16 de março de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

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 A revelação das misericórdias divinas por Jesus Cristo é a fonte primária da nossa confiança.
 Todos temos desses momentos de graça, em que sondamos, com a ajuda da luz divina, o abismo das nossas misérias, do nosso nada. Vendo-nos tão manchados, dizemos a Jesus, como S. Pedro: "Senhor, retirai-vos de mim, que sou pecador». «Seria possível unir-Vos intimamente a uma alma manchada pelo pecado? Procurai de preferência almas nobres, puras, privilegiadas com o dom da Vossa graça. Eu sou indigno demais para estar assim ao pé de Vós».
 Lembremo-nos, porém, que o próprio Jesus Cristo disse: «Não vim chamar os justos, mas os pecadores». Senão vede. Não chamou para ser Seu apóstolo a Mateus, o publicano, o pecador? E quem colocou à frente da Sua Igreja, como chefe dessa sociedade que deseja «santa, imaculada, sem mancha, para cuja santificação vem dar todo o Seu precioso sangue»? A quem escolheu? A João Batista, santificado desde o ventre materno, confirmado em graça e de tão eminente perfeição que o tomavam pelo próprio Cristo? Não. A João Evangelista, o discípulo virgem, aquele a quem amava de modo particular, o único que Lhe ficou fiel até ao pé da Cruz ? Ainda uma vez, não. Quem escolheu então? Cientemente, deliberadamente, Nosso Senhor escolheu um homem que O havia de abandonar. Não é admirável?
 Na Sua presciência divina, Jesus Cristo tudo conhecia de antemão. E, quando prometia a Pedro edificar sobre ele a Sua Igreja, sabia que Pedro, apesar da admirável espontaneidade da sua fé, O havia de renegar. Apesar de todos os milagres operados diante dos seus olhos pelo Salvador, apesar de todas as graças que recebera, apesar da glória com que vira resplandecer a Humanidade de Cristo no Tabor, no próprio dia da sua primeira comunhão e da sua ordenação, Pedro «jura não conhecer aquele homem. .. »! E foi a ele que Jesus escolheu, de preferência a todos os outros. Porquê? Porque a Sua Igreja seria composta de pecadores. Com excepção da puríssima Virgem Maria, todos nós somos pecadores; todos precisamos das misericórdias divinas. E é por isso que Jesus Cristo quis que o chefe do Seu reino fosse um pecador, cuja falta ficasse consignada nas sagradas Escrituras com todos os pormenores que mostram a sua cobardia e ingratidão.
 Vede ainda Maria Madalena. Lemos no Evangelho que algumas mulheres seguiam a Jesus nas Suas jornadas apostólicas para proverem às necessidades d'Ele e dos discípulos. Entre essas mulheres, cuja dedicação era incansável, a quem distinguiu Jesus mais? A Madalena, de quem disse: «Por toda a parte onde for pregado o Evangelho, se há-de falar dela». Quis que o escritor sagrado nada ocultasse dos desregramentos da pecadora; mas quis também que lêssemos que Ele aceitara a presença de Madalena ao pé da Cruz, ao lado de Sua Mãe, a Virgem das virgens; a ela, de preferência a qualquer outra, quis reservar a Sua primeira aparição depois de ressuscitado.
 Ainda uma vez, porquê tanta condescendência? In laudem gloriae gratiae suae: «para exaltar aos olhos de todos a glória triunfal da Sua graça». Com efeito, é tal a generosidade do perdão divino, que elevou a uma das mais eminentes santidades uma pecadora caída no abismo: Abyssus abyssum invocat. "Ele encontrou uma mulher de costumes perdidos, diz um autor dos primeiros séculos, e, pela sua grande penitência, tornou-a mais pura do que uma virgem»: Invenit meretricem, et virgine castionem reddidit.
 Deus quer que «ninguém se glorie com a sua própria justiça", mas que todos engrandeçam o poder da Sua graça e a extensão das Suas misericórdias: Quoniam in aeternum misericordia ejus.
 As nossas misérias, as nossas faltas, os nossos pecados, bem os conhecemos; mas o que não conhecemos - ó almas de pouca fé! - é o valor do Sangue de Jesus e a virtude da Sua graça. 
A nossa confiança tem a sua origem na misericórdia infinita de Deus para conosco; e recebe da penitência um dos mais fortes incrementos.
 A extrema condescendência de Jesus para com os pecadores não pode servir de pretexto para continuarem no pecado ou recaírem depois de se verem livres dele. «Permaneceremos no pecado - diz S. Paulo -, para que abunde a graça? Deus nos livre! Resgatados do pecado pela morte de Jesus Cristo, nunca mais devemos tornar a cair nele».
 Com certeza notastes que, ao perdoar à mulher adúltera, Jesus faz-lhe uma grave advertência: «Doravante não tornes a pecar». O mesmo diz ao paralítico, acrescentando o motivo: «Estás curado; agora não tornes a pecar, não te vá acontecer muito pior. É que, de fato, como diz o próprio Jesus, «quando o espírito maligno é expulso duma alma, volta a assediá-la com outros espíritos piores do que ele; e, se consegue tomar posse dela, o último estado dessa alma torna-se pior do que o primeiro».
