Prezados leitores, Salve Maria!

Para os dias atuais, nada como aprofundar nosso entendimento sobre a questão Missa Tridentina X Missa Nova, pois os momentos são estranhos e a guerra está apenas começando.

Padre Paul Aulagnier deixa um artigo para os católicos mostrando de forma clara e objetiva, se é possível depreciar o Novus Ordo Missae, nós acreditamos que sim!

Claro que sabemos que a vitória será da missa celebrada no Rito Tridentino, pois Nosso Senhor já venceu com sua morte na cruz e sua ressurreição gloriosa, mas para aumentar nossa glória no céu, ele espera que nos coloquemos em formação de batalha para lutar pela Santa Igreja, pois precisamos completar a nossa parte na redenção de Nosso Senhor e ganhar o céu.

Antes de ler rezemos para que o Divino Espirito Santo nos ilumine e que Nossa Senhora (A Mulher Vestida de Sol) que pisa sobre a cabeça da serpente que é lucifer nos afaste a tentação de abandonar a Igreja Católica em função dos sofrimentos que teremos que enfrentar.

Um grande abraço em Cristo!

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Introdução constante na publicação do site do IBP - São Paulo pelo Padre Renato Coelho.

Salve Maria!

É com alegria que gostaríamos de compartilhar com os leitores de língua portuguesa o interessante, atual e importante artigo do Pe. Paul Aulagnier (IBP) que infelizmente nos deixou neste ano de 2021 (Requiescat in pace). Diante de tantos discursos ignorantes contrários à salutar prática de celebrar a Eucaristia segundo o rito tridentino, pareceu-nos importante começar a expor algumas das várias legítimas ressalvas que temos em celebrar segundo o rito de Paulo VI. Tentamos manter o estilo (em negritos) do original com pequenos ajustes e acréscimos destacados entre colchetes [ndt = nota do tradutor], também as citações de páginas fazem referência às fontes usadas pelo próprio Pe. Aulagnier. 

Boa leitura!

Nossa Senhora das Mercês, rogai por nós.

Pe. Renato Coelho, IBP

OBS: A maioria das traduções foi feita direta do texto do Pe. Aulagnier, com exceção dos trechos do livro “Breve exame crítico” em que se utilizou a tradução obtida em https://www.fsspx.com.br/wp-content/uploads/2009/09/Breve_Exame_Critico_do_Novus_Ordo_Missae.pdf e do Motu Proprio Summorum Pontificum (https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/motu_proprio/documents/hf_ben-xvi_motu-proprio_20070707_summorum-pontificum.html)

Artigo original: https://www.revue-item.com/8209/deprecier-le-novus-ordo-missae-est-ce-possible/

Publicado em  “regards sur le monde” no dia 27 de junho de 2013.

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O Instituto Bom Pastor em frente ao problema da Missa Nova

É possível depreciar o Novus Ordo Missae?

Padre Paul Aulagnier

Eu anunciei ontem minha participação pela internet no Congresso “Sacra Liturgia 2013” que acontece nestes dias em Roma sob a alta presidência de Dom Rey. Ei-la:

Roma nos pede para viver das riquezas da missa antiga romana e também para saber transmiti-las, mas sem depreciar as riquezas da nova missa. É um desejo que parece se generalizar hoje em dia. Poderíamos resumi-lo assim: vocês têm o direito à missa antiga, aceitem em troca a nova missa e suas riquezas. Troca por troca!

[Dom Dominique Rey]

Vários representantes da hierarquia falam neste sentido. É assim que Dom Rey declarava, em sua recente entrevista publicada em La Nef, anunciando a conduta do colóquio Sacra Liturgia 2013 que ele preside em Roma neste fim de junho, querer celebrar nesta ocasião as duas formas do único rito romano: “As divisões entre os adeptos da ‘forma extraordinária’ do rito romano e aqueles da ‘forma ordinária’ não têm mais razão de existir… as duas formas do único rito romano têm cada uma delas um lugar legítimo na vida da Igreja e não podemos recusar nenhuma das duas”.  Ele acaba de retomar esta ideia, em sua homilia de abertura no dia 25 de junho de 2013: “Ele (Bento XVI) nos demonstrou que não se deve haver nenhuma oposição entre as formas antiga e nova do rito romano – que todas as duas têm seu lugar na Igreja da nova evangelização”.

Todas essas personalidades se fundamentam sobre o ensinamento de Bento XVI, aquele expresso em seu Motu Proprio Summorum Pontificum. Com efeito, Dom Rey se justifica dizendo: “Bento XVI, de certa maneira, resolveu esta questão e nós nos colocamos em sua escola: em Sacra Liturgia 2013, nós celebraremos as duas formas litúrgicas em particular com os cardeais Cañizares e Brandmüller, como Bento XVI o disse claramente” em seu Motu Proprio.

A missa “nova” não colocaria mais “problemas” teológicos nem pastorais. Precisar-se-ia aceitá-la puramente e simplesmente, sem solicitar correções, reforma, e ainda menos revogação. De agora em diante devemos nos ater ao artigo 1§1 do Motu Proprio Summorum Pontificum: “O Missal Romano promulgado por  Paulo VI é a expressão ordinária da ‘lex orandi’ (‘norma de oração’) da Igreja Católica de rito latino. Contudo o Missal Romano promulgado por São Pio V e reeditado pelo Beato  João XXIII deve ser considerado como expressão extraordinária da mesma ‘lex orandi’ e deve gozar da devida honra pelo seu uso venerável e antigo. Estas duas expressões da ‘lex orandi’ da Igreja não levarão de forma alguma a uma divisão na ‘lex credendi’ (‘norma de fé’) da Igreja; com efeito, são dois usos do único rito romano. Por isso é lícito celebrar o Sacrifício da Missa segundo a edição típica do Missal Romano, promulgada pelo Beato  João XXIII em 1962 e nunca ab-rogada, como forma extraordinária da Liturgia da Igreja”.

O que pensar de tudo isso? O Motu Proprio Summorum Pontificum exprime verdadeiramente um julgamento definitivo de Bento XVI? Ele não seria antes de tudo o resultado de um compromisso que tem sido objeto de muitas discussões? Ele fala dessas discussões duas vezes em sua carta de apresentação transmitindo este documento aos bispos: no início: “Este documento é o resultado de longas reflexões, de múltiplas consultas e de oração” e um pouco mais para frente, ele escreve: “durante as discussões sobre este Motu Proprio…

Essas consultas, essas discussões resultaram em um compromisso, o mesmo do artigo 1§1? Houve alguma pressão exercida sobre Bento XVI para obtê-lo?

São perguntas que eu gostaria de abordar aqui.

Antes de tudo, eu gostaria de “discutir”, em uma primeira parte, o julgamento de Roma bem como aquele de Dom Rey. Não se deve mais “criticar” o novo rito? Ele se tornou idôneo, com o passar do tempo, como por um passe de mágica? Depois, em um segundo momento, eu gostaria de abordar o pensamento litúrgico de Bento XVI tal qual ele exprimiu em numerosas obras, mas também em seu Motu Proprio Summorum Pontificum que tanto nos alegrou por devolver à Igreja o livre uso da Missa “tridentina”. Mas que também nos “surpreendeu” porque ele exigia de todos nós, em “sua carta de apresentação aos bispos”, o “reconhecimento do valor e da santidade” deste rito novo que ele próprio, muitas vezes e tão intensamente, criticou. Ele que foi o primeiro a falar com tanta veemência da necessária “reforma da reforma”…

[Dom Lefebvre (à esquerda) e Dom Castro Mayer (à direita)]

Eu não invocarei aqui a autoridade de nossos mestres porque eles são contestados pela autoridade eclesiástica – erroneamente, certamente, mas contestados mesmo assim… Eu não falarei então de dom Lefebvre, nem de dom Castro Mayer, nem do Pe. Calmel, nem do Pe. Dulac. Eu também não falarei das autoridades leigas como aquela de Louis Salleron ou de Jean Madiran que nos deixaram um ensinamento tão rico e explícito sobre esta reforma litúrgica resultante do Concílio Vaticano II. Deixarei passar em silêncio suas autoridades e seus ensinos, não querendo ser “polêmico”. Eu somente falarei aqui dos estudos de membros renomados da hierarquia católica. Eu invocarei essencialmente os estudos dos cardeais Ottaviani e Bacci, as numerosas conferências, tão pouco conhecidas, do cardeal Stickler, os numerosos livros ou artigos do cardeal Ratzinger e de monsenhor Gamber, liturgista tão intensamente recomendado pelo cardeal Ratzinger. Eu não esqueceria também de invocar a autoridade de Bento XVI. Há muito o que dizer sobre o seu Motu Proprio Summorum Pontificum.

Tais serão as autoridades citadas. Sobre elas, com elas, utilizando seus próprios argumentos, eu penso poder não seguir totalmente o julgamento de Roma e poder continuar a “depreciar” o Novus Ordo Missae. E dizer meu non possumus à sua celebração. Pois estas autoridades também “depreciaram” o novo rito. Nesse sentido, nós somente seguimos seus argumentos e raciocínios, mesmo se nós nos distanciamos de suas posições práticas. Cabe à Roma de reconhecer e reconsiderar a questão.

