4 de fevereiro de 2014

Do fogo do inferno.

Quis poterit habitare de vobis cum igne devorante?... Cum ardoribus sempiternis? — “Qual de vós poderá habitar com o fogo devorador?... Com os ardores sempiternos?” (Is. 33, 14.)

Sumário. Na terra a pena do fogo é a maior de todas; mas há tamanha diferença entre o nosso fogo e o do inferno, que o nosso parece apenas um fogo pintado, ou antes, frieza. Como então, irmão meu, poderás habitar com esses ardores sempiternos, se por desgraça tua te condenares? Tu que não podes caminhar pelo ardor do sol, nem ficar com um braseiro num quarto fechado, nem aturar uma fagulha que se desprende de uma vela?

I. A pena que mais atormenta os sentidos do condenado é o fogo do inferno, que afeta o tato. Por isso o Senhor faz dele menção especial no juízo: Discedite a me, maledicti, in ignem aeternum (1) — “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno”. Até na terra a pena do fogo é a maior de todas, mas há tamanha diferença entre o nosso fogo e o do inferno, que o nosso, no dizer de Santo Agostinho, parece apenas um fogo pintado. E São Vicente Ferrer acrescenta que, comparado àquele, o nosso fogo é frio. A razão é que o nosso fogo foi criado para nossa utilidade, ao passo que o do inferno foi criado por Deus expressamente para atormentar. Além de que, como diz Jeremias, aquele fogo é um fogo vingador aceso pela cólera de Deus (2). Por isso é que Isaías chama o fogo do inferno: espirito de ardor. Si abluerit Dominas sordes... in spiritu ardoris (3) — “O Senhor lavará as manchas... com o espirito de ardor”.

O condenado será enviado não só ao fogo, mas para dentro do fogo:  Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno. De maneira que o desgraçado será envolvido pelo fogo como a lenha na fornalha. O réprobo terá um abismo de fogo abaixo de si, outro abismo acima de si, outro por todos os lados. Quando apalpar, quando vir, quando respirar, não apalpará, não verá, não respirará senão fogo. Estará no fogo como o peixe na água. — Não só este fogo cercará o condenado, mas penetrar-lhe-á todos os membros para mais o atormentar. Todo o seu corpo será uma fogueira. As vísceras arderão no ventre, o coração dentro do peito, o cérebro na cabeça, o sangue nas veias, a medula nos ossos. Em uma palavra, cada réprobo tornar-se-á uma fornalha ardente: Pones eos ut clibanum ignis (4) — “Vós os poreis como um forno aceso”.

II. Quantos há que não podem caminhar pelo ardor do sol, nem ficar com um braseiro num quarto fechado, nem aturar uma fagulha que se desprende de uma vela, e contudo não temem o fogo do inferno, o fogo devorador, como o chama o Profeta: Quis poterit habitare de vobiscum igne devorante? — “Qual de vós poderá habitar com o fogo devorador?” Assim como o animal feroz devora o cabritinho, assim o fogo do inferno devora o condenado: devora-o, mas sem o fazer morrer. São Jerônimo acrescenta que esse fogo trará consigo todos os tormentos e todas as dores que sofremos na terra; dores de peito, de cabeça, de ventre, de nervos e mesmo de frio. Finalmente assevera São Crisóstomo que todos os sofrimentos deste mundo não passam de uma sombra das penas do inferno.

Ó meu Jesus, o vosso sangue e a vossa morte são a minha esperança. Morrestes para me salvar da morte eterna. Quem é, Senhor, que recebeu maior parte dos frutos de vossa Paixão do que este miserável, que tantas vezes mereceu o inferno? Ah! Não continue a viver ingrato às inúmeras graças que me fizestes. Livrastes-me do fogo do inferno, porque não quereis que eu arda nesse fogo vingador, mas sim que seja abrasado no doce fogo do vosso amor. Ajudai-me a satisfazer o vosso desejo. Se estivesse no inferno, nunca mais poderia amar-Vos, mas, já que ainda posso amar-Vos, quero fazê-lo.

Amo-Vos, Bondade infinita, amo-Vos, meu Redentor, que tanto me tendes amado. † Jesus meu Deus, amo-Vos sobre todas as cousas (5). No futuro espero consagrar-Vos a vida que me resta. Renuncio a tudo. Só quero pensar em Vos servir e agradar. Recordai-me sem cessar o inferno que mereci e as graças que me tendes feito. Não permitais que eu torne a voltar-Vos as costas e a condenar-me por minha própria culpa, a esse abismo de tormentos.  — O Mãe de Deus, rogai por mim, pobre pecador. A vossa intercessão livrou-me do inferno. Ó minha Mãe, livre-me também do pecado, que só me pode condenar de novo ao inferno. (II 119.)

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1. Matth 25, 41.
2. Ier. 15, 14.
3. Is 4, 4.
4. Ps. 20, 10.
5. Indulg. de 50 dias cada vez.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 196 - 198.)

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