II
Fixemos agora o olhar da nossa fé no Verbo, no Filho, para conhecer e admirar algumas das Suas propriedades. É este Filho que, nascido eternamente do Pai, deve nascer no tempo, duma Virgem, para se tornar o Homem-Deus e realizar os mistérios da nossa salvação. Como poderemos imitá-Lo e permanecer unidos a Ele, sem primeiro O conhecer?
Na SSma Trindade, o Filho distingue-se do Pai pela propriedade de «Ser Filho».
Quando dizemos de um homem que ele é filho, afirmamos duas coisas diferentes : a sua natureza humana individual e a sua qualidade de filho. Isto não se dá na SSma Trindade. O Filho está realmente identificado com a natureza divina (que Ele possui de modo indivisível com o Pai e o Espírito Santo) ; o que o distingue da pessoa do Pai, o que constitui propriamente a Sua personalidade, não é ser Deus, mas ser Filho ; e, enquanto pessoa divina, Ele não é senão Filho, totalmente Filho, e unicamente isso ; se assim me posso exprimir, Ele é uma filiação viva, inteiramente «orientado» para o Pai.
E, assim como o Pai proclama a sua inefável fecundidade - Filius meus es tu. ego hodíe genui te
- o Filho reconhece que é Filho, que o Pai é o Seu principio, a Sua origem, que tudo Lhe vem d'Ele: e é esta, digamos assim, a primeira «função» do Verbo.
Abri os Evangelhos, sobretudo o de S. João : vereis o Verbo lncarnado pôr sempre em relevo diante dos nossos olhos esta propriedade. Jesus Cristo compraz-se em
proclamar que, na sua qualidade de Filho único, tudo Lhe vem do Pai: «Vivo pelo Pai, diz Ele aos Apóstolos; a minha doutrina não é minha, mas d'Aquele que me enviou : o Filho não pode fazer coisa alguma por Si mesmo, mas apenas o que vê fazer ao Pai ; tudo o que faz o Pai, o faz igualmente o Filho ; o Filho, por Si mesmo, nada faz, e julga segundo o que ouve, e o Seu juízo é justo, pois não busca a Sua própria vontade, mas sim a vontade d'Aquele que O enviou ... Nada
faço por mim mesmo. digo o que o Pai me ensinou».
Que outra coisa quer dar a entender Nosso Senhor por estas palavras misteriosas, senão que na sua qualidade de Filho, tudo recebe do Pai, embora seja igual ao Pai? Em toda a parte, em todas as circunstâncias notáveis da Sua vida, por exemplo, na ressurreição de Lázaro. Jesus Cristo põe em foco as relações sublimes que fazem d'Ele o Filho único do Pai Eterno.
Lede sobretudo o discurso e oração de Jesus na última Ceia, onde, no momento de consumar pelo sacrifício da Cruz a série dos Seus mistérios, Cristo levanta uma ponta do véu que oculta aos nossos olhos a vida divina ; vereis como Ele insiste na Sua filiação eterna e nas propriedades daí resultantes : «Pai, é chegada a hora: glorifica o teu Filho, para que o teu filho te glorifique ... Glorifica-me com a glória que tinha junto de ti, antes de o mundo existir . . . Aqueles que me
confiaste sabem agora que tudo o que me deste vem de ti. .. Tudo o que é meu é teu, tudo o que é teu é meu ... Que eles sejam um, como tu, ó Pai, és um comigo e eu contigo ... Pai, aqueles que me deste, quero que, onde eu estiver, ali estejam eles comigo. para que vejam a glória que me deste, pois me amaste antes da criação do mundo . . . ».
Que admirável revelação do Pai e do Filho, suas relações incompreensíveis nos descobrem estas palavras ! Não, como diz S. João no princípio do seu Evangelho, realmente nós não vemos a Deus ; mas o Filho único , que está no seio do Pai, alguma coisa nos revelou dos seus segredos da vida divina. Creio, Senhor Jesus, que sois o Filho único do Pai, Deus como Ele ; creio, mas aumentai a minha fé !
A segunda «função» do Verbo é ser, como diz S. Paulo, «a imagem do Pai» : Imago Dei invisibilis
Não uma imagem qualquer, mas uma imagem perfeita e viva. O Verbo é o esplendor da glória do Pai, a figura da Sua substância, o reflexo da Sua luz eterna: Splendor gloriae et figura substantiae ejus. É, como indica a palavra grega, o «carácter», a expressão adequada de Deus, é como a marca que o sinete imprime na cera. A glória dum filho é ser imagem viva do pai. O mesmo se dá com o Verbo. O Pai Eterno, ao contemplar o Filho, vê n'Ele a perfeita reprodução dos Seus
atributos divinos ; o Filho reflete perfeitamente, como espelho sem mancha - speculum sine macula,
tudo o que Lhe comunica o Pai.
