás Deus face-a-face como ele é (cf. 1Cor 13, 12; 1Jo 3, 2); afluirás às delícias e riquezas da dupla estola da alma e do corpo; o teu coração admirará as ordens angélicas, as mansões dos bem-aventurados, e assim se dilatará de alegria, em voz de exultação e confissão. "Segue-me", pois.

II. DO SEU AMOR PARA COM O SEU FIEL
4. Seu amor para com o seu fiel, como está escrito: "Voltando-se Pedro" (Jo 21, 20). Quem segue deveras a Cristo quer que todos o sigam, e assim volta-se para o próximo pela solicitude da alma, devota oração e pregação da palavra. Isso significa o voltar-se de Pedro. O mesmo se diz no último capítulo do Apocalipse: "O esposo e a esposa", isto é, Cristo e a Igreja, "dizem: Vem. E quem ouve diga: Vem" (Apoc 21, 17). Cristo, pela inspiração, e a Igreja, pela pregação, dizem ao hoemm: "Vem". E quem os ouve, diga ao seu próximo: "Vem", isto é, segue Jesus.
"Voltando-se Pedro, viu aquele discípulo que Jesus amava, seguindo-o" (Jo 21, 20). Jesus ama o que o segue; por isso diz nos Números XIV: "O meu servo Caleb, que me seguiu, introduzirei na terra que cotornou, e a sua posteridade a possuirá" (Num 14, 24). "Que Jesus amava": assim se designa João, não porque Jesus amasse só ele, mas porque o amava mais que os outros. Amava também os outros, mas era familiar a esse. Deu-lhe o melhor da sua doçura, porque, sendo virgem quando foi escolhido por ele, virgem permaneceu; por isso confiou-se a sua Mãe. Também foi ele que reclinou-se sobre o seu peito durante a ceia. Isso foi um sinal de grande amor, porque só ele reclinou-se sobre o peito de Jesus, "no qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência" (Col 2, 3); nisso já se previa o quanto escreveria dos mistérios divinos, mais que os outros.

5. Note-se que Jacó reclinou-se sobre uma pedra, e João sobre o peito de Jesus. Aquele no caminho, esse na ceia. Jacó simboliza os peregrinos, e João, os bem-aventurados. Aqueles no caminho, esses na pátria. Diz-se no Gênesis XXVIII: Jacó, saindo de Bersabé, ia para Harão. Querendo descansar, reclinou a cabeça numa pedra e dormiu. Viu, em sonho, uma escada levantada, e anjos subindo e descendo por ela, e o Senhor no topo da escada (cf. Gen 28, 10-13). Jacó, ainda peregrino, ainda imerso em muitas tristezas, saindo de Bersabé, que quer dizer sétimo poço, isto é, a concupiscência do mundo, que não tem fim, assim como do sétimo dia não se lê que tenha tido fim, rumava para Harão, que quer dizer excelso, isto é, a Jerusalém celeste. Por isso diz, com Habacuc: "Subirei ao nosso povo que está em paz" (Hab 3, 16), que triunfou sobre o mundo.
E, porque quer repousar do trabalho da sua peregrinação, também reclina a cabeça sobre uma pedra e dorme. A cabeça é a alma, a pedra, a constância da fé; a escada erguida, a dupla caridade; os anjos são os homens justos, subindo a Deus pela elevação da alma, e descendo ao próximo pela compaixão da alma. O justo peregrino, portanto, para descansar, coloca a alma sobre a constância da fé. Por isso dizem os Provérbios XXX: “As lebrezinhas, povo fraco, que fazem a sua habitação na pedra” (Prov 30, 26). A lebrezinha, animal tímido, também coloca suas esperanças na pedra da fé, para aí descansar e dormir, e ver em si mesmo erguida a escada da caridade.
E note-se que por dois motivos o Senhor está no topo da escada, a saber: para sustentá-la e para receber os que sobem por ela. Sustenta, pois, ele o peso da nossa fragilidade, para que consigamos subir pelas obras de caridade; recebe os que sobem, para que com ele, eterno e bem-aventurado, sejamos eternos e bem-aventurados. E então, naquela ceia da eterna plenitude, reclinar-nos-emos, com João, sobre o peito de Jesus. O coração fica no peito, e ao amor no coração. No seu amor, portanto, reclinar-nos-emos, porque o amamos de todo o coração e de toda a alma, e nele encontraremos todos os tesouros da sabedoria e da ciência.
Ó amor de Jesus! Ó tesouro guardado no amor, sabedoria de inestimável sabor e ciência do conhecimento! “Serei saciado quando aparecer a vossa glória” (Ps 16, 15); e: “Isto é a vida eterna: que vos conheçam a vós, único Deus verdadeiro, e quem enviastes, Jesus Cristo” (Jo 17, 3). Ao qual sejam dados o louvor e a glória pelos séculos eternos. Amém.