Primeira parte: A crítica do Novo Ordo Missae.

§1- Os cardeais Ottaviani e Bacci.

Comecemos imediatamente pelas autoridades dos cardeais Ottaviani e Bacci.

[Cardeal Ottaviani]

No dia 3 de abril de 1969, depois da publicação da constituição apostólica Missale romanum de Paulo VI dando à Igreja um novo Ordo Missae – o que estava em seu poder e então, nesse sentido, perfeitamente legítimo – os cardeais Ottaviani e Bacci escreveram ao Soberano Pontífice somente seis meses depois, no dia 3 de setembro de 1969, uma carta apresentando um estudo aprofundado intitulado Breve exame crítico do novo Ordo Missae. Nesta carta, eles não temiam escrever: “O novo Ordo Missae – considerando-se os novos elementos amplamente suscetíveis a muitas interpretações diferentes que estão nela implícitos ou são tomados como certos – representa, tanto em seu todo como nos detalhes, um surpreendente afastamento da teologia católica da Missa tal qual formulada na sessão 22 do Concílio de Trento. Os ‘cânones’ do rito definitivamente fixado naquele tempo constituíam uma barreira intransponível contra qualquer tipo de heresia que pudesse atacar a integridade do Mistério”.

É difícil de depreciar mais claramente o novo rito, aquele “totalmente inventado” pelo Concilium instituído por Paulo VI, tendo em sua cabeça o cardeal Lercaro, como presidente e monsenhor Bugnini, como secretário.

Eles depreciam tanto a nova missa que eles não receiam falar de “ruptura” na transmissão da fé. Eles escrevem: “As inovações no Novus Ordo e o fato de que tudo o que possui um valor perene encontra ali apenas um lugar secundário – se é que continua a existir – poderiam muito bem transformar em certeza as suspeitas, infelizmente já dominantes em muitos círculos, de que as verdades que sempre foram objeto de crença pelos cristãos podem ser alteradas ou ignoradas sem infidelidade ao sagrado depósito da doutrina ao qual a fé católica está para sempre ligada”.

Os cardeais fazem aqui alusão a todas as supressões, ou melhor, a diminuição dos gestos em relação à presença real e substancial de Nosso Senhor Jesus Cristo na eucaristia, supressão de genuflexões, de sinais de cruz… ; também no que diz respeito à especificidade do sacerdote na oferenda do sacrifício, o sacerdote gozando de um sacerdócio essencialmente distinto daquele dos fiéis, permitindo que ele sozinho ofereça o sacrifício do Cristo.

Mas eles querem sobretudo fazer alusão ao famoso artigo 7 da Instrução geral publicada na constituição Missale Romanum do 3 de abril de 1969. Aí, nós encontramos uma definição da missa: “A missa, ou a Ceia do Senhor é a assembléia sagrada ou congregação do povo de Deus, reunindo-se sob a presidência do sacerdote, para celebrar a memória de Nosso Senhor. Por esta razão, a promessa de Cristo se aplica de forma suprema para uma reunião local da Igreja: ‘Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles’”. Esta definição não contém nenhum elemento constitutivo do que é a missa católica, a saber, “o verdadeiro sacrifício propiciatório de Nosso Senhor Jesus Cristo renovado sobre o altar”. Ao ler o artigo 7, parece que a missa seria somente um memorial da Ceia, ou ainda uma banal assembléia fazendo a memória da Páscoa do Senhor. Este artigo 7 é tão afastado da doutrina católica da missa que se precisou modificar integralmente o texto. Ora, é sobre esta definição do artigo 7, primeira fórmula, que o Concilium e monsenhor Bugnini em particular, elaboraram o novo rito. O novo rito não seria então atingido por uma “legítima suspeita”? E além do mais ele foi elaborado num espírito realmente ecumênico [ndt: autor usa aqui o termo “ecumênico” num sentido pejorativo, isto é, de favorecedor do indiferentismo religioso] onde se tratava de tirar “tudo o que poderia desagradar aos protestantes”.

Portanto, não é surpreendente ver, na conclusão de sua carta, os cardeais Ottaviani e Bacci pedindo nada menos do que a “revogação” do novo rito, ou pelo menos que a cristandade não seja privada da possibilidade de continuar a recorrer ao íntegro e fecundo missal romano de São Pio V.

Acho que é difícil ser mais claro.

[Pe. Claude Barthe]

Ora, o Breve exame crítico nunca foi refutado. E de fato, o padre Claude Barthe o ressalta em sua apresentação do Breve exame crítico, novamente publicado pela Renaissance Catholique: “Um exame crítico à espera de uma resposta” (p. 21). Melhor ainda, dom Schneider, bispo no Cazaquistão, arcebispo de Karaganda, fez deste Breve Exame Crítico um elogio evidente. Em sua conferência de 15 de janeiro de 2012 em Paris, ele pediu que o novo ofertório do novo rito fosse substituído pelo ofertório do antigo Missal… este novo ofertório não correspondendo à doutrina católica… Não é depreciar o novo rito?

§2 – O Cardeal Stickler.

Mas é também o cardeal Stickler que tomou a defesa do Breve exame crítico durante sua reedição pela Renaissance Catholique em 2004. É ele que escreveu seu prefácio.

É um canonista reconhecido que foi membro das comissões preparatórias do Concílio Vaticano II, depois perito de diferentes comissões conciliares, em particular da Comissão Litúrgica. Não se pode ter uma melhor testemunha do pensamento conciliar, sobretudo em matéria litúrgica.

[Cardeal Stickler]

Ora, quanto ao assunto do Breve exame crítico, ele fala de um texto “importante” que “não perdeu nada do seu valor” nem, infelizmente, de sua “atualidade”. Quanto ao assunto da reforma litúrgica, se ele não fala de “ruptura”, como os cardeais Ottaviani e Bacci, ele fala então de “revoluções” na vida litúrgica da Igreja. A diferença não é grande! Ele fala dessas revoluções com pleno conhecimento de causa porque ele foi, como eu disse, “perito em liturgia no Segundo Concílio do Vaticano”: “O decreto Sacrosanctum Concilium sugeria uma reforma, como se entende no seio da Igreja Católica, diz ele, e não uma revolução acompanhada de uma fabricação precipitada de novos ritos”. Novamente, isso não é falar da “devastação” da Igreja causada por essa reforma? Foi o que anunciaram Ottaviani e Bacci. “Foi mérito dos cardeais Ottaviani e Bacci descobrir muito rapidamente que a modificação dos ritos levava a uma mudança fundamental na doutrina”. Ele também, concluindo, elogia os responsáveis da Renaissance Catholique por proceder na reedição deste estudo fundamental e sempre atual: “É, portanto, louvável e útil… fazer ouvir mais uma vez, trinta e cinco anos depois, a voz destes dois príncipes da Igreja, defensores da doutrina, da tradição católica e do papado” (p. 8).

Este prefácio não é a única intervenção do Cardeal Stickler sobre a reforma litúrgica resultada do Concílio Vaticano II, longe disso.

Um pequeno livro “branco” publicado pelo Centro Internacional de Estudos Litúrgicos (CIEL) em maio de 2000, contém um grande número de intervenções do cardeal nesta matéria. É muito interessante seguir seu pensamento.

No dia 20 de maio de 1995, convidado pela associação Christifideles, ele deu uma conferência em Fort Lee em Nova Jersey. O título da conferência era “Os benefícios da missa tridentina”. O título já é um grande ensinamento! Depois de ter estudado as grandes afirmações do Concílio de Trento sobre a doutrina da missa, depois de ter lembrado o caráter sacrificial da missa, depois de ter explicado o sentido de usar a língua latina como língua sagrada, e depois de ter assim podido comparar a Missa de São Pio V e a Missa de Paulo VI, ele concluiu a sua conferência com estas palavras: “Para resumir as nossas reflexões, podemos dizer que os benefícios teológicos da Missa Tridentina correspondem às deficiências teológicas da Missa resultante do Vaticano II”. Mas falar das “deficiências” da Missa Nova, não é “depreciar” a Nova Missa diante do público aí presente (p. 22)?

Mas é sobretudo em sua conferência dada na Internationalen Théologischen Sommerakademie em agosto de 1997 que o cardeal Stickler exprimiu abertamente seu pensamento, ele o intitulou: “Memórias e experiências de um perito da Comissão Conciliar de Liturgia”.

A conferência é bastante longa, tem cerca de trinta páginas do livrinho. Mas que interessante!

O cardeal Stickler primeiro se apresenta. Ele foi professor de direito canônico na Universidade Salesiana, durante oito anos, de 1958 a 1966, reitor desta universidade. Nessa qualidade, foi nomeado consultor da Congregação Romana para os Seminários e Universidades, em seguida nomeado perito da Comissão para o clero.

