[Sermão] História das heresias VI: Lutero
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
Ave Maria…
Caros católicos, na Epístola de hoje, o Apóstolo São Thiago diz claramente que não basta ouvir a palavra de Deus, mas que é preciso colocá-la em prática. Ou seja, é necessária a fé e são necessárias as obras. A essa verdade muito clara e coerente se opôs Lutero. Hoje, encerraremos esse segundo bloco da nossa série de sermões sobre as heresias falando da heresia de Lutero, a figuram mais simbólica do protestantismo.
Lutero nasceu em 1483 na Alemanha, em Eisleben. Recebeu o grau de Mestre em Erfurt em 1505. Pouco depois, entrou nos eremitas de Santo Agostinho. Lutero era um frade que jamais deveria ter seguido essa vocação. Resolveu entrar quando, com medo de morrer, fez um voto de entrar na vida religiosa se sobrevivesse. Na versão mais comum, ficou com pavor da morte durante uma tempestade, quando estava em viagem e um raio caiu perto dele. Pouco tempo antes, um amigo dele tinha morrido fulminado por um raio. O próprio Lutero dirá que foi um voto forçado por necessidade, assediado pelo terror e pela angústia, e do qual se arrependeu depois. Ora, um voto feito nessas condições não tem nem validade.
Martinho Lutero refletia muito o espírito alemão da época: sensível e brutal, sentimental, confuso, arrogante, seguro de si, colocando a sua vontade por regra absoluta e não muito esclarecido sobre quaisquer questões que o preocupavam. Assim, Lutero dirá: “Estou certo de que meus dogmas vêm do céu” e “minha doutrina é tal que só ela engrandece a graça e a glória de Deus.”
Lutero era bastante melancólico, dominado pela tristeza e cheio de escrúpulos. Lutero confundia tentação com o pecado, a inclinação ao pecado com o ato pecaminoso. Era uma alma verdadeiramente dilacerada e atormentada, que se via sempre no pecado e que não acreditava ser possível vencê-lo verdadeiramente. Diante desse erro, negando a misericórdia divina, desesperava quanto ao seu julgamento por Deus e quanto à sua salvação.
A sua formação espiritual e teológica foi sofrível, péssima. Sua espiritualidade era extremamente subjetiva, derivada dos chamados místicos alemães, de doutrina bem duvidosa e perigosa ou mesmo formalmente condenadas, como a de Mestre Eckhart. Espiritualidade subjetiva e, consequentemente, já descolada em boa parte da doutrina. “Piedade” entre aspas, sem doutrina, introspectiva, voltada mais para o homem do que para Deus. Seus estudos teológicos foram feitos com base em uma escolástica bem decadente, já impregnada com os erros do chamado nominalismo e que afirmava a impossibilidade de conciliar razão e fé. Tratava-se, então, de uma escolástica muito distante daquela de São Tomás de Aquino, que conciliava esplendidamente a razão e a fé. Assim, Lutero vai desprezar a razão, dizendo que ela é a meretriz do demônio.
É nesse monge, com essas disposições de alma, que vai nascer a doutrina protestante e a chamada reforma protestante. Para os que conhecem a história de Lutero, não há dúvida de que a sua doutrina se formou, no seu pensamento, para acalmar as suas angústias. São as suas impressões, as suas emoções e experiências pessoais que formarão a sua doutrina. Seus sentimentos e ideias (desconectadas da realidade) se tornavam para ele norma universal, preceito divino que deveria ser imposto ao mundo. A sua leitura da Sagrada Escritura foi uma leitura subjetiva, segundo a sua inclinação, e tendenciosa, para que a Sagrada Escritura se conformasse com as suas inclinações. De um problema pessoal, formar-se-á um sistema tão contrário à verdade…
Para resolver sua angústia, seus escrúpulos e sua fraqueza para abandonar o pecado, Lutero vai, então, elaborar uma doutrina nova, revolucionária. Ele vai dizer que o pecado original corrompeu de tal forma a natureza do homem que qualquer ação do homem, por melhor que pareça, é um pecado mortal. Assim, para Lutero, se alguém der uma esmola para um pobre com a intenção de ajudá-lo, isso é um pecado mortal. Segundo o heresiarca, o homem é incapaz das boas obras, incapaz de praticar o bem. Os atos dos homens são sempre pecaminosos, diz Lutero. Diz também que o homem não tem culpa desses pecados, já que, segundo ele, o ser humano não tem livre-arbítrio, não tem liberdade para fazer o bem. Lutero falará, então, no servo arbítrio no lugar de livre arbítrio. Na teologia de Lutero, para se salvar, basta a fé, entendida por ele como a confiança de que Deus quer salvar. Lutero revoluciona, desse modo, toda a doutrina de Cristo, contradizendo-a frontalmente, deturpando-a. Não se trata de reforma, mas de deforma ou de revolução, de blasfêmia, subvertendo todos os princípios da religião cristã e como se fôssemos obrigados a fazer o mal praticamente. Para o heresiarca, o homem se salva não porque está na graça de Deus, sem pecado grave, mas porque Deus o considera justo a partir dessa fé-confiança, ainda que o homem esteja afogado nos mais graves pecados. É uma justificação externa: Deus considera a pessoa como justa, como santa, mas ela é, na verdade, pecadora. É a doutrina do sola fides, da salvação pela fé somente. Isso resolvia as angústias de Lutero: salvando-se apenas pela fé, afirmando a impossibilidade de se livrar do pecado negando o livre arbítrio, Lutero poderia pecar tranquilamente, sem se angustiar, sem se preocupar com a sua salvação. Assim, ele dirá que se deve pecar fortemente e que se deve crer ainda mais fortemente. Um absurdo completo.