III. SERMÃO ALEGÓRICO
6. "Uma grande águia, com asas grandes, grande distância entre os membros abertos, cheia de penas e variedade, vem ao Líbano, e contempla o cerne do cedro" (Ez 17, 3). Isso em Ezequiel XVII. A águia é assim chamada devido à agudeza de sua vista, e o bem-aventurado João, que, por sutil intuição da alma, elevou-se sobre si mesmo e viu o Filho Unigênito, que é no seio do Pai, o Verbo, que existia no princípio, e no-lo contou (cf. Jo 1, 18.1). "E nós sabemos que o seu testemunho é verdadeiro" (Jo 21, 24).
Por isso Ezequiel I: "Face de homem, e face de leão à direita, e face de boi à esquerda, e face de águia, acima desses quatro" (Ez 1, 10). À direita, a prosperidade, à esquerda, a adversidade. Mateus e Marcos, designados pelo homem e pelo leão, estiveram à direita, porque escreveram sobre a Encarnação e pregação de Cristo, nas quais ele foi próspero. Lucas, porém, é designado pelo boi, que costumava ser oferecido em sacrifício, porque começou tratando do sacerdócio, e o conduziu para ser imolado ao templo e altar da cruz, local da adversidade da Paixão. João é designado na águia, que voa mais alto do que as outras aves, porque ele revelou mais alto mistério que os demais, e por diz-se estar "acima desses quatro". Mas é algo de muito admirar que se diga "acima desses quatro", sendo ele um dos quatro. O motivo é que ele estava elevado acima de si mesmo. Deveras sobre si mesmo, porque falou acima do homem, e por isso é chamado "grande águia, de asas grandes". Conta-se quais eram as grandes asas dessa águia na leitura da Missa de hoje, Eclesiástico XV: "Abriu a sua boca no meio da Igreja" (Eccli 15, 5). Eis o que ele disse no Apocalipse: "E vi e ouvi a voz de uma águia que voava pelo meio do céu" (Apoc 8, 13), que simboliza a Igreja, em cujo meio, isto é, comumente a todos, "abriu a sua boca. E encheu-o do espírito de sabedoria e inteligência" (Eccli 15, 5). Eis duas grandes asas, com as quais voou até o mistério da divindade: "No princípio era o Verbo" (Jo 1, 1) etc.