[Foto dos bispos reunidos no Concílio Vaticano II]

Depois, graças ao cardeal Laraona, ele foi nomeado na Comissão conciliar para a liturgia. “É, diz ele, através desta função indesejada que experimentei o Concílio Vaticano II desde o seu início, uma vez que, como sabemos, a liturgia foi o primeiro tema da agenda. Fui então designado para a subcomissão que deveria redigir as modificações feitas nos três primeiros capítulos e também preparar a redação final dos textos que deveriam ser submetidos à reunião da comissão em plenário, para discussão e aprovação, antes de serem apresentados na aula conciliar”. No âmbito deste trabalho, ele pôde ter uma ideia exata “do que queriam os Padres conciliares, bem como do real significado dos textos votados e adotados pelo concílio”.

Essas precisões me parecem importantes para o nosso assunto. Elas fundamentam a autoridade do cardeal e seu conhecimento do texto conciliar em matéria litúrgica. Não podemos, portanto, ter uma “crítica” melhor quando ele nos dá seu julgamento sobre a “edição final” do novo Missal “Romano”.

Ora, ao tomar conhecimento da edição definitiva do Novo Missal “Romano”, ele disse que foi “obrigado a constatar que, em muitos pontos, o seu conteúdo não correspondia aos textos conciliares que me eram tão familiares, que muitas coisas tinham sido alteradas ou expandidas, ou mesmo iam diretamente contra as instruções dadas pelo Concílio”.

Isso não é depreciar a reforma litúrgica?

Ele pediu uma audiência com o Cardeal Gut que, em 8 de maio de 1968, havia se tornado Prefeito da Congregação dos Ritos, e manifestou-lhe nesta audiência, seu “espanto”, seu “mal-estar crescente” e até mesmo sua “fúria frente a certas contradições particulares” (com o texto conciliar), “suas inquietações”, sobretudo considerando as consequências necessariamente graves que se poderia esperar.

Também nós não estamos surpreendidos com o tema de sua conferência: ele quer julgar “a concordância ou a contradição entre as disposições conciliares e a reforma efetivamente aplicada” (p. 35).

Este tema é importante para nós. De suma importância em nosso assunto.

Os grandes princípios litúrgicos lembrados pelo Concílio.

Primeiramente, o cardeal lembra alguns grandes princípios litúrgicos felizmente sublinhados pela Constituição Sacrosanctum Concilium. Ele nos recorda o artigo 2 que afirma que, na liturgia, “tudo o que é humano deve ser subordinado e sujeito ao divino, o visível ao invisível, a ação à contemplação, o presente à futura cidade divina que buscamos” (p. 35).

Mas os reformadores simplesmente falharam, escreve ele, em aplicar esse princípio óbvio. Ao contrário, a nova liturgia frequentemente “sujeitou o divino ao humano, o mistério invisível ao visível, a contemplação ao ativismo, a eternidade futura ao presente humano cotidiano” (p. 64).

O cardeal está simplesmente admitindo o fracasso, o fracasso total. Não é “menosprezar”, “depreciar” a reforma litúrgica? Não é este o motivo da perda de piedade que o Cardeal Ratzinger tantas vezes lamentou em seus escritos enquanto ele era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé?

Portanto, a primeira reforma teria falhado?

“É precisamente porque estamos sempre mais claramente atentos à situação atual (nota do Editor da Revue-Item: sobre o “colapso” da reforma litúrgica e sua infidelidade ao pensamento conciliar… Mas de quem é a culpa?…) que se fortalece a esperança de uma possível restauração que o cardeal Ratzinger vê em um novo movimento litúrgico que despertará para uma nova vida a verdadeira herança do Concílio Vaticano II”.

[Então cardeal Ratzinger]

E ele cita o livro do Cardeal, Minha Vida, particularmente esta passagem: “Estou convencido, diz o Cardeal Ratzinger, de que a crise da Igreja que vivemos hoje repousa em grande parte na desintegração da liturgia que às vezes é concebida de tal maneira – etsi Deus non daretur (como se Deus não existisse) – que seu propósito não é mais significar que Deus existe, que ele nos fala e nos ouve. Mas se a liturgia já não permite que surja uma comunidade de fé, a unidade universal da Igreja e da sua história, o mistério do Cristo vivo, onde a Igreja ainda manifestaria a sua natureza espiritual? Portanto, a comunidade apenas celebra a si mesma. E não vale a pena. E porque não existe comunidade em si, pois ela brota sempre e somente do próprio Senhor, pela fé, como uma unidade, a desintegração em todos os tipos de disputas mesquinhas, oposições partidárias em uma Igreja que está se despedaçando torna-se inevitável. É por isso que precisamos de um novo movimento litúrgico que faça nascer a verdadeira herança do Concílio Vaticano II” (Minha Vida, p. 135).

Isso não é falar, de forma velada, de um fracasso da reforma litúrgica?

O cardeal Stickler repassa rapidamente e resume alguns artigos fundamentais do texto conciliar. Lembretes bastante óbvios e tradicionais:

Os artigos 21 e 23, que estabelecem que nada deve ser alterado – em matéria litúrgica – “antes de se desenvolver um cuidadoso estudo teológico, histórico, pastoral, que assegure um harmonioso desenvolvimento orgânico”.

Este princípio é essencial. A Igreja é apostólica.

O artigo 33 lembra o propósito da liturgia: “A liturgia é principalmente o culto da majestade de Deus”. Já não era sem tempo!

Os artigos 34 e 54 sobre a língua latina. Aí o Cardeal dá o seu testemunho. É muito instrutivo! “Depois de alguns dias de debates durante os quais todos os argumentos a favor ou contra foram vigorosamente debatidos, chegamos à conclusão muito clara – inteiramente de acordo com o Concílio de Trento, que era necessário manter o latim como o língua de culto do rito latino, mas que as exceções eram possíveis e até desejáveis” (p. 38-39).

A respeito do canto gregoriano, do órgão, o Cardeal recorda o artigo 116 da Constituição: “O gregoriano tem sido o cântico próprio da liturgia católica romana desde o tempo de Gregório Magno e como tal deve ser mantido” (p. 39).

– Recorda o artigo 108 que sublinha de modo especial a importância das festas do Senhor, e especialmente as do “próprio do tempo”, as quais devem ter prioridade sobre as festas dos santos, para não enfraquecer a plena eficácia da celebração dos mistérios da salvação (p. 39). Mas esse foi o ensinamento que Dom Guillou, professor de liturgia em Écône, transmitiu aos seminaristas com energia e convicção – para sempre.

É à luz desses princípios recordados que o Cardeal continuará sua apresentação e sua “crítica” da reforma litúrgica e da Nova Missa.

Quanto ao “desenvolvimento harmonioso” da liturgia, ele recorda o princípio litúrgico muito importante: Lex orandi, lex credendi (A lei da oração é a lei da fé [ndt: o modo de rezar exprime uma doutrina subjacente]). Ele escreve: “A liturgia contém e expressa a fé de maneira justa e compreensível” (p. 40). De maneira que “a perpetuidade da liturgia participa da perpetuidade da fé e até ajuda a preservá-la”. E como a fé é imutável, também o é a liturgia que a expressa. “É por isso que nunca houve uma ruptura, uma recriação radical em nenhum dos ritos cristãos católicos, inclusive no rito latino-romano” (p. 40-41). A evolução litúrgica, portanto, é lenta, como a de um ser vivo, “orgânica”; é por isso que devemos falar, como o Cardeal Ratzinger tantas vezes o faz, de uma evolução necessariamente “orgânica” da liturgia.

“Em todos os ritos, a liturgia é algo que se desenvolveu e continua a crescer lentamente; ela procede do Cristo e assumida pelos Apóstolos, ela foi desenvolvida organicamente pelos seus sucessores, em particular pelas figuras mais destacadas como os Padres da Igreja, tudo isso preservando conscienciosamente a substância, ou seja, o corpo da Liturgia como tal”.

[Dom Guillou]

Dom Guillou, professor em Écône, nos ensinou a mesma coisa! Na festa de Pentecostes de 1975, ele escreveu um texto maravilhoso que constitui o prefácio do livro Le livre de la Messe, editado por Philippe Héduy, este grande poeta: “A Missa é de instituição divina e apostólica. Mas não chegou até nós como os Apóstolos a celebravam (embora nunca tenha sido uma pura imitação da Última Ceia…), ela é agora a flor de um crescimento sui generis. Seus elementos constituintes desenvolveram-se sem evolução, nem mudança (substancial) ao longo dos séculos … sob a orientação do Espírito Santo, cuja assistência foi prometida à Igreja” (p. 17-18).

Gosto desta expressão do Cardeal: “É por isso que nunca houve uma ruptura, uma recriação radical… no rito latino romano”, “com exceção, porém, diz ele, da atual liturgia pós-conciliar, na aplicação da reforma… embora o Concílio… sempre tenha reafirmado que esta reforma deveria absolutamente preservar a tradição” (p. 40-41).