Só a fé, então, já basta para a salvação, de acordo com Martinho Lutero. A caridade, o amor a Deus e ao próximo, as boas obras, tudo isso para Lutero é impossível. E mesmo tentar fazer essas coisas já é um pecado, segundo ele. Essa doutrina é abominável, vai contra Cristo, contra a Sagrada Escritura, contra a Igreja, contra a razão e contra o mais simples bom senso. Onde está, nessa doutrina da reforma, a santidade que nosso Senhor veio trazer mandando que fôssemos perfeitos como o Pai Celeste é perfeito? Onde está o renascimento espiritual pelo batismo, que Nosso Senhor chama de um novo nascimento espiritual em seu diálogo com Nicodemos? Onde está a necessidade das boas obras, afirmada por São Thiago tão claramente, bem como pelo próprio São Paulo?
Essa doutrina de Lutero da justificação pela fé somente leva à afirmação de que todos os meios de santificação são inúteis: a missa, os sacramentos, o sacerdócio, a Igreja e sua hierarquia – o papa em primeiro lugar -, a prática das penitências, as próprias orações e a prática das virtudes. De fato, Lutero vai se opor a tudo isso. Ele vai manter, em aparência, apenas dois sacramentos, mas dizendo que são simplesmente cerimônias para favorecer essa fé-confiança. Ele vai negar a Igreja e a sua hierarquia. Vai negar a autoridade do Papa e dos Concílios, quando fica evidente que a sua doutrina contradiz a doutrina de sempre da Igreja. Nega, assim, também a Tradição e o Magistério da Igreja, dizendo que só a Sagrada Escritura basta e que cada um pode interpretá-la livremente. É o sola Scriptura com o livre exame da Bíblia, derivados do seu subjetivismo, derivados da sua leitura subjetivista da Sagrada Escritura e derivados da franca oposição da interpretação dele com a interpretação dos padres da Igreja e com a interpretação da Igreja. Para resolver essa oposição, ele afirma, então, que apenas a sua opinião vale. A tal ponto chega Lutero que ele vai pretender decidir quais livros são inspirados ou não: negará, por exemplo, a Epístola de São Thiago, que afirma a necessidade das obras de maneira muito clara como ouvimos na Santa Missa de hoje.
Lutero lançou, ou melhor, tornou mais evidentes e difundidos os princípios que norteiam a modernidade e que vêm da decadência da Idade Média: 1) o subjetivismo, quer dizer, o reino do sujeito sobre a realidade, em particular em matéria religiosa ao interpretar a Sagrada Escritura segundo o seu gosto (livre exame) e ao erigir em pretensa verdade o que lhe convém e satisfaz; 2) a negação da autoridade e o igualitarismo ao negar a autoridade da Igreja, do Papa e da hierarquia em geral, e ao negar o sacerdócio, igualando, assim, todos. Lutero defenderá a autoridade dos príncipes temporais, mas por mera conveniência, já que muitos deles o protegiam. A negação da autoridade religiosa em Lutero e o seu igualitarismo em religião, fazendo de cada um o Papa que pode interpretar a Bíblia, culminará no igualitarismo político e econômico da revolução francesa e do socialismo, bem como no enfraquecimento generalizado da autoridade em todos os níveis. Tudo isso vai fundamentar o liberalismo: o homem como árbitro da verdade e do bem, independentemente de Deus.