7. Tinha "grande distância entre os membros abertos". As virtudes são como membros da alma, que se abrem quando se estendem para as obras de caridade. Concorda acerca disso o que é dito na leitura da Missa de hoje: "Quem teme a Deus faz o bem, e quem carrega a justiça dentro de si a abraça; e ela lhe virá ao encontro como uma mãe honrada, e como uma mulher em sua virgindade o receberá" (Eccli 15, 1-2). O bem-aventurado João, por ter temido a Deus com um temor filial e casto, faz o bem, isto é, estendeu-se para as obras de caridade. Isso fica mais claro lendo-se a sua epístola, na qual escreveu sobre essa caridade de modo tão eficaz quanto pôde. "Começou a fazer e a ensinar" (Act 1, 1). Ele também teve a justiça dentro de si, pois, como diz o Eclesiástico L, era "como um vaso de ouro maciço, ornado de toda pedra preciosa" (Eccli 50, 10). E, por que carregava dentro de si a justiça, isto é, a verdade do evangelho, por isso abraçou-a, em seus frutos.
O Senhor disse no evangelho: Quem abandonar pai, mãe, esposa, receberá o cêntuplo (cf. Mt 19, 29) etc. O bem-aventurado João abandonou mãe e esposa pelo Senhor; e o Senhor lhe deu não outra mãe senão a sua própria. Por isso foi dito: "Vir-lhe-á ao encontro como uma mãe honrada". Santa Maria, Mãe do Filho de Deus, rica em virtudes, honrada pelos privilégios das graças, veio ao encontro do bem-aventurado João ao pé da cruz: ela à direita e ele à esquerda permaneciam em pé; e aí, como uma mulher na sua virgindade, recebeu-o: a virgem recebeu o virgem. Por isso João XIX diz: "Vendo Jesus, em pé, a sua mãe e o discípulo que amava, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Então disse ao discípulo: Eis aí a tua mãe. E daquela hora em diante, o discípulo recebeu-a como 'sua'" (Jo 19, 26-27), isto é, "mãe" e refúgio. Ó peroláceo resplendor da virgindade do bem-aventurado João, que mereceu ser tomado como filho da Mãe do Filho de Deus, e recebê-la como sua!

8. Por isso, continua-se falando dessa virgindade: "Cheia de penas e variedade". Jó XXIX diz algo parecido: "Morrerei no meu ninhozinho, e multiplicarei os meus dias como a palma" (Job 29, 18). A ave constroi o seu ninho com penas para o lado de dentro, fazendo-o macio, e isso por dois motivos: para que os ovos não se machuquem nos gravetos, e para que os filhotes, sem penas, encontrem nas plumas calor e quietude. O ninhozinho do bem-aventurado João foi a consciência humilde. Perceba-se que se diz "ninhozinho" e não "ninho". Porque a virgindade foi conservada pela humildade. A virgem soberba não é virgem, mas corrupta. O diminutivo de "ninho" denota a humildade. O seu ninhozinho foi construído com a maciez das plumas, isto é, enfeitado com a suavidade da pureza virginal, nas quais não se feriram os ovos dos pensamentos, e os filhotes das obras tiveram proteção e quietude.
Essa águia foi "cheia de penas e variedade", porque, da pureza da mente, vai à bela variedade das obras. Bela variedade a dos lírios misturados com rosas. Por isso mencionam-se essas duas flores na leitura da missa: "Vestiu-o com a estola da glória", quanto à pureza da virgindade, “ajuntou para ele um tesouro de formosura e exultação” (Eccli 15, 6), quanto à magnificência das obras. E, se não terminou a vida pelo martírio, mesmo assim foi mártir, visto que foi jogado em óleo fervente, exilado para Patmos, bebeu veneno em Éfeso, e ainda assim saiu, por graça de Deus, ileso, porque “os seus dias foram multiplicados como os da palma”. Nem o gelo nem o calor tiram a verdura da palma; assim o bem-aventurado João não perdeu a constância da alma nem a virgindade do corpo, quer pelas perseguições, quer pelas tentações; e assim morreu no seu ninhozinho, porque nela perseverou até a morte. Ou podemos chamar seu ninhozinho o sepulcro, no qual, celebrados os divinos mistérios, desceu vivo no dia de hoje, e, como se quisesse dormir, deitou-se.