Dizer que o cardeal não “menospreza” a liturgia reformada não é compreender o significado das palavras nem o pensamento aqui apresentado.

“Nunca houve uma ruptura… com exceção da atual liturgia pós-conciliar”!

Mas esse era o ensinamento do cardeal Ottaviani.

Ele escreveu a Paulo VI: “O novo Ordo Missae – considerando-se os novos elementos amplamente suscetíveis a muitas interpretações diferentes que estão nela implícitos ou são tomados como certos – representa, tanto em seu todo como nos detalhes, um surpreendente afastamento da teologia católica da Missa tal qual formulada na sessão 22 do Concílio de Trento”.

Para estes prelados, é, portanto, uma ruptura que estamos a vivenciar com o Novo Ordo Missae, “uma ruptura com a Tradição”, ao contrário do que pretendia o Concílio. Além disso, o próprio Cardeal Ottaviani utiliza o termo “ruptura”: “As razões pastorais apresentadas para justificar uma ruptura tão grave”.

O cardeal Stickler fala de “uma novidade real e radical”. Ele afirma sem reservas: “O Ordo Missae (é) radicalmente novo… enquanto todas as reformas anteriores adotadas pelos papas e, em particular, aquela empreendida sob a impulsão do Concílio de Trento e implementada pelo Papa Pio V e até as de Pio X, de Pio XII e de João XXIII, não foram revoluções, mas apenas correções que não tocaram o essencial, eram ajustes e enriquecimentos” (p. 41).

Não temos coisa semelhante com o Ordo de Paulo VI. Temos um Novus Ordo Missae [N.O.M.]. Nada comparável.

E o Cardeal apresentará estas “novidades”: “Apresentaremos agora alguns exemplos marcantes (sem querer ser exaustivo) do que se criou na reforma pós-conciliar e, em particular, no seu coração: o Ordo Missae é radicalmente novo” (p. 41).

Em seguida, o Cardeal analisa o Novo Ordo. Ele folheou o Novo Ordo. Ele não insiste na introdução da Missa. Ela é “nova”, diz ele (p. 42), e acima de tudo compreende “múltiplas variantes”, o que muitas vezes resulta em uma diversidade quase ilimitada… o que também reconhece o Cardeal Ratzinger e seu Mestre, Monsenhor Gamber. Ele vai imediatamente para o Ofertório.

Aí, ele fala sobre o assunto da “revolução”. Não poderíamos ser mais críticos. Esta crítica será retomada por Dom Schneider em 15 de janeiro de 2012 em sua conferência em Paris (Cf. La réforme liturgique de Benoît XVI, ed. Godefroy de Bouillon, p. 87 e seg.).

O Ofertório, na sua forma e no seu conteúdo, constitui uma revolução: de fato, já não é mais previsto uma oferta prévia de dons, mas simplesmente uma preparação das oblatas com um teor claramente humanista, mas que, no final das contas, dá imediatamente uma impressão de desatualizado (p. 42).

Ele continua: Quanto aos sinais muito elogiados pelo Concílio de Trento e exigidos pelo Concílio Vaticano II, como os numerosos sinais da cruz que remetem à Santíssima Trindade, os beijos do altar e as genuflexões, de tudo isso, fizemos tábua rasa [ndt: esvaziou-se]” (p. 42).

Ele então fala do Sacrifício que é a essência da Missa.

Ele escreve: “O centro essencial da Missa, que era precisamente a própria ação sacrificial, foi deslocado em favor da comunhão, […] o Sacrifício da Missa foi transformado em refeição eucarística. Ao fazê-lo, se considerarmos os termos usados, a comunhão tornou-se, na consciência dos fiéis, a única parte da Missa que verdadeiramente a constitui, em vez da parte essencial que é a ação sacrificial da transubstanciação”… “É errado fazer da Eucaristia uma refeição, o que quase sempre acontece na nova liturgia” (p. 43).

Quem, então, “menospreza” a Nova Missa? Esta nova missa é um sacrifício ou uma refeição? Um é o outro? Se o sacrifício não é uma refeição, nem a refeição um sacrifício, por que o cardeal Castrillon-Hoyos nos pede para não “contrapor” os dois ritos… Por que Bento XVI nos diz que o “rito antigo” e o “rito moderno”, como se expressa Mons. Gamber, “são dois usos do único rito romano”? (MP art1§1).

[Cardeal Castrillon-Hoyos]

E, no entanto, o Breve Exame Crítico ensina que “a definição da Missa é reduzida a uma ceia, um termo que a Instrução Geral repete constantemente (nos números 8, 48, 55, 56). A Instrução mais adiante caracteriza esta ceia como sendo aquela Assembléia presidida pelo padre, aquela assembléia reunida a fim de realizar o ‘memorial do Senhor’ que recorda o que Ele fez na Quinta-feira Santa.”. “Tudo isso não implica nem a Presença Real, nem a realidade do Sacrifício, nem o caráter sacramental do padre que consagra, nem o valor intrínseco do Sacrifício Eucarístico, independente da presença da assembléia”. “Em uma palavra, essa nova definição, o artigo 7, não contém nenhum dos dados dogmáticos que são essenciais à Missa e que constituem a sua verdadeira definição. A omissão, num tal lugar, desses dados dogmáticos, só pode ser voluntária. Uma tal omissão voluntária significa que já se consideram como obsoletos, e equivale, ao menos na prática, a negá-los” (Breve exame crítico).

O Cardeal Stickler continua a sua crítica: “Assim, lançam-se as bases para outro desvio de função: em vez do Sacrifício apresentado a Deus pelo sacerdote ordenado como “alter Christus”, se instaura a comunidade de refeições dos fiéis reunidos sob a presidência do padre” (p. 43).

E o Cardeal diz: “A definição da Missa que, na primeira edição do N.O.M. confirmava esta concepção, foi suprimida no último momento, graças à carta escrita a Paulo VI pelos cardeais Ottaviani e Bacci: esta edição foi ‘amassada’ por ordem do Papa. No entanto, a concessão desta definição não resultou em qualquer modificação do Ordo Missae em si” (p. 43).

Estas frases foram realmente pronunciadas pelo Cardeal Stickler: “Que revolução no próprio coração do Sacrifício da Missa!”

Ele insiste. Ele quer dar ênfase: “Esta revoluçãodo próprio coração do Sacrifício da Missa foi confirmada e acentuada pela celebração ‘versus populum’, prática anteriormente proibida e modificação de toda a tradição da celebração em direção ao Oriente e na qual o sacerdote não era o interlocutor do povo, mas se colocava à sua frente para guiá-los à Cristo com o símbolo do sol nascente no leste” (p. 43).

Então, como não “contrapor” estes dois ritos, o de Trento e o resultante do Vaticano II e, portanto, “menosprezar” o rito de Paulo VI? E como entender o artigo 1§1 do MP de Bento XVI?

Então o cardeal chega à fórmula da consagração do pão e do vinho. Aí, sobre esse assunto, ele é igualmente muito severo. Ele seria repreendido pelo Vaticano? Imporíamos silêncio a ele?

Julgue por si mesmo!

Ele fala do gravíssimo ataque à fórmula da consagração do vinho em Sangue de Nosso Senhor devido à supressão das palavras “Mysterium fidei”.

“As palavras “Mysterium fidei” foram apagadas para serem adicionadas num chamado do povo à oração após a consagração, o que se apresentou como um grande ganho do ponto de vista da ‘participatio actuosa’” (p. 44) .

Neste ponto, o Cardeal vai para a “guerra”. É o Cardeal, Reitor da Universidade, arquivista, quem fala. Ele ensina. Ele cita suas fontes. Ele mostra que “Mysterium fidei” – essas duas palavras – são de origem apostólica. Nada devia ser tocado. São Basílio o ensina. Santo Agostinho também. O “Sacramentarium Gelasianum” também. “O “Sacramentarium Gelasianum” (que é o livro da Missa mais antigo da Igreja Romana, no Codex Vaticanus, Reg. Lat. 316, fólio 181v, no texto original, portanto, não é de um acréscimo posterior) inclui claramente o mysterium fidei” (p. 45).

Ele prossegue. Ele cita a carta de João de Lyon, em 1202, ao Papa Inocêncio III e dá a resposta do Papa com as referências. Argumenta-se: “Em dezembro do mesmo ano, em uma longa carta, o Papa respondia que essas palavras e ainda outras do Cânon que não se encontravam nos Evangelhos, deviam ser acreditadas como palavras transmitidas pelo Cristo aos Apóstolos e através destes para seus sucessores” (p. 45).

Ele fornece as referências históricas. É o professor quem ensina. Sua afirmação é irrefutável. Ela é científica. “Você a encontrará aqui, disse ele: X, III, 41, 6; Friedberg III, p. 636 ss”.

É evidente.

Ele continua: “O fato de que este decreto, que faz parte da coleção de decretos de Inocêncio III na grande coleção do livro X estabelecida por Raimundo de Penhaforte a pedido de Gregório IX, não foi abandonado como obsoleto – o que foi o caso de muitos outros – mas continuou a ser transmitido pela Tradição, prova que foi atribuído um valor duradouro a esta declaração deste grande Papa” (p. 45).

