2 de março de 2017

Sermão para o Domingo da Sexagésima – Pe Daniel Pinheiro, IBP

[Sermão] História das heresias II: arianismo, apolinarismo, donatismo, pelagianismo

Sermão para o Domingo da Sexagésima
19.02.2017 – Pe Daniel Pinheiro, IBP

Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
Ave Maria…
Como dissemos há três domingos, a história da Igreja se assemelha àquela barca em meio à tempestade agitada. A Igreja é perseguida, ao longo de sua história, às vezes com violência externa, física. E, muitas vezes, pelos erros contra a fé, as heresias, que, em geral, perdem mais almas do que a perseguição física, violenta. Vimos como é importante conhecer um pouco essas heresias para evitarmos a queda nelas, pois os erros com bastante frequência reaparecem revestidos com nova roupagem, ou com algumas atenuações, mas que não lhes tiram a condição de erro.
Chegamos, então, ao início do século quarto, momento em que surge a heresia ariana, que tira o seu nome de Arius, padre da cidade de Alexandria que havia feito seus estudos em Antioquia. A heresia ariana nega a divindade do Verbo, afirmando que o Verbo tem natureza inferior ao Pai. Assim, para o heresiarca Arius, o Verbo é filho de Deus Pai não em sentido próprio e natural, mas somente adotivo. Nega, então, a divindade de Cristo, que é o Verbo Encarnado. Negar a divindade do Verbo e negar, consequentemente, a divindade de Cristo é destruir a redenção operada por Nosso Senhor Jesus Cristo. Jesus Cristo nos redimiu por ser verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem. Sendo Deus, suas ações têm valor meritório infinito. Sendo homem, Ele é a nossa cabeça e repara em nosso nome. Se a divindade de Cristo é negada, e ele é uma criatura, suas ações são limitadas, finitas, não sendo suficientes para satisfazer pelos nossos pecados, que são uma ofensa infinita a Deus. Não haveria, então, redenção. Se Cristo não fosse homem, ele não agiria como nosso mediador, como nossa cabeça e também não haveria redenção. Portanto, negar a divindade ou a humanidade de Cristo, é destruir a nossa redenção, a nossa salvação. E são inúmeras as heresias que negam uma coisa ou outra. A heresia de Arius negava a divindade de Cristo e a trindade das pessoas divinas, e decorria de alguns erros precedentes, como a heresia gnóstica e o adocionismo, por exemplo.
Arius foi condenado pelo seu Bispo em Alexandria e pelo Concílio de Nicéia, o primeiro Concílio Ecumênico depois do chamado Concílio de Jerusalém, feito pelos apóstolos para resolver a questão dos judaizantes. No Concílio de Nicéia, em 325, ficou estabelecido que o Verbo é consubstancial ao Pai, quer dizer, que Ele tem a mesma natureza divina de Deus Pai. E assim cantamos ainda hoje na Missa, durante o Credo. Todavia, Arius continuou a propagar os seus erros com suas composições literárias, chamadas de Thalia, um misto de poesia e prosa para o povo. Interessante notar como já se propagavam os erros por esses meios artísticos e culturais. Ainda hoje se faz isso e com muita abundância. Erros contra a fé e contra a moral são espalhados, por exemplo, por meio de romances, músicas, filmes, desenhos, jogos… E muitos ingenuamente acham que essas coisas são inofensivas por definição. Na esmagadora maioria dos casos, não são inofensivas.
Mesmo depois da condenação pelo Concílio de Nicéia, o arianismo continuou sendo afirmado por inúmeros clérigos – incluindo padres e bispos -, professado também por grande parte do povo e alcançou difusão enorme. O imperador romano da época, Constantino, chegou, em determinado momento, a favorecer essa heresia. Os arianos passaram a se esconder atrás do semi-arianismo, após o Concílio. No lugar de negar claramente a divindade do Verbo, passaram a afirmar que o Verbo é semelhante ao Pai. Outros passaram a dizer que o Verbo é de substância semelhante ao Pai. Ou seja, não afirmavam que o Verbo era da mesma substância que o Pai, consubstancial ao Pai. Era um jeito light de favorecer a heresia, procurando atenuá-la. Depois de uma heresia, em geral, surge a heresia em forma atenuada, a semi-heresia, que muitas vezes causa mais estragos do que a heresia plenamente afirmada. A principal figura contra a heresia ariana foi Santo Atanásio.