Por isso, o Pai, ao contemplar o Filho, vê n'Ele todas as Suas perfeições ; e, arroubado perante este espetáculo, declara ao mundo que este Filho é o objeto de toda a Sua dileção: Fílius dilectus in quo mihi BENE complacui .
lncarnando, o Verbo revela-nos o Pai e manifesta-nos Deus. Quando, na última Ceia, Nosso Senhor falou do Pai em termos tão enternecedores, o Apóstolo Filipe disse-lhe : «Senhor, mostrai-nos o Pai, e basta para ficarmos satisfeitos ! » E que responde Jesus? «Como ! Há tanto tempo que estou convosco, e ainda me não conheceis? Filipe, quem me vê, vê o Pai» : Qui videt me, videt Patrem . Palavra profundamente reveladora! Basta ver a Jesus, Verbo lncarnado, para conhecermos o Pai, de quem é a imagem. Cristo traduz todas as perfeições do Pai em gestos humanos, em linguagem acessível aos nossos fracos espíritos. Lembre-mo-nos sempre destas palavras : Qui videt me, videt et Patrem.
Vamos dentro de pouco tempo percorrer os principais mistérios de Jesus. Aquele a quem vamos contemplar é Deus ; é o Ser infinito, todo-poderoso e soberano. Esse menino reclinado num presépio, adorado pelos pastores e pelos Magos, é Deus ; esse adolescente que trabalha como obscuro operário numa pobre oficina, é Deus ; esse homem que cura os doentes, multiplica os
pães, perdoa os pecados e salva as almas, é Deus : Deus ainda, esse profeta perseguido pelos seus inimigos, esse agonizante que luta contra o tédio, o medo, a tristeza, esse condenado que morre numa cruz ; encerra Deus essa hóstia guardada no sacrário e que eu vou receber na sagrada mesa. Qui videt me, videt et Patrem.
E todas as perfeições que os estados ou mistérios de Jesus manifestam : sabedoria tal que não pode ser apanhada em falso, poder que espanta e arrebata as turbas, misericórdia inaudita para com os pecadores, zelo ardente pela justiça, paciência inalterável no meio das afrontas, amor que se dá e se entrega, tudo isto são as perfeições dum Deus, do nosso Deus ; pois aquele que vê a Jesus, vê o Pai, contempla a Deus.
No fim da Sua oração sacerdotal, Jesus Cristo dizia ao Pai : «Pai, eu tornei-te conhecido dos meus discípulos, e continuarei a dar-te a conhecer, a fim de que o amor com que me amas esteja nele » Ó Jesus. pelos Vossos mistérios, mostrai-nos o Pai, as Suas perfeições, as Suas grandezas, os Seus direitos, as Suas vontades ; revelai-nos o que Ele é para Vós, o que é para nós, para que O amemos e Ele nos ame. e nada mais pediremos : Ostende nobis Patrem et sufficit nobis !
A terceira «função» do Verbo é ser todo para o Pai por um impulso de amor.
Na Santíssima Trindade, o amor do Filho para com o Pai é infinito. Se o Verbo proclama que tudo recebe do Pai. também tudo Lhe retribui com amor ; e, deste movimento de dileção que se encontra com o do Pai, procede essa terce·ira pessoa que a revelação designa por um nome misterioso ; o Espirito Santo, amor substancial do Pai e do Filho.
Cá na terra, o amor de Jesus ao Pai manifesta-se de modo inefável. Toda a vida de Cristo, todos os
Seus mistérios se resumem nesta palavra que S. João nos transmite; - «Amo ao Pai». O próprio Nosso Senhor indicou aos discípulos o critério infalível do amor; «Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor». E logo se apresenta como exemplo: «Como eu mesmo guardei os mandamentos do Pai, e permaneço no Seu amor». Jesus permaneceu constantemente no amor do Pai, porque fez sempre a vontade d'Ele. S. Paulo declara que o primeiro movimento do coração do Ve:rbo feito carne foi um movimento de amor: «Eis-me aqui, ó Pai, para
cumprir a tua vontade». Neste primeiro olhar da Sua vida terrestre, a alma de Jesus viu toda a sequência dos Seus mistérios, aniquilamentos, fadigas, sofrimentos ; e por um ato de amor, aceitou a realização deste programa. Esse movimento de amor para com o Pai nunca cessou. Nosso Senhor pôde dizer: Quae placita sunt ei facio .semper - «Faço sempre o que é do agrado do meu Pai». Cumpriu tudo, até ao último jota : tudo o que o Pai Lhe pede, o aceita, até ao amargo cálix da agonia: Non mea voluntas. sed tua fiat ; até à morte ignominiosa na Cruz : Ut cognoscat mundus quia diligo Patrem. sic facio. E, quando tudo está consumado, a última pulsação do Seu coração, o
Seu derradeiro pensamento é para o Pai: «Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito».
O amor de Jesus para com o Pai está no íntimo de todos os Seus estados, explica todos os Seus mistérios.
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