Não há dúvida que não se podia tocar nessas duas palavras da fórmula da consagração do vinho, que não se podia suprimi-las, deslocá-las sem que houvesse uma mudança de sentido. Isso não poderia ser feito sem ser infiel à Tradição Católica e, obviamente, rompendo com ela, assim como as prescrições do Concílio.

Este é o pensamento do Cardeal.

[Ilustração representando Santo Tomás de Aquino]

Ele também invoca a autoridade de Santo Tomás de Aquino. Ele escreve: “Santo Tomás se expressa claramente sobre esta questão em sua ‘Summa theologica’ (III, 78, 3 ad nonum) sobre as palavras da consagração do vinho, lembrando a necessária disciplina secreta da Igreja antiga da qual também fala Dionísio o Areopagita : “As palavras acrescentadas ‘eterna’ e ‘mistério da fé’ procedem da tradição do Senhor que chegou à Igreja por intermédio dos Apóstolos”; ele próprio se refere a 1Cor, 10, 23 e 1Tim, 3, 4” (p. 46).

E a seguir, ele invoca a autoridade do Concílio de Florença, o XVII Concílio Ecumênico: “Na bula da união com os coptas, o Concílio Ecumênico de Florença complementa expressamente as fórmulas de consagração da Santa Missa que não tinham sido incluídas como tais na Bula de União com os Armênios e que a Igreja Romana sempre tinha usado com base no ensinamento e na doutrina dos Apóstolos Pedro e Paulo (conc. oecu. decreta, ed Herder, 1962, p. 557)” (p. 46).

É exatamente isso. O Concílio de Florença, no decreto para os gregos – que se segue ao dos armênios – menciona expressamente o mysterium fidei na fórmula da consagração. Diz-se: “Mas porque no decreto dos armênios relatado acima, não foi explicada a fórmula que sempre foi de costume usar na consagração do Corpo e Sangue do Senhor, a sacrossanta Igreja Romana, fortalecida pela doutrina e pela autoridade dos apóstolos Pedro e Paulo, pensa que deve ser introduzida nos presentes”.

Mas isso não é tudo. O cardeal não se dá por satisfeito… Ele continua sua demonstração de teologia positiva. Aí, desta vez, é exaustivo.

Desta vez, ele invoca o catecismo – o catecismo “de referência”, diz ele, são estas as suas palavras. Eu esperava ver o novo Catecismo da Igreja Católica citado. Mas de jeito nenhum! Ele cita o Catecismo do Concílio de Trento. Ele dá todas as referências. Obviamente, ao preparar a sua conferência, o Cardeal foi procurar este catecismo na sua biblioteca. Ele diz que no capítulo IX, n ° 21, sobre a Eucaristia… “o catecismo ensina que as palavras ‘mysterium fidei’ e ‘aeterna’ provêm da Santa Tradição, que é a intérprete e a guardiã da verdade católica” (p. 46).

Lamento que o Cardeal não tenha continuado a sua leitura do catecismo, porque também teria recordado que, mudando esta expressão tão tradicional, os autores da reforma litúrgica mudaram o seu significado. Novidade! Enquanto o “mysterium fidei” colocado na fórmula da consagração se relaciona com a Presença Real que acaba de ser realizada pela enunciação da fórmula da consagração, o “mysterium fidei” colocado após a consagração – como aclamação popular – dirige a atenção do povo, não mais sobre o mistério da Transubstanciação realizada “hic et nunc” [aqui e agora], mas sim sobre o Retorno na glória do Senhor que é também, naturalmente, o objeto de nossa fé: “donec veniat” mas talvez haja aí, nessa mudança de lugar, uma malícia, uma duplicidade, uma astúcia, uma ambiguidade. A fé aqui afirmada não se refere mais à Transubstanciação, mas ao Retorno na glória do Senhor. Assim, a atenção dos fiéis e a sua “participatio actuosa” são desviadas da presença de Cristo realizada pela Transubstanciação. Os fiéis deveriam adorar a presença real de Nosso Senhor Jesus Cristo no altar, mas o texto os faz aclamar a volta do Senhor em glória.

“Depreciação”. Certamente! Essa depreciação do novo rito não é de forma alguma subjetiva. Baseia-se na doutrina católica mais confiável, na Tradição.

[Dom Annibale Bugnini]

Com a força desta exposição muito erudita, o Cardeal não mede suas palavras e suas críticas contra os reformadores. Ele fala de “superficialidade soberana” de um Lercaro, de um Bugnini e de seus colaboradores. “Pode-se, com razão, contestar a leviandade aqui demonstrada, os colaboradores do Cardeal Lercaro e do Padre Bugnini, necessariamente com seus consentimentos” (p. 46).

“Eles ‘ignoraram’ totalmente, não apenas ignoraram, mas também ‘desprezaram’ a obrigação de conduzir pesquisas históricas e teológicas precisas” (p. 46).

Veremos, mais adiante, o que pensa o Padre Bouyer dessa “leviandade” em suas Memórias.

É isso o que o Concílio Vaticano II expressamente pediu em seu artigo 23 da Constituição Litúrgica (cf. p. 36).

Mas nada disso foi feito, e o Cardeal concluiu e lançou a suspeita sobre toda a obra reformada: “Se aconteceu isso neste caso, o que terá sido desta importante obrigação para as outras modificações” (p. 46).

Isso é terrivelmente sério!

Por fim, deixando a teologia positiva, o Cardeal faz uma consideração ao mesmo tempo doutrinal e pastoral que eu poderia resumir da seguinte forma: este esquecimento do “mysterium fidei” da forma eucarística, longe de favorecer e desenvolver o sentido de piedade e a vida teológica entre os fiéis, ao contrário, favorece tanto a “desmistificação” observada hoje em dia quanto a “antropomorfização”.

Eis a expressão do Cardeal: “Mas esta é também a razão pela qual a exclusão do ‘mysterium fidei’ da fórmula eucarística torna-se também o símbolo da desmistificação e, portanto, da antropomorfização daquilo que constitui o centro do culto divino: a Santa Missa” (p. 47).

Desmistificação”, “antropomorfização”. Essas duas palavras se interagem. São dois erros que, para o Cardeal, seriam a consequência da retirada do “Mysterium fidei”. Não há mais nada de “misterioso” na Nova Missa! Nada transcendente! Nada divino! Tudo é “racional”. Tudo é obra da “ciência”, tudo é obra do homem. Tudo é obra de “fabricação”, dirá o Cardeal Ratzinger! Que crítica!

O Cardeal finalmente chega às decisões dos reformadores sobre “a participação viva e ativa dos fiéis na celebração da Missa” (p. 47).

Sobre a participação ativa dos fiéis.

Sabemos que antes do Concílio havia muitas reclamações sobre a falta de participação dos fiéis na Missa. O Concílio Vaticano II também abordou este assunto em dois artigos importantes: o artigo 30 e o artigo 48.

Ele deu seus princípios: “O Concílio insistiu particularmente, diz o Cardeal, na participação interior, a única que permite que o culto seja fecundo” (p. 38).

O cardeal então dá seu julgamento sobre esta famosa participação ativa, arranjada por nossos reformadores. Ele é terrível. Ele se exprime com um toque de humor sarcástico e ligeiramente desdenhoso… O pobre Bugnini não fez realmente um excelente trabalho, embora pensasse ter alcançado “uma obra-prima”.

Leia, eu te digo. Não consigo resumir. Devemos citar tudo:

“Chegamos assim à ordem dada aos reformadores de promover a participação viva e ativa dos fiéis na celebração da Missa, ordem que, muitas vezes, foi mal interpretada e adaptada à mentalidade atual. Como toda a liturgia, como diz expressamente o Concílio, o objetivo principal da Missa é o culto da Divina Majestade. Portanto, os corações e almas dos participantes devem, em primeiro lugar, ser elevados e elevar-se a Deus. Isso não exclui que a participação se manifeste concretamente no interior da comunidade e em face dela. E é por isso que, para compensar a falta de participação dos fiéis de que tantas vezes nos queixamos antes do Concílio, este solicitou urgentemente esta ‘actuosa participatio’. Mas se ela degenera em uma cadeia ininterrupta de palavras e ações, com a distribuição de papéis tão ampla quanto possível para que todos tenham sua parte na ação, enquanto se lança num ativismo que nasce principalmente de um encontro humano puramente externo e que, ainda pior, é logo antes do momento mais sagrado para os participantes: no encontro individual de cada fiel com o Deus-homem eucarístico, é mais barulhento e perturbador do que nunca, a mística contemplativa do encontro com Deus, o culto prestado a ele com o temor respeitoso, a reverência que deve sempre acompanhá-lo – tudo isso só pode morrer: então o humano mata o divino e enche o coração de vazio e desolação. Este momento pertence ao silêncio, que está expressamente previsto, e que só manteve o seu lugar – com dificuldade – após a ação da distribuição da comunhão, como uma pequena folha de videira sobre um grande corpo nu. É assim que, refletindo a tendência atual da consciência do mundo em se limitar às aparências, vemos se desenvolver na Igreja um agir cultual de concepção humana e projetada para fora”.