 A penitência é a condição exigida para receber e conservar o perdão divino em nós. Vede Pedro. 
Pecou, pecou gravemente; mas o Evangelho diz também que «derramou amargas lágrimas» pelo seu pecado: Flevit amare. Mais tarde, apagou a tríplice negação com um tríplice protesto de amor: «Sim, Senhor, sabeis que Vos amo»! Vede ainda a Madalena, que é simultaneamente um dos mais magníficos troféus da graça de Jesus Cristo e símbolo esplêndido do amor penitente. Que faz ela? Imola a Cristo o que tem de mais precioso. O quê? Aquela cabeleira, que é o seu ornamento, a sua glória - pois, diz S. Paulo, "para a mulher é uma glória ter uma cabeleira comprida"  -, mas da qual se servira para atrair as almas, armar-lhes ciladas e perdê-las. E agora em que a emprega? Em enxugar os pés do Salvador. Como uma escrava, envilece publicamente, aos olhos dos convivas que a conhecem, o que até então fizera o seu orgulho. É o amor penitente que se imola, mas que, 
imolando-se, atrai e retém os tesouros da misericórdia: Remittuntur ei peccata multa quoniam dilexit multum. 
Quaisquer que sejam as recaídas duma alma, nunca devemos desesperar dela. "Quantas vezes, diz S. Pedro a Nosso Senhor, devo perdoar ao meu próximo»? "Setenta vezes sete», responde Jesus, querendo significar um número infinito de vezes. Neste mundo, esta medida inesgotável em face do arrependimento é a medida do próprio Deus. 
Para completar a exposição que vos acabo de fazer da bondade e condescendência de Jesus Cristo para connosco, quero acrescentar um fato que O acaba de "humanizar» e nos descobre um dos aspectos mais tocantes da Sua ternura: a afeição que professava a Lázaro e a suas duas irmãs de Betânia. 
Em toda a vida pública do Verbo Incarnado, talvez não se encontre outro caso que maís nos aproxime d'Ele e a Ele de nós, como o quadro intimo das Suas relações com os amigos da pequena povoação. Se a nossa fé nos diz que Ele é o Filho de Deus, Deus em pessoa, as condescendências da Sua amizade revelam-nos, quer-me parecer, melhor do que qualquer outra manifestação, a Sua qualidade de «Filho do homem».
 Os escritores sagrados limitaram-se apenas a um ligeiro esboço desta santa afeição; mas o que nos deixaram é suficiente para nos fazer entrever o que nela havia de infinitamente delicioso. S. João 
diz-nos que "Jesus amava Marta, sua irmã Maria e Lázaro»: Diligebat autem Jesus Martham et sororem ejus Mariam et Lazarum. Eram Seus amigos e amigos dos Apóstolos. Falando de Lázaro, chama-lhe «nosso amigo»: Lazarus amicus noster. O Evangelho acrescenta que "Maria era aquela mesma que ungira a Jesus com um precioso perfume e Lhe enxugara os pés com seus cabelos». 
A sua casa de Betânia era o lar que Jesus, Verbo Incarnado, escolhera neste mundo para lugar de repouso e cenário daquela santa amizade de que Ele próprio, Filho de Deus, se dignou dar-nos exemplo. Nada mais agradável pera os nossos corações humanos do que a contemplação desse interior que o Espírito Santo nos mostra no capítulo X do Evangelho de S. Lucas. Jesus é o hóspede respeitado, mas muito íntimo, daquele lar. Realmente, devia ser amigo muito intimo da casa, para que Marta, um dia, andando a servi-Lo toda atarefada, ousasse interpelá-Lo para se queixar de sua irmã Maria, tranquilamente sentada aos pés de Jesus a gozar das palavras do Salvador: "Senhor, então não Vos importais de que a minha irmã me deixe sozinha a servir-Vos? Dizei-lhe que me venha ajudar»: Domine, non est tibi curae quod soror mea reliquit me solam ministrare? Dic ergo illi ut me adjuvet. E, em vez de se melindrar com semelhante familiaridade que O abrangia, para assim dizer, na censura feita a Maria, Jesus intervém e resolve a questão em favor daquela que simboliza a oração e a união divina. "Marta, Marta, andas toda atarefada e perturbada com muitas coisas, quando só uma é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada».
 Quando assistimos, com espírito de fé, a esta cena deliciosa, sentimos no nosso coração que Jesus é verdadeiramente um de nós: Debuit per omnia fratribus similari; sentimos que em Sua pessoa se verifica admiravelmente a revelação que a Sabedoria eterna faz ao mundo, quando proclama que «as Suas delícias são estar com os filhos dos homens"; sentimos ao mesmo tempo que «nação alguma tem um deus que se aproxime dela como o nosso Deus se aproxima de nós».
 Jesus Cristo é verdadeiramente o "Emmanuel", Deus a viver no meio de nós, entre nós e conosco. 

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