Outra heresia de meados do século IV é o apolinarismo. Apolinário, Bispo de Laodicéia afirma a natureza divina de Cristo, mas nega uma natureza humana completa em Cristo. Apolinário afirmava que Cristo tinha uma natureza humana composta somente de corpo e de uma alma sensível, isto é, Cristo não tinha uma inteligência humana nem uma vontade humana, mas o próprio Verbo exercia essas funções em Cristo. Temos aqui o erro contrário ao arianismo: a negação de uma verdadeira natureza humana em Cristo. Sem uma inteligência e uma vontade humanas, não se pode falar de verdadeira natureza humana. Sem a natureza humana completa e verdadeira, Cristo não poderia também nos salvar. O erro de Apolinário também impediria a nossa redenção. A teoria de Apolinário é uma reação exagerada ao arianismo. Querendo afirmar a divindade de Cristo, termina por negar a Cristo uma verdadeira natureza humana. Apolinário foi deposto e condenado pelo Papa Damásio em 377 e 382.
Ainda no século IV surgiu também o erro donatista, que tira seu nome de Donato, grande organizador dessa heresia. O donatismo afirma que a validade dos sacramentos depende da santidade do ministro do sacramento. Dizem, então, que se o ministro estiver privado da graça, se ele se encontra em pecado mortal, o sacramento seria inválido. Isso é falso. A validade do sacramento, na verdade, não depende da santidade do ministro que o administra. A graça transmitida no sacramento não é a graça do ministro, mas de Cristo. Até mesmo um herege pode batizar validamente, por exemplo, se ele batiza com água, dizendo as palavras corretas do Batismo e querendo fazer o que a Igreja faz, ainda que ele tenha uma concepção errada do que a Igreja faz. Um padre em pecado confessa e absolve os pecados validamente, se as outras condições são observadas. O donatismo está ligado ao rigorismo dos montanistas, de que falamos no sermão precedente sobre as heresias.
Já no século V, a Igreja é agitada pela heresia do pelagianismo, difundida particularmente pelo monge bretão Pelágio. O pelagianismo é uma heresia que afirma o naturalismo, quer dizer, afirma que o homem pelas suas próprias forças naturais, sem o auxílio da graça de Deus, pode evitar todo pecado e conquistar o céu, ver Deus face a face. O que é absurdo pois ver Deus face a face é sobrenatural, está acima de nossa natureza, de suas exigências e forças. Pelágio afirma, então, que pelas nossas simples forças naturais nós podemos chegar acima da nossa natureza, o que é contraditório. Os erros do pelagianismo são: i) afirmar que o pecado de Adão, o pecado original, prejudicou somente ao próprio Adão e afirmar que o pecado de Adão não se transmite aos seus descendentes; ii) afirmar que as crianças nascem sem o pecado original, portanto inocentes e unidas a Deus; iii) afirmar que as crianças mortas sem o batismo alcançam a vida eterna; iv) afirmar que o homem com as suas forças naturais e com a sua liberdade pode evitar todo pecado e alcançar a visão beatífica; v) afirmar que a graça de Deus não é necessária para evitar o pecado, para nos manter unidos a Deus e para chegar à vida eterna; vi) afirmar que a graça de Cristo é somente o seu exemplo; vii) afirmar que a redenção não é a regeneração do homem pela graça de Deus na alma, mas que a redenção é um chamado para uma vida mais elevada a ser conquistada com as próprias forças.