Aqui está um julgamento geral do cardeal Stickler sobre a reforma litúrgica bugniniana: uma verdadeira condenação da reforma.

Em seguida, o Cardeal aborda pontos mais específicos: latim, gregoriano, órgão… (Você encontrará sua análise na forma final desta conferência. Não quero me alongar muito… Já é muito longo. Ele deplora fortemente o abandono do latim como língua litúrgica. Ele dá as razões para isso).

Como ele deplora, por fim, as muitas “variantes autorizadas” – verdadeiro princípio constitutivo da reforma litúrgica – que “correm o risco de levar à anarquia que o antigo ordo latino sempre dominou tão bem” (p. 56). “É assim que o novo fiador da ordem – o Cardeal quer dizer: o Novo Ordo Missae – torna-se, por si mesmo, um fator de desordem. Portanto, não deve ser surpresa que cada paróquia, para não dizer cada igreja, pareça ter adotado um ordo diferente. Esta é uma observação que pode ser feita em qualquer lugar” (p. 55). E que leva à irreverência atual, a perda do sentido do sagrado e a superficialidade. Tudo isso sendo muito prejudicial à dignidade do novo rito.

[Foto do mosteiro beneditino em Fontgombault

Nesta ideia de “criatividade”, o Cardeal Stickler é acompanhado pelo Cardeal Ratzinger. Ele disse no mosteiro de Fontgombault em 24 de julho de 2001: Para permitir a reconciliação litúrgica na Igreja, “o primeiro ponto seria rejeitar a falsa criatividade que não é uma categoria da liturgia. Já se recordou mais de uma vez o que o Concílio realmente diz sobre este assunto: só a autoridade eclesiástica que decide, não é direito de um sacerdote ou de algumas pessoas mudar a liturgia. Mas, no novo Missal, muitas vezes encontramos fórmulas como: sacerdos dicit sic vel simili modo [ndt: o sacerdote diz assim ou de modo semelhante]… ou então: Hic sacerdos potest dicere [ndt: aqui o sacerdote pode dizer (se quiser)]. Esta fórmula do Missal de fato formaliza a criatividade; o padre quase se sente obrigado a mudar um pouco as palavras, para mostrar que é criativo, que atualiza esta liturgia na sua comunidade; e com esta falsa liberdade que transforma a liturgia em catequese para esta comunidade, a unidade litúrgica e a eclesialidade da liturgia são destruídas. Portanto, parece-me que já seria uma coisa muito importante para a reconciliação, que o Missal se libertasse daqueles espaços de criatividade que não respondem à realidade profunda, ao espírito da liturgia. Se com uma tal ‘reforma da reforma’ pudéssemos voltar a uma celebração fiel, eclesial, da liturgia, isto já seria, em minha opinião, um passo importante, porque a eclesialidade da liturgia voltaria a aparecer claramente” (op citado p. 180).

O Novo Ordo Missae é “criticado” neste ponto da criatividade litúrgica. Certamente. Mas por quem? Por dois Cardeais da Santa Igreja.

É preciso reconhecer que o cardeal Stickler, no final de sua intervenção, declara: “Apresso-me em assinalar que quando a nova liturgia é celebrada com reverência – o que sempre acontece, por exemplo, em Roma e pelo próprio Papa – os lamentáveis abusos que decorrem essencialmente da divergência entre a Constituição conciliar e o novo ordo não acontecem” (p. 57-58).

Como escrever isso sem contradição? Como afirmar que somente a reverência na celebração do Novus Ordo Missae pode corrigir todas as deficiências? Aí, eu não entendo mais. O vernáculo permanece o vernáculo, quer seja usado com reverência ou não. O novo ofertório continua sendo o novo ofertório – o Cardeal o descreveu como uma verdadeira revolução na Igreja – seja dito com reverência ou não. A “predominância da refeição sobre o Sacrifício” permanece independente de qual seja a reverência do celebrante, seja ele o Papa. A modificação da fórmula da consagração do vinho permanece o que é: uma verdadeira infidelidade a toda Tradição, seja pronunciada com reverência ou não, pelo Papa ou outro celebrante, em Roma ou em Pamplona. E você acha que a abolição do gregoriano e do canto polifônico, do órgão, do silêncio, da contemplação interior, você realmente acha que tudo isso promove, nutre a reverência do povo? Acha que a abolição dos sinais da cruz, dos beijos do altar, das genuflexões – que o Cardeal deplora – pode favorecer uma maior reverência pelos mistérios celebrados? Este julgamento parece-me contraditório.

Prefiro a autoridade viril do Cardeal Ottaviani pedindo a Paulo VI – depois da apresentação feita no Breve exame crítico – a revogação do Novo Ordo Missae ou, no mínimo, “a possibilidade de continuar a recorrer aos íntegro e fecundo Missal Romano de São Pio V”. Acho mais coerente. E eu observo, aqui novamente, uma diversidade prática, concreta, do magistério atual na aplicação da reforma: uns pedem pura e simplesmente sua revogação, outros se contentam em pedir – apesar das graves insuficiências doutrinais – que seja celebrado “com reverência”.

§3 – O pensamento do cardeal Lustiger.

[Cardeal Lustiger]

Por mais surpreendente que possa parecer para alguns – para mim, em particular – o Cardeal Lustiger também criticou a Nova Missa. Ele escreveu isso em seus vários livros. O Padre Celier deu as referências e citações na sua Carta aos nossos irmãos sacerdotes de junho de 2012. Foi aqui que as encontrei. O Cardeal Lustiger juntou-se ao Cardeal Stickler. Ele falou com uma linguagem diferente, mas com o mesmo pensamento:

“Cedemos ao fascínio racional. Na reforma litúrgica, cedemos ao ímpeto da modernidade, eliminando demasiados simbolismos naturais, acreditando que eram pagãos, que não significavam nada e que devíamos dar lugar a uma nova linguagem ainda a inventar, especialmente para os jovens. Mas essa nova linguagem pode ser muito decepcionante quando ela não tem nenhuma dimensão histórica e escatológica. Tem havido muita tendência de pensar que reformar significa arrancar raízes e reinventar tudo do zero” (Jean-Marie Lustiger, Le Choix de Dieu, Éditions de Fallois, 1987, p. 333).

Não é um julgamento depreciativo da reforma litúrgica? E não concorda com o pensamento do cardeal Stickler, que também fala, como vimos, de “desmistificação” e “antropomorfização”?

“Não testemunhamos a primeira reforma litúrgica da história, longe disso, mas é a primeira tão radical no rito latino” (Jean-Marie Lustiger, Le Choix de Dieu, Éditions de Fallois, 1987, p. 337)

O cardeal Lustiger parece estar angustiado!

“Foram acadêmicos e professores que conceberam essa reforma. Ela foi precedida por um trabalho científico notável. A erudição histórica moderna sobre a liturgia começou no século XVIII. Aos poucos, uma crítica histórica e ‘genética’ das fontes se instalou. Entre os anos 1930 e o Concílio, os especialistas litúrgicos geralmente deram como modelo a liturgia basilical da Época de ouro, entre os séculos IV e V: este era o ideal que devia ser reconstituído! E fizemos a reconstituição. Foi inteligente, mas talvez uma evolução mais lenta, mais respeitosa com a permanência e continuidades, teria dado aos próprios fiéis a sensação de um trauma menos grave. Se tivéssemos medido melhor o significado dos ritos como uma memória histórica inscrita ao longo das gerações, provavelmente teríamos avançado mais lentamente na reforma litúrgica” (Jean-Marie Lustiger, Le Choix de Dieu, Éditions de Fallois, 1987, p. 337 -338).

“[A reforma da liturgia] foi contra o desejo da maioria dos fiéis. Em última análise, a maioria das pessoas queria o silêncio, a música, o rito ancorado na memória. É uma ideia muito arbitrária dizer que a “participação ativa” foi um dos objetivos do Concílio. Mas era preciso prosseguir esse objetivo à maneira da Revolução Cultural de Mao, com obrigações de participação? Ou era melhor administrar infinitamente mais devagar? Temos lidado com essa mutação de uma forma talvez voluntarista e arbitrária que produziu o efeito oposto e isso revela uma falta de sentido histórico, me parece. (…) Quis-se, para tornar os ritos novamente “eficientes”, lhes dar mais transparência. Muitas vezes, o rito foi substituído pela explicação, o símbolo pelo comentário” (Jean-Marie Lustiger, Le Choix de Dieu, Éditions de Fallois, 1987, p. 338).

Não é este um julgamento crítico da reforma? Não é um desafio às riquezas da reforma litúrgica?

É verdade que o Cardeal Lustiger, no entanto, praticou esta nova Missa… Então… Posso muito bem apreciar o mérito das críticas do Cardeal, embora lamentando a fraqueza de seu julgamento prático, seu aspecto contraditório, assim como o do Cardeal Stickler…

§4 – A reforma litúrgica: uma liturgia “fabricada”.