9. Segue-se: “Veio ao Líbano, e tirou o miolo do cedro”. O monte do Líbano, que quer dizer brancura, é a pátria celeste, cujos príncipes são mais brancos do que a neve (cf. Lam 4, 7). E, no Apocalipse III: “Andarão comigo de branco, porque são dignos” (Apoc 3, 4). O cedro, árvore sublime (cf. 4Reg 19, 23; Is 2, 13) é a altura da divindade. Porque a águia voou, com suas grandes asas, para aquela pátria celeste, e contemplou o cerne do cedro, quando disse: No princípio era o Verbo etc. Ou então: o cedro imperecível é a humanidade de Jesus Cristo, que não conheceu a corrupção, e cujo cerne é a divindade. Contemplou, portanto, o cerne do cedro, e no-lo contou, dizendo: “O Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1, 14). O mesmo é dito na leitura da Missa: “Alimentou-o com o pão da vida e inteligência, e deu-lhe a beber a água da sabedoria salutar” (Eccli 15, 3). Alimentar-se com o pão da vida, beber a água da sabedoria nada mais é que contemplar o cerne do cedro. Roguemos, pois, ao bem-aventurado João, para que, por suas preces, conceda-nos o Senhor desprezar as coisas terrenas, voar às celestes, para que mereçamos ser restaurados pelo cerne do cedro. Conceda-no-lo aquele que é bendito pelos séculos dos séculos. Amen.

IV. SERMÃO ALEGÓRICO
10. "Grande águia" etc. Baseados nessa passagem, três coisas se hão de notar, do ponto de vista moral: a fé firme do penitente ou do homem justo, a esperança certa, e a caridade perfeita.
Da primeira, como está escrito: "Grande águia, com asas grandes, de longos membros". A águia é assim chamada devido à agudeza da sua vista ou do rostro, o qual, quando não consegue mais encontrar comida, bate numa pedra, e então diz-se que é renovado. "Renovar-se-á, como a da águia, a tua juventude", diz o Salmo (Ps 102, 5). Tanta é a agudeza da sua vista que, estando no ar, vê os peixinhos na profundidade da água. Assim o penitente, assim o católico, com o olho do coração, iluminado pela fé - porque o quanto creres tanto verás -, vê as coisas ocultas de Deus, e com a boca professa-o publicamente. Por isso o Apóstolo fala, sobre a agudeza da vista e do rostro: "O coração crê para a justiça, e a boca professa para a salvação" (Rom 10, 10). Águia deveras grande - porque grande e agudo é o olho da fé - é aquela que vê o Filho de Deus no seio do Pai descendo ao ventro da Virgem, nascido no estábulo, reclinado no presépio, envolvido num paninho, apresentado no templo com o sacrifício dos pobres, fugindo para o Egito, peregrino no mundo, montado num jumentinho, escarnecido pelo povo, flagelado, cuspido, bebendo fel e vinagre, suspenso nu no patíbulo, sepultado, libertando os cativos dos infernos, ressurgindo do sepulcro, ascendendo ao céu, enchendo os apóstolos do Espírito Santo, retribuindo a cada um segundo as suas obras no juízo. Eis a "grande águia", porque tem vista e rostro agudos. Sobre isso fala o Apóstolo: "A nossa boca está aberta para vós, ó coríntios" (2Cor 6, 11). O que cria no fiel coração, isso fazia patente com a boca, pregando.
Segue-se: "Com asas grandes". Das mesmas se fala no Apocalipse XII: "Foram dadas à mulher duas grandes asas, para que voasse ao deserto, para o seu lugar" (Apoc 12, 14). A mulher é a alma penitente, da qual Isaías LIV declara: "Mulher abandonada e de espírito melancólico, o Senhor te chamou" (Is 54, 6). Essas duas asas são a contrição e a confissão, com as quais voa para o deserto da penitência, onde encontra um lugar de paz e quietude. Note-se que se diz dessas asas que são grandes. Porque as asas da verdadeira contrição têm quatro grandes penas. A primeira é a amargura pelos delitos passados; a segunda, o firme propósito de não recair; a terceira, perdoar de coração todas as injúrias; a quarta, reparar o que fez contra cada pessoa.
Na asa da confissão também há quatro. A primeira é a humilhação da alma e do corpo perante o sacerdote. Está escrito que Maria sentava-se aos pés do Senhor (cf. Lc 10, 39); e em Isaías XLVII: "Desce, senta no pó, virgem filha da Babilônia; senta-te na terra" (Is 47, 1). "Desce" pela humildade da alma, "senta no pó" ou na "terra" da humilhação do corpo. A segunda é a acusação geral e singular da própria iniquidade: "Confessarei contra mim", diz o Salmista (Ps 31, 5); e ainda: "Fui eu que pequei, eu que agi iniquamente" (2Reg 24, 17). A terceira é a revelação das circunstâncias, que são: O que, a quem, onde, por que meios, com que frequencia, por que, como, quando (cf. Dom I in Quadrag., sermo alter, II). A quarta é o recebimento voluntário e devoto da penitência imposta pelo sacerdote, para que possa dizer, com Samuel: "Fala, Senhor, porque o teu servo escuta" (1Reg 3, 9).
Por isso fala-se, ainda, sobre a satisfação da penitência: "De membros longos". A mão, que antes era fechada para dar esmola, já se estende amplamente. Por isso, em Marcos III: Havia na sinagoga um homem que tinha a mão seca. O Senhor falou-lhe: Estende a tua mão. E, estendendo, ficou-lhe curada a mão (cf. Mc 3, 1. 5). Os joelhos estavam débeis e como que contraídos; os pés não faziam mais a sua função, porque a preguiça os privara disso; como dizem os Provérbios XXVI: "Diz o preguiçoso: A leonesa está na estrada e o leão nos caminhos. Como a porta gira sobre o seu eixo, assim o preguiçoso no seu leito" (Prov 26, 13-14); mas agora corre à oração, dobra os joelhos. Eis a "grande águia, com membros grandes".

