IV
Tão grandes são as maravilhas da adoção divina, que a linguagem humana é impotente para as exprimir. Coisa admirável Deus adotar-nos por filhos Seus : mas mais admirável ainda é o meio que escolheu para realizar e estabelecer em nós esta adoção. E qual é este meio? O seu próprio Filho: In dilecto Filio suo. Já noutro lugar expus esta verdade : mas ela é tão vital, que não posso deixar de abordar novamente o assunto.
Deus cria- nos pelo Seu Verbo. - Depois de ter dito que, «no princípio, o Verbo era Deus», S. João
acrescenta: «E todas as coisas por Ele foram feitas, e sem Ele nada foi feito». Que significam estas palavras? Na Santíssima Trindade, o Verbo não é somente a expressão de todas as perfeições do Pai, mas também de todas as criaturas possíveis; estas têm o seu protótipo e modelo na essência divina. Quando Deus cria, produz seres que realizam um dos Seus pensamentos. Depois, cria pelo poder da Sua palavra: «Disse uma palavra e todas as coisas foram feitas» : lpse dixit, et facta sunt. Por isso a Sagrada Escritura diz que o Pai tudo cria pelo Verbo.
]á vedes a íntima relação que a criação estabelece entre nós e o Verbo. Pelo simples fato da nossa
criação, correspondemos a uma ideia divina, somos o fruto dum pensamento eterno contido no Verbo. Deus conhece perfeitamente a Sua essência : exprimindo este conhecimento, gera o Verbo, e no Verbo vê o modelo de todas as criaturas. Deste modo. cada um de nós representa um pensamento divino, e a nossa santidade individual consiste em realizar este pensamento que Deus de nós concebeu antes da criação.
Em certo sentido. portanto, nós procedemos de Deus pelo Verbo : e devemos, como o Verbo, ser a expressão pura e perfeita do pensamento divino a nosso respeito. O que impede a realização deste pensamento é a alteração que nós fazemos da obra de Deus ; pois alterar o divino é o que é próprio nosso na obra da criação ; próprio, quer dizer, só nosso, com exclusão de Deus. Tudo o que vem de nós está em desacordo com a vontade divina: pecado, infidelidades. resistências às
inspirações do alto, vistas puramente humanas e naturais, tantas coisas com que estragamos a ideia divina !
Mas esta relação com o Verbo, o Filho, é muito mais profunda ainda na obra da nossa adoção.
O Apóstolo S. Tiago diz que «todo o dom, toda a graça vem do alto, do nosso Pai dos céus» : e acrescenta: «Por Sua própria vontade, o Pai gerou -nos pela palavra da verdade»: Valuntarie genuit nos verbo veritatis. A adoção divina pela graça, que nos torna filhos de Deus, realiza-se pelo Filho, pelo Verbo.
Esta verdade é uma daquelas em que mais frequentemente S. Paulo insiste. Como S. Tiago, proclama que todas as bênçãos vêm do Pai e se resumem no decreto da nossa adoção em Jesus Cristo. Seu Filho muito amado. No plano eterno, não nos tornamos filhos de Deus senão em Jesus Cristo, Verbo lncarnado: Elegit nos in ipso. O Pai não nos reconhecerá por filhos se não reproduzirmos em nós os traços de Jesus: Praedestinavit [nos] ... conformes fieri imaginis Filii sui.
De modo que não é senão na qualidade de co-herdeiros de Cristo que um dia seremos in sinu Patris.
Eis o decreto divino. - Vejamos agora a realização, no tempo, deste desígnio eterno, ou antes, a maneira como foi restaurado o plano de Deus, transtornado pelo pecado de Adão.
O Verbo eterno faz-se carne. O Salmista diz deste Verbo «que se atirou como gigante a percorrer o caminho» : Exsultavit ut gigas ad currendam viam. «É do mais alto dos céus que Ele surge»: A summo caelo egressio e jus : «e a este cume sublime é que Ele regressa» : Et occursus ejus usque ad summum ejus . Esta egressio a summo caelo, é o nascimento eterno no seio do Pai: Exivi a Patre ; o regresso é a ascensão para o Pai: Relinquo mundu, et vado ad Patrem.
Mas não regressa sozinho. Este gigante veio em busca da humanidade transviada: apoderou-se dela e, num amplexo de amor. arrasta-a consigo na Sua carreira para a colocar junto de Si, in sinu Patris ; «Volto para o meu Pai, que é também o vosso Pai; vou preparar-vos um lugar na casa do meu Pai».
Eis a obra deste divino gigante: reconduzir ao seio do Pai, à fonte divina de toda a felicidade, a humanidade decaída. restituindo-lhe, pela Sua vida e pelo Seu sacrifício, a graça da adoção.
Oh ! diremos com o Apóstolo, bendito seja o Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos cumulou, por Seu Filho e em Seu Filho, de toda a bênção espiritual : que nos fez assentar com Ele nos celestes esplendores onde, no meio duma felicidade eterna, gera o Filho da Sua dileção ! Consedere fecit nos in caelestibus. Sim. bendito seja ! Bendito seja também o Verbo divino,
por amor de nós feito carne e que, pela efusão do Seu sangue, nos restituiu a herança celeste. O Jesus, Filho dileto do Pai, a Vós seja dada toda a honra e glória!
Nenhum comentário:
Postar um comentário