O cardeal Stickler falou, como vimos, da reforma litúrgica resultante do Concílio Vaticano II como tendo sido “uma revolução acompanhada de uma fabricação apressada de novos rituais”. Ele diz bem e com toda a verdade: “revolução litúrgica acompanhada de uma ‘fabricação apressada’ de novos rituais”.

O Cardeal Ratzinger dirá o mesmo, em 1992, no prefácio do livro de Mons. Gamber, publicado pelo Mosteiro de Barroux na Coleção Sainte Marie-Madeleine: A reforma litúrgica em questão. Duas vezes ele exprime esta ideia para condená-la da forma mais severa: A primeira vez, ele afirma categoricamente: “Não podemos fabricar um movimento litúrgico” (p. 7), e na segunda vez escreve: depois do Concílio Vaticano II, “em vez da liturgia, fruto de um desenvolvimento contínuo, colocamos uma liturgia fabricada. Saímos do processo vivo de crescimento e de transformação para entrar na fabricação. Não queríamos mais continuar o desenvolvimento e a maturação orgânica do ser vivo ao longo dos séculos, e os substituímos – na forma de produção técnica – pela fabricação de um produto banal do momento” (p. 8). Eis, ele conclui, uma “verdadeira falsificação”.

Quem critica a reforma litúrgica, o Novus Ordo Missae (NOM)?

Estes dois Cardeais falam, um de uma “fabricação apressada de novos ritos”, o outro de uma “liturgia fabricada”.

O que é exatamente essa “liturgia fabricada”?

Esta pergunta pode ser respondida com precisão hoje, desde a publicação das Memórias do padre Bouyer. Ele também nos revela que a reforma litúrgica é o resultado de “gambiarras apressadas”. Ele dá evidências históricas, principalmente para o Cânon II, mas também para o Cânon IV.

Sabemos que em 25 de janeiro de 1964, através do Motu Proprio Sacram liturgiam, Paulo VI fundou o Consilium, ou seja, o “Conselho para a implementação da Constituição conciliar sobre a liturgia”. Em 23 de maio de 1968, pouco mais de quatro anos depois, a Congregação dos Ritos promulgou três novas orações eucarísticas.

Nas suas Memórias, o Padre Bouyer fala, entre outras coisas, da composição da oração eucarística nº 2, a mais curta e (por isso) a mais utilizada.

Este é um testemunho muito confiável, ele é um de seus autores.

[Padre Bouyer]

As Memórias (inéditas) do Padre Bouyer

Neste livro de 148 páginas, formato A4, ele nos dará, entre outras coisas, sua impressão sobre o Concilium, no seio da Reforma Litúrgica e sobre a “criação” do Cânon 2.

Sua impressão sobre o Consilium

“Chamado especialmente para a subcomissão [do “Consilium para a reforma dos livros litúrgicos”, de que ele começou a falar] encarregada do Missal, fiquei petrificado, quando lá cheguei, quando descobri os projetos de uma subcomissão preparatória inspirada principalmente em Dom Cipriano Vagaggini, da abadia de Bruges, e no excelente prelado Wagner, de Trêves: acreditando por isso evitar a moda vinda da Holanda, eucaristias improvisadas, num total desconhecimento da tradição litúrgica que remonta às origens cristãs. Não consigo entender por qual aberração essas pessoas excelentes, historiadores muito bons e mentes geralmente razoáveis, puderam ter sugerido uma divisão e um reagrupamento, igualmente desconcertantes, do Cânon Romano e outros projetos que afirmam ser ‘inspirados’ por Hipólito de Roma, mas dificilmente menos excêntricos. De minha parte, estava pronto para desistir imediatamente e voltar para casa. Mas Dom Botte me convenceu a ficar, pelo menos para obter algum dano menor” (Memórias [inéditas], p. 130).

Dom Botte, lembremo-nos para entender o que se segue, foi o autor erudito de uma obra publicada em 1963 e modestamente intitulada: A Tradição Apostólica de São Hipólito, um ensaio sobre a reconstituição [ndt: hoje estudiosos contestam a atribuição do texto feita a S. Hipólito, por exemplo em: https://journals.openedition.org/rsr/2128].

A incrível elaboração da Oração Eucarística II.

Depois deste “aperitivo”, por assim dizer, eis o testemunho preciso e detalhado do Padre Bouyer sobre a elaboração da Oração Eucarística II, a partir de Hipólito. “Teremos uma ideia das condições deploráveis ​​em que se despachou esta reforma precipitada, quando eu disser como se amarrou a segunda Oração Eucarística. Entre fanáticos arqueologizando a torto e a direito, que teriam gostado de banir da Oração Eucarística o Sanctus e as intercessões, tomando como é a Eucaristia de Hipólito, e outros, que não se importavam o mínimo para a sua pretensa Tradição Apostólica, mas que queriam simplesmente uma missa desleixada, Dom Botte e eu fomos responsáveis ​​por corrigir o seu texto, de modo a introduzir esses elementos, certamente mais antigos, para o dia seguinte!”

“Felizmente encontrei em um escrito, senão do próprio Hipólito, certamente no seu estilo, uma bendita fórmula sobre o Espírito Santo que poderia fazer uma transição, do estilo Vere Sanctus, para a breve epiclese. Dom Botte, por sua vez, fabricou uma intercessão mais digna de Paul Reboux e de seu “à maneira de” do que de sua própria ciência. Mas não posso reler esta incrível composição sem me lembrar do terraço do bistrô Transtevere onde tivemos que acertar a nossa pensão, para podermos apresentar-nos na Porta de Bronze na altura fixada pelos nossos regentes!” (Memórias [inéditas] p. 130-131).

“O único elemento que não pode ser criticado neste novo Missal foi o enriquecimento trazido especialmente pela ressurreição de um bom número de magníficos prefácios retirados dos antigos sacramentários e a extensão das leituras bíblicas (embora, neste último ponto, também tenhamos ido rápido demais para produzir algo completamente satisfatório) [ndt: apesar de numerosas, em pontos importantes deixam lacunas, como a censura do texto de S. Paulo na Missa de Corpus Christi “Ano C”, cuja leitura original era I Cor 9,23-29 e foi transformada em I Cor 9,23-26 com graves consequências pastorais] (…).

“Depois de tudo isto, não deveríamos nos surpreender se, por suas inacreditáveis ​​fragilidades, o aborto que produzimos [nomeadamente o novo Missal] suscite risos ou indignação… a ponto de nos fazer esquecer uma série de elementos excelentes que carrega, no entanto, e que seria uma pena que a revisão que será imposta mais cedo ou mais tarde não salvasse, pelo menos, como pérolas perdidas…” (Memórias [inéditas], p. 131).

Como podemos ver, o Padre Bouyer fala, sobretudo, “das condições materiais e práticas para a elaboração da Oração Eucarística II”. Essa elaboração na verdade “aconteceu” em um clima incrível de leviandade, de improvisação, até de gambiarra, “fabricação” e, certamente, falta de amor pelo patrimônio da Igreja Católica. O pior é sem dúvida a pressa realmente indecente com que estes textos foram preparados: “no terraço do bistrô Transtevere onde tivemos que acertar a nossa pensão, para podermos apresentar-nos na Porta de Bronze na altura fixada pelos nossos regentes!” Também é claro que “apenas algumas semanas foram suficientes para derrubar a tradição mais sagrada. Ficamos verdadeiramente maravilhados e dolorosamente surpresos com tal ataque à liturgia” (Abbé Celier). Estamos testemunhando uma verdadeira “revolução litúrgica”, “uma verdadeira fabricação”. O Padre Bouyer é muito explícito: “O edifício completo da liturgia romana, lentamente desenvolvido ao longo de vinte séculos de tradição, sofreu uma reformulação completa e radical” em poucos meses.

É assim que se realizou esta reforma “através de livros emanados de especialistas para substituir a obra dos grandes contemplativos, os gênios espirituais que foram São Leão, São Gelásio, São Gregório Magno” (Abbé Celier).

Onde está a lenta e orgânica evolução da liturgia de que fala o Cardeal Ratzinger?

“Não se pode deixar de ficar perplexo, e até assustado, diante de tal imprudência em uma matéria tão grave e sagrada. E o termo ‘aborto’ aplicado pelo padre Bouyer no resultado dessa reforma insensata, se ele parece severo, não deixa de ser menos cruelmente justo e justificado” (Abbé Celier).

Por outro lado, é claro que essa reforma veio de “escritórios nacionais e internacionais compostos principalmente por eclesiásticos e especialistas”. Mas também é claro que uma boa liturgia não pode ser criada de uma só vez. As liturgias do passado foram geradas organicamente umas das outras. Como diz o cardeal Ratzinger em seu prefácio ao livro de mons. Gamber. Esta reforma litúrgica foi certamente dominada, como o Padre P. M. Gy aponta, por “uma preocupação provavelmente excessiva para racionalizar as estruturas litúrgicas”.