O pelagianismo é um humanismo, de um otimismo irracional. Modernamente, foi retomado por Rousseau, por exemplo, com o seu mito do bom selvagem. É retomado também nos sistemas de educação que deixam a criança (ou o jovem) entregue a si mesma. O pelagianismo é a destruição completa da ordem sobrenatural. Qualquer um sabe, por experiência própria e alheia, que o homem nasce com as feridas do pecado original, com inclinação para o erro, para mal (bem aparente), para uma deleitação desordenada dos bens sensíveis. Qualquer um sabe que, pelas suas próprias forças, não consegue vencer de modo duradouro o pecado, ainda menos todo pecado. O pelagianismo esvazia a redenção feita por Nosso Senhor Jesus Cristo, colocando-o simplesmente como exemplo e não como a cabeça de um corpo místico que transmite o vigor para os membros do corpo. Para o pelagianismo, é o homem que se redime a si mesmo, com as suas próprias forças. A ajuda divina nem é necessária para eles. Santo Agostinho combateu veemente o erro pelagiano, reconhecendo a sua gravidade ao abandonar o homem a si mesmo, ao negar a redenção de Cristo. Na verdade, a redenção se faz pela graça de Deus unida à cooperação do homem a essa mesma graça. O pelagianismo foi condenado inúmeras vezes pela Igreja. Por exemplo, no Concílio de Éfeso.
Depois do pelagianismo, surge o semi-pelagianismo. Mais uma vez, a semi-heresia, que tenta fazer uma certa síntese entre a heresia e a verdade. A síntese entre o erro e a verdade só pode ser ela mesma um erro. Mas a heresia mitigada e mais misturada com a verdade engana mais facilmente as pessoas e atrai muitas vezes aquelas que estão cansadas da oposição ao erro e buscam uma via de conciliação, de pacificação. Por isso, a semi-heresia tende a conquistar, muitas vezes, mais adeptos. Mas lembremos sempre: a mistura de erro e verdade é sempre um erro. O semi-pelagianismo afirma que não se requer a graça para começar a ter fé ou para começar a se santificar, mas somente para completar a fé e a santificação. Afirma também que a perseverança final é fruto simplesmente de nossos méritos.  Ao contrário, a verdade é que a graça é necessária para qualquer ato, mesmo inicial, da vida sobrenatural. A fé e a santificação, mesmo no seu primeiro início, só podem existir com a graça de Deus. E sem a graça divina é impossível perseverar até a morte e alcançar a vida eterna. O semi-pelagianismo foi combatido, entre outros, por São Cesário de Arles. Foi condenado no Concílio de Orange, aprovado pelo Papa Bonifácio II.
Entre essas heresias, o arianismo, o donatismo e o pelagianismo chegaram a alcançar grande difusão. O arianismo e o pelagianismo também nas suas formas mitigadas. O combate dos católicos contra esses erros foi árduo, mas a verdade terminou triunfando. Para o arianismo, São Jerônimo diz que o mundo inteiro acordou com um gemido para encontrar-se ariano. A adesão ao erro foi imensa. Os arianos tinham mesmo a maior parte das igrejas, dos templos para o culto. Santo Atanásio, bispo de Alexandria exilado, escrevendo ao seu rebanho, dizia” eles, os hereges, têm as igrejas, os lugares de culto, mas que vocês têm a verdadeira fé que habita em vocês.” Também o donatismo chegou a cooptar vários bispos. O pelagianismo igualmente teve uma considerável penetração nos meios católicos.
Nos séculos quarto e quinto, os erros foram muitos e se apresentaram com vigor. A verdade, porém, triunfou. A defesa da fé, pelos que a guardaram, foi firme. Vale também a lição a propósito da semi-heresia, desse erro que se mistura com mais elementos de verdade para mais facilmente enganar. Essa síntese entre o erro e a heresia que atrai aqueles que desejam uma pacificação a todo preço, essa síntese que só pode ser ela mesma um erro. Vivemos nós uma imensa crise de fé. Não é só uma ou outra verdade de fé que é atacada ou negada, mas toda a religião católica com seu fundamento que é negada. E, muitas vezes, diante de tão imensa catástrofe é grande a tentação de aceitar erros menores. É grande a tentação de aceitar erros misturados com a verdade, a fim de encontrar apoio, a fim de encontrar uma certa pacificação. Nosso apoio não pode estar no erro, nem no menor deles. Nosso apoio deve estar na verdade, na verdade que nos foi revelada por Deus. A pacificação não pode também encontrar-se fora da verdade, fora de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não se pode transigir ou negociar com a verdade, ainda mais com a verdade que nos foi revelada por Deus e que a Igreja Católica nos ensina.
Em nome do Pai…

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