Poderíamos ainda tratar de muitos outros pontos sobre Lutero (como a sua moral péssima), para mostrar como foi catastrófica a sua reforma, que arrastou grande parte da Europa para erros tão escandalosos, tão absurdos, tirando-a da verdadeira Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os princípios de Lutero estavam já latentes na decadência da Idade Média, no voluntarismo de um Duns Scotus, no nominalismo de um Ockham, no subjetivismo do chamado misticismo alemão. Ajudaram também na propagação da heresia protestante o nacionalismo e o absolutismo (dos soberanos temporais) crescentes e derivados do renascimento e que opunham os príncipes ao Papa. Muitos soberanos temporais enxergaram, na reforma protestante, a ocasião para diminuir a influência da Igreja na sociedade e para confiscar os bens da Igreja. Ajudou também na propagação da heresia o lamentável enfraquecimento da figura do Papa aos olhos do povo e dos soberanos em virtude de acontecimentos que antecederam a revolução protestante. O primeiro acontecimento foi o cativeiro de Avignon, quando o papado se instalou em Avignon, em virtude da pressão do rei da França, em atitude descabida, e em virtude da insegurança em Roma, dadas as lutas entre partidos. Ficou o Papa nessa cidade da França, com o rei procurando controlá-lo, o que gerará desconfiança ao Papa por parte de outros soberanos, supondo que o Papa atendia aos interesses do rei da França. O segundo acontecimento foi o cisma do ocidente, quando a cristandade ficou dividida na submissão entre dois bispos que se proclamavam Papa (claro, apenas um era verdadeiramente o Papa). O cativeiro (68 anos) e o cisma (39 anos) duraram um tempo bastante considerável. Foram acontecimentos péssimos.
Podemos, ainda, citar o humanismo e o renascimento como causas favorecedoras da difusão infeliz do protestantismo. O humanismo com seu desprezo da escolástica, incluindo a boa. O renascimento com seu paganismo e que chegou a penetrar em muitos membros da Igreja, gerando escândalos, permitindo que Lutero se apresentasse como um reformador diante dos incautos.
Lutero foi condenado pelo Papa Leão X com a famosa Bula Exsurge Domine e pelo Concílio de Trento.
A chamada reforma protestante foi realizada há 500 anos, em 1517. Esse é o ano marcado pela fixação das suas 95 teses na porta da Universidade de Wittenberg, onde lecionava Sagrada Escritura, em particular as Epístolas de São Paulo. Na verdade, a fixação dessas 95 teses é contestada por alguns historiadores bem sérios. Seria uma elaboração posterior para engrandecer um pouco a figura de Lutero. A fixação de teses na porta da Igreja era uma convocação para uma disputa teológica. O fato é que não houve essa disputa nesse momento, o que nos faz pensar que as teses não foram fixadas. Se tivessem sido, certamente teólogos católicos teriam disputado com Lutero nesse momento, como fizeram depois. O pretexto para as 95 teses foram as indulgências. Mero pretexto. Lutero queria já apresentar seus dogmas, elaborados pelos seus pensamentos para resolver suas angústias. Claro que houve alguns abusos nas indulgências por parte de alguns encarregados de pregá-las e concedê-las, mas, em si, as indulgências são excelentes. Lutero utilizou essa questão como pretexto para sua revolta. Qualquer criança do catecismo sabe que as indulgências não compram o céu e que elas pressupõem o arrependimento sincero do pecado e o desapego do pecado.
O fato é que já faz 500 anos, com consequências tão drásticas para as almas. Não há o que comemorar. Não podemos comemorar um acontecimento que levou tantas almas para o erro e que perdeu tantas almas. Devemos mais bem lamentar. Mas a providência divina age. Ela suscitou verdadeiros reformadores. Santo Inácio de Loyola, Santa Teresa de Ávila, São Pedro de Alcântara, São Felipe Neri, São Carlos Borromeu, São Pio V, São Camilo de Lelis e tantos outros. Se a Igreja perdia metade de um continente, conquistava grande parte das Américas com os missionários jesuítas, franciscanos e dominicanos. E com a aparição de Nossa Senhora de Guadalupe no México. Deus age na história, caros católicos. Tenhamos confiança e façamos a nossa parte, procurando nos santificar.
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
Algumas Fontes:
Philip Hughes. História da Igreja Católica.
Bernardino Llorca. Manual de História Eclesiástica.
Frantz Funck-Brentano. Lutero.
Ricardo Garcia-Villoslada. Raíces Históricas del Luteranismo.
Ricardo Garcia-Villoslada. Martín Lutero (2 volumes).
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