11. A seguir, da segunda: "Cheia de penas e variedade". Semelhantemente em Jó XXXIX: "Acaso a águia se erguerá por tua ordem, e porá seu ninho nas alturas?" (Job 39, 27). O penitente ou religioso eleva-se das coisas terrenas com as supracitadas asas, ao preceito do Senhor, que diz: "Vinde após mim" (Mt 4, 19) etc.; e ainda: "Deixa que os mortos sepultem seus mortos" (Mt 8, 22); "e nas alturas", isto é, nos prêmios da vida eterna, "porá o seu ninho", isto é, a sua esperança. Esse ninho ela constroi com as penas da paciência e benignidade. Com elas construíra-se o ninho Jó, quando dizia XIII: "Mesmo que me mate, esperarei nele" (Job 13, 15). É fácil sofrer, se não falta paciência (Ovídio). "Cheia de penas e variedade." Quando a variedade de tentações e perseguições surge, o homem justo constroi o seu ninho com penas de paciência, recobre a si mesmo e aos filhotes, que são suas obras, e assim, em sua paciência, possuirá sua alma (cf. Lc 21, 19).

12. Segue-se da terceira: "Veio ao Líbano e contemplou o cerne do cedro". O cedro, a cujo odor fogem as serpentes, é a caridade, pela qual fogem do coração do justo as serpentes da inveja, ira, rancor e ódio. Por isso o Apóstolo, na primeira epístola aos Coríntios XIII, escreve: "A caridade não é invejosa", porque, por não desejar nada no presente mundo, não sabe invejar os sucessos alheios; "não age incorretamente", porque, dilatando-se no amor únicamente de Deus e do próximo, ignora tudo o que foge à retidão; "não pensa mal" (1Cor 13, 4-5), porque, consolidando o amor da pureza da alma, de modo a desarraigar todo ódio, não pensa em coisas impuras; e diz-se que vem ao monte Líbano, que quer dizer brancura, ao qual o justo vem e contempla o cerne do cedro. O cerne é a doçura da contemplação, ou a compaixão do próximo; quando se lança no amor de Deus, sente a sua doçura; quando se estende ao amor do próximo, então toma o cerne da compaixão.
Roguemos, pois, ao Senhor Jesus Cristo, que nos dê asas de contrição e confissão, para voarmos dos nossos pecados, colocar o ninho da esperança no céu, e tomar o cerne da dupla caridade.
Conceda-no-lo aquele que é bendito pelos séculos. Amém.

Traduzido por nós de http://www.santantonio.org/portale/sermones/indice.asp?ln=LT&s=0&c=0&p=0

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