21 de março de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

VI 

A vida de Jesus é uma manifestação das perfeições de Deus, das prodigalidades da Sua bondade suprema e das suas insondáveis misericórdias. É no Verbo Incarnado que Deus nos descobre o Seu «carácter» íntimo: llluxit in cordibus nostris ... in facie Christí Jesu. Jesus Cristo é "a imagem visível do Deus invisível"; as Suas palavras, os Seus atos são a revelação autêntica do Ser infinito. 
Ora, a nossa contemplação da fisionomia de Cristo e a nossa ideia de Deus seriam incompletas, se, ao meditarmos na condescendência incansável de Jesus para com toda a espécie de misérias, sem exceptuar o pecado, deixássemos de examinar também o Seu procedimento para com essa forma da malícia humana, à mais oposta à nobreza e bondade divina, e que se resume numa palavra: o farisaísmo. 
Sabeis o que eram os fariseus. De volta do cativeiro de Babilônia, alguns judeus zelosos envidaram todos os esforços para neutralizar a influência estrangeira, perigosa para a ortodoxia de Israel. Procuraram sobretudo pôr novamente em vigor as prescrições da lei de Moisés, conservando-lhes a pureza. 
 Este zelo, digno de todo o louvor e que denotava um ideal elevado, degenerou infelizmente pouco a pouco num fanatismo feroz e num culto exagerado pelo texto da lei. Formou-se uma classe de judeus, que se chamavam "fariseus", isto é, "separados", separados de todo o contato estrangeiro e de quaisquer relações com aqueles que não observavam as suas "tradições".
 E, de fato, interpretando a lei com rara sutileza de casuística, os fariseus acrescentaram-lhe uma infinidade de prescrições orais que a tornavam as mais das vezes impraticável e em muitos artigos, pueril e ridícula. Havia sobretudo dois pontos cujas minúcias eram objeto de intermináveis discussões, que lhes ocupavam a atenção: a observância do descanso do sábado e as purificações rituais e legais. Mais de uma vez os vemos no Evangelho acusarem o Salvador nestes pontos. 
Tinham caído num formalismo extremamente acanhado. Não se importando da pureza interior da alma, prendiam-se com a observância exterior, material e mesquinha, da letra da Lei. Nisto consistia toda a sua religião e perfeição. Daí, como resultado, uma profunda obliteração moral. Estes «puros» transgrediam graves preceitos da lei natural, para se prenderem apenas com minúcias absurdas, baseadas nas suas interpretações pessoais. Assim, a pretexto de não violarem o repouso do sábado, ensinavam que nesse dia não se deviam curar os doentes, nem dar esmola aos necessitados; e vemo-los censurar os discípulos de Jesus por não terem observado o sábado, debulhando com as mãos algumas espigas para comer!
 Este formalismo exagerado conduzia-os forçosamente ao orgulho. Sendo eles próprios autores de muitas prescrições, julgavam-se também autores da sua própria santidade. Eram os "separados", os "puros", que nada impuro podia atingir. Que se lhes poderia então censurar? Não eram em tudo duma perfeita «correção»?  Por isso, tinham por si mesmos uma estima extremamente desregrada; um orgulho incomensurável levava-os a «procurar avidamente os primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes a que eram convidados, as saudações e aplausos da multidão nas praças públicas».
 Este orgulho estadeava-se no santuário. Conheceis a parábola em que Jesus Cristo pinta admiravelmente esta odiosa ostentação. O nosso divino Salvador estabelece um paralelo entre a humildade do publicano, que não ousa levantar os olhos ao céu por via dos seus pecado, e a presunção do fariseu, que, de pé, dá graças a Deus por estar acima de todos os homens por causa da sua exata observância das particularidades da lei, e, para assim dizer, reclama de Deus a aprovação absoluta da sua maneira de proceder.
 O que tornava desprezíveis muitos dos fariseus era juntar-se a este orgulho uma profunda hipocrisia. Em consequência da infinidade de prescrições que estabeleciam e que o próprio Nosso Senhor declara «intoleráveis», muitos deles não chegavam a realizar a santidade de que se gabavam, senão dissimulando habilmente as suas faltas e fraquezas e fazendo passar o texto da lei por interpretações desleais. Deste modo, podiam transgredir a lei, salvaguardando as aparências aos olhos do vulgo que os admirava. 
A sua autoridade e influência eram enormes; eram considerados como intérpretes e guardas da lei de Moisés. Fazendo alarde de profundo respeito por todas as práticas exteriores da observância, impunham-se à multidão que os considerava como santos.
 Por isso, tudo o que lhes podia diminuir este ascendente os perturbava. Desde o início da vida pública de Jesus, começam a fazer-Lhe oposição. Além de Jesus Cristo não seguir a escola deles, a doutrina que pregava, os atos com que a confirmava eram o extremo oposto das suas opiniões e do seu modo de proceder. A extraordinária condescendência do Salvador para com os publicanos e pecadores, repelidos por eles como impuros, a sua independência acerca da lei do sábado, de que se dizia senhor soberano, os milagres com que atraía o povo, não podiam deixar de os impressionar. Abismando-se pouco a pouco na sua cegueira, a despeito das advertências do próprio Jesus, tratam de Lhe armar ciladas: pedem-Lhe um «sinal do céu», como prova da Sua missão; apresentam-Lhe uma mulher adúltera, com o fim de O porem em oposição com a lei de Moisés; perguntam-Lhe, ardilosamente, se se deve pagar o tributo a César. Por toda a parte, em cada página do Evangelho, 
vê-los-eis, cheios de ódio contra Jesus, esforçarem-se por fazer decair a autoridade d'Ele junto da multidão, desviar os seus discípulos, enganar o povo, a fim de impedir Jesus Cristo de cumprir a Sua missão de salvação. 
Mais de uma vez Nosso Senhor preveniu os discípulos que se acautelassem contra esta hipocrisia. Mas, no fim do Seu ministério público, quis, como bom pastor que ensinava a verdade às Suas ovelhas e ia dar a vida por elas, desmascarar completamente esses lobos, que se apresentavam sob a capa de santidade,  unicamente para enganar e perder as almas simples.
 No solene sermão da montanha, Jesus Cristo assombra o auditório judeu com a revelação duma doutrina que ia de encontro aos seus instintos inveterados e aos seus preconceitos seculares: proclama diante de todos que os bem aventurados do Seu reino são os pobres de espírito, os mansos de coração, os que choram, os que têm fome de justiça; declara que os verdadeiros filhos do Pai celeste são os misericordiosos, as almas puras, os pacíficos, e que a mais sublime das bem aventuranças é sofrer perseguição por amor d'Ele. 
Esta doutrina, que constitui a "carta magna" evangélica dos pobres, dos pequenos, dos humildes, é a antítese da que, por palavras e exemplos, pregavam os fariseus.
 Por isso, ouvimos Nosso Senhor lançar contra eles uma série de oito maldições, que formam a contrapartida das oito bem-aventuranças.
Lede-as integralmente no Evangelho, em que ocupam uma página inteira. Vereis com que indignação Jesus Cristo, Verdade infalível e Vida das almas, põe a multidão e os discípulos de sobreaviso contra uma doutrina e procedimento que desviavam do reino de Deus, ocultavam a cobiça e o falso zelo alteravam a verdade e as prescrições da Lei, estabeleciam uma religião toda de aparências, se contentavam com uma pureza toda exterior, debaixo da qual se dissimulavam a corrupção e o ódio perseguidor. 
«Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que fechais aos homens o reino dos céus; nem vós entrais, nem deixais entrar os outros ! »
"Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que, a pretexto de rezar longas orações, devorais as casas das viúvas! O vosso julgamento será, por isso, mais rigoroso».
 «Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que tendes o cuidado de pagar o dízimo por uma folha de hortelã, de endro e de cominho, e desprezais as coisas mais importantes da lei: a justiça, a misericórdia, a boa fé ! Devíeis praticar uma coisa sem omitir as outras. Guias cegos, que coais a água para não engolir um mosquito, e engolis um camelo! ».
 "Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, que limpais por fora o copo e o prato, e por dentro estais cheios de rapina e de impureza».
"Serpentes, raça de víboras, como podereis escapar à condenação da geena? » 
Que contraste entre estas acusações fulminantes, entre estas veementes invectivas de Nosso Senhor, e a Sua atitude para com os maiores pecadores, a Samaritana, a Madalena, a mulher adúltera, às quais perdoa, sem uma palavra de censura; para com os criminosos, como o bom ladrão, a quem promete o céu.
 Qual a razão desta diferença? Porque é que Jesus, tão cheio de condescendência com os pecadores, lança publicamente sobre os fariseus tão terríveis anátemas?
 É que toda a espécie de fraqueza e de miséria, quando humildemente reconhecida e confessada, atrai a compaixão do Seu Coração e a misericórdia do Pai: Quomodo miseretur pater filiorum, misertus est Dominus, timentibus se: quoniam ipse cognovit figmentum no­strom. Ao passo que o orgulho, sobretudo o orgulho de espírito, semelhante ao pecado dos demônios, excita a indignação do Senhor: Deus superbis resistit.
 Ora, o espírito dos fariseus é um resumo de tudo o que há de odioso e hipócrita no orgulho. Estes "soberbos no pensamento do seu coração», estes ricos da estima de si mesmos, são para sempre expulsos da presença de Deus: Divites dimisit inanes.
 Cumpre notar que o farisaísmo reveste muitas formas. Nosso Senhor não atacava somente os fariseus por causa do orgulho hipócrita que, sob o manto de perfeição, ocultava a corrupção: "Sepulcros caiados, que parecem limpos por fora, mas, por dentro, estão cheios de corrupção e iniquidade» . Acusava-os também de terem substituído a lei eterna de Deus por um formalismo de origem humana. Os fariseus escandalizavam-se por verem Jesus Cristo curar doentes ao sábado; indignavam-se por ver que os Apóstolos se não submetiam, antes das refeições, a toda a série pueril de abluções legais que eles tinham inventado e nas quais faziam consistir toda a pureza do homem. Fazendo consistir toda a santidade na observância minuciosa de tradições e práticas originadas no seu próprio cérebro, desprezavam os mais graves preceitos da lei divina. É assim que, na opinião deles, se podia, só com pronunciar uma simples palavra, consagrar bens ou dinheiro ao serviço do Templo, tornando-os assim invioláveis: de modo que o fariseu devoto não podia servir-se deles, nem sequer para pagar as suas dívidas ou para socorrer os pais necessitados. Era, segundo a própria palavra do Salvador, «destruir com a tradição deles o mandamento de Deus».
 Este formalismo mesquinho, de invenção puramente humana, que desnaturava e diminuía a religião, esta falsa consciência repugnavam de tal modo à nobreza de coração e à sinceridade de Jesus, que os desmascarava e condenava sem consideração alguma. Com efeito, que juízo fazia Ele desta casuística? "Em verdade vos digo, se a vossa justiça e perfeição não for maior do que a dos fariseus, não entrareis no reino do céu".
 Que revelação do caráter íntimo de Deus! Que manifestação do Seu modo de julgar e apreciar os homens ! Que luz preciosa não lançam sobre a noção da verdadeira perfeição estas amargas censuras dirigidas aos fariseus !
 No sermão da montanha, Jesus aponta-nos o cume da verdadeira santidade; na condenação do farisaísmo, descobre-nos os abismos da falsa piedade, de que o fariseu é fiel protótipo.
 Não há embuste do demônio mais terrível nem mais funesto do que fazer passar qualquer forma de farisaísmo pela santidade reclamada pelo Evangelho. Nisto, o príncipe das trevas ataca mesmo as almas que procuram a perfeição; obscurece-lhes a vista interior com as aparências duma virtude toda formalista que substitui a verdade do Evangelho. Longe de progredirem por semelhante caminho, ficam estéreis diante de Deus. «Toda a árvore que a mão do meu Pai não tiver plantado será arrancada». É a sentença inexorável de Jesus contra a raça dos fariseus. 
Já vedes quanto importa nesta matéria desconfiar do próprio parecer, das próprias luzes; quão essencial é basear a nossa santidade, não em tal ou tal prática de devoção por nós escolhida e que talvez seja excelente, não nesta ou naquela prescrição da regra religiosa que se professa (a sua observância pode ser suspensa por uma lei superior, como, por exemplo, a lei, da caridade para com o próximo), - mas, antes e acima de tudo,no cumprimento da lei divina; lei natural, Mandamentos da  Lei de Deus, Mandamentos da Santa Madre Igreja, deveres do próprio estado. Toda a piedade que não respeitar esta hierarquia de deveres deve ser-nos suspeita; toda a ascese que não se regular pelos preceitos e doutrina do Evangelho não pode vir do Espírito Santo que inspirou o Evangelho. Diz S. Paulo: «Verdadeiros filhos de Deus são só aqueles a quem o Espírito Santo conduz».
 A ternura de Jesus é tão grande que, ao mesmo tempo que lançava sobre os fariseus terríveis maldições, predizendo-lhes a cólera divina, o Evangelho no-lo mostra profundamente comovido: o pensamento do castigo que vai cair sobre a cidade santa por ter rejeitado o Messias, escutando «esses cegos», arranca ao Seu Coração sagrado gritos de angústia.
 Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas aqueles que te são enviados, quantas vezes quis juntar os teus filho, como a galinha reúne os pintainhos debaixo das suas asas ... e tu não quiseste!» E, aludindo ao Templo, onde não mais entraria, pois estava nas vésperas da Paixão, acrescenta: «Eis, a vossa casa ficará deserta. Pois eu vos digo que não mais me vereis, até que digais: Bendito o que vem em nome do Senhor».
 Enquanto estamos neste mundo, são incessantes os chamamentos da eterna bondade: Quoties voluil... Mas não sejamos daqueles que, pelo desperdício contínuo da graça e pelo hábito do pecado deliberado, ainda que leve, se endurecem a ponto de não os compreenderem: Et noluistí. Fujamos de expulsar o Espírito Santo do templo da nossa alma, com resistências voluntárias e obstinadas. Deus abandonar-nos-ia à nossa cegueira: Ecae relinquetur domus vestra deserta. A misericórdia nunca falta à alma; a alma, essa, desprezando a misericórdia, é que provoca a justiça.
 Procuremos antes permanecer fiéis, não com aquela fidelidade que se limita à letra, mas com aquela que tem sua origem no amor e seu ponto de apoio na confiança num Salvador cheio de bondade. Então, quaisquer que sejam as fraquezas, misérias. culpas, faltas que nos escapem, despontará para nós o dia em que bendiremos para sempre Aquele que sob formas humanas apareceu na terra. Veio «curar as nossas enfermidades», «resgatar-nos do abismo do pecado»; e é Ele que «coroará para sempre em nós os dons da Sua misericórdia e do Seu amor»: Benedic anima mea Domíno... qui sanat omnes infirmates tuas, qui redimit de interitu vitam tuam, qui coronat te in misericordia et miserationibus. 

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