Assim, a reforma litúrgica foi talvez, dirão alguns, séria, competente, coerente, mas não escapou à frieza das liturgias que surgiram, não da própria oração, mas de comissões especializadas. Estas às vezes tinham mão pesada para arrancar sinais e tradições. Foi o Padre Laurentin quem escreveu isto (René Laurentin, Vaticano II: Acquis et deviations, Le Figaro, 23-24 de novembro de 1985, p. 10). Mons. Gamber falará da “frieza luterana”.

Conclusão: uma liturgia melhor do que a formada por vinte séculos?

Tomaremos emprestada a conclusão do Pe. Louis Bouyer: “Não havia esperança de produzir algo que valesse muito mais do que poderíamos produzir [a saber, a nova liturgia], quando pretendíamos refazer de cima a baixo, em poucos meses, toda uma liturgia que levou vinte séculos para se desenvolver aos poucos” (Louis Bouyer, Memórias [inéditas], p. 130).

Deve-se admitir, aliás, que “uma boa dose de ilusões e megalomania é necessária para acreditar-se humildemente capaz de forjar uma liturgia melhor do que aquela que vinte séculos de tradição cristã foram formando lentamente” (Guy Oury, Os limites necessários da criatividade na liturgia, Notitiæ 131-132, junho-julho de 1977, p. 352, artigo retirado de Esprit et Vie – L’Ami du clergé de 28 de abril de 1977).

Muito bem dito!

Mostramos assim que algumas autoridades da Igreja, não menos importantes, menosprezaram a reforma litúrgica resultante do Concílio Vaticano II. O Vaticano deve revisar sua cópia!

Segunda Parte: O Pensamento do Cardeal Ratzinger

Assim eu chego à segunda parte.

E, no entanto, apesar de tudo isso, Bento XVI em seu Motu Proprio Summorum Pontificum afirma que “essas duas expressões da “lex orandi” (a de João XXIII e a de Paulo VI) não induzem qualquer divisão da “lex credendi” da Igreja; estas são, de fato, duas implementações do único rito romano”. Devemos, portanto, reconhecer o “valor” e a “santidade” da Nova Missa.

[Papa Bento XVI]

Como justificar este juízo de Bento XVI sobre o qual queremos fundar a “paz litúrgica”?

Em primeiro lugar, deve-se notar que o próprio Bento XVI, enquanto ainda Prefeito da Congregação da Fé, criticou fortemente a reforma litúrgica resultante do Concílio Vaticano II.

Considerações históricas.

1988 – A Igreja “conciliar” permanece sob o choque das sagrações [ndt: de 4 bispos na Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) para continuar a obra de Dom Lefebvre]. Este choque parece fazer pensar os homens da Igreja.

a) As novas observações do Cardeal Ratzinger no Chile.

E, de fato, as críticas doutrinárias da Nova Missa, apresentadas ao Papa Paulo VI no Breve Exame Crítico, estão começando a ser levadas em consideração.

É assim que podemos dizer que as Sagrações e o Motu Proprio Ecclesia Dei adflicta de julho de 1988 que se seguiu, são ao mesmo tempo o ponto final de um período de aplicação obstinada da reforma litúrgica, e também o ponto de partida para uma nova reflexão litúrgica e uma nova prática eclesial em questões litúrgicas. É assim, quer você queira ou não. Deve ser levado em consideração.

A Igreja “conciliar”, de fato, se depara com um problema real: o problema da Missa e do novo e persistente amor das novas gerações por esta “velha” Missa. Pela primeira vez, a nostalgia não explica nada, nem as circunstâncias geográficas e históricas da França, o movimento sendo global. O cardeal Ratzinger o confessa publicamente no Chile perante os bispos em 13 de julho de 1988… alguns dias depois das Sagrações.

“Um fato deve nos fazer refletir: a saber, que um bom número de pessoas, fora do círculo restrito dos membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX) de Dom Lefebvre, o vêem como uma espécie de guia ou, pelo menos, um aliado útil. Não basta evocar motivos políticos, nostalgias ou outras razões culturais secundárias, essas razões não bastam para explicar o favor que se cumpre, mesmo e especialmente entre os jovens, em países tão diversos e colocados em condições políticas e em culturas completamente diferentes. Certamente, uma visão estreita e unilateral emerge com clareza. Mas, sem dúvida, não se poderia imaginar um fenômeno dessa magnitude se ele não colocasse em jogo elementos positivos que, em geral, não encontram espaço de vida suficiente na Igreja hoje”.

Seria, portanto, o caso da aplicação da reforma litúrgica e, em particular, da Missa, centro da vida litúrgica da Igreja. Estamos em 1988.

A linguagem é nova. O problema também. Este é o início de uma nova reflexão. E, de fato, vemos surgir da pena, na boca de certas autoridades romanas, as primeiras críticas, nunca vistas desde o discurso consistorial de 1976 que pretendia uma aplicação exclusiva da Nova Missa, a autoridade pontifícia engajando sua autoridade suprema neste assunto.

b) No prefácio do livro de Mons. Gamber (1992).

[Cardeal Ratzinger (à esquerda) e Mons. Gamber (à direita)]

Em 1992, Dom Gérard publicou um livro de Mons. Gamber, prelado, teólogo alemão, especialista em liturgia, que intitulou: A reforma litúrgica em questão.

Este livro é muito interessante. Contém críticas muito relevantes da Nova Missa, talvez nunca lidas, mesmo da pena de um Abade Dulac, de um Dom Lefebvre.

Mons. Gamber escreveria, por exemplo, que “a reforma litúrgica… revela-se ser… uma desolação litúrgica de proporções apavorantes” (p. 15); consistiu em “uma destruição das formas da Missa que haviam se desenvolvido organicamente ao longo dos séculos” (p. 15) em “uma reaproximação assustadora com as concepções do protestantismo… O que significa nada menos do que o abandono de uma tradição comum ao Oriente e ao Ocidente até os dias de hoje” (p. 15).

É compreensível que ele pudesse dizer: “Nenhum católico teria pensado, vinte anos atrás, que tais mudanças poderiam um dia ocorrer na Igreja Romana, que parecia solidamente construída sobre a rocha de Pedro, e que se poderia chegar a uma tamanha confusão de espírito” (p. 17).

Bem, apesar dessas críticas, esses são apenas alguns exemplos, o Cardeal Ratzinger não tem medo de prefaciar o livro e recomendar sua leitura, de elogiar o autor.

Então, quem deprecia?

O próprio Cardeal, no prefácio, critica esta reforma litúrgica por seu caráter “artificial” e “fabricado”…

Vimos as expressões muito fortes acima.

Ele continua seu discurso em homenagem a mons. Gamber:

“Gamber, com a vigilância de um verdadeiro vidente e com a intrepidez de uma verdadeira testemunha, se opôs a esta falsificação… É o que ele expressa neste livro… Ele nos ensinou incansavelmente a plenitude viva de uma liturgia verdadeira graças ao seu conhecimento incrivelmente rico das fontes” (p. 8).

“A morte deste homem e sacerdote eminente deve estimular-nos; seu trabalho poderia nos ajudar a ganhar um novo impulso” (p. 8).

“Nesta hora de angústia, ele pode se tornar o pai de um novo começo” (p. 7).

Mas, repare bem, este elogio é dirigido a um teólogo que não teve medo de dizer que esta reforma litúrgica colocou “em segundo plano o elemento do culto” (p. 13) que, no entanto, é primário e vai ainda mais longe ao falar de uma “ruptura com a tradição”: “A ruptura com a tradição é doravante consumada” (p. 14).

Pode-se notar neste livro mil julgamentos da mesma severidade. E apesar de tudo, o Cardeal se atreveu a prefaciá-lo. Ele compartilha o julgamento!

Quem menospreza a nova liturgia? Estamos em 1992.

Se o fazemos, admita que estamos em boa companhia!

c) Na publicação do livro O sal da terra (1994)

Mas isso não é tudo. O Cardeal publicou, em 1994, um livro de reflexões pessoais. É um livro de entrevistas intitulado O sal da Terra publicado pela Flammarion/Cerf, com Peter Seewald.

Este último lhe pergunta a questão do renascimento do antigo rito: “É possível, para lutar contra essa mania de nivelar tudo e esse desencanto, restabelecer o antigo rito?”

O Cardeal respondeu:

“Eu certamente sou da opinião de que todos os que desejarem deveriam receber muito mais generosamente o direito de conservar o antigo rito. Aliás, não vemos o que seria perigoso ou inaceitável. Uma comunidade que de repente declara estritamente proibido o que era até então para ela tudo o que há de mais sagrado e superior, e a quem se apresenta como inconveniente a lembrança que ela tem por ele, ela própria se coloca em contradição. Como ainda poderíamos acreditar nela? Ela não vai proibir amanhã o que ela prescreve hoje? Infelizmente, a tolerância de fantasias aventureiras é quase ilimitada para conosco, mas é praticamente inexistente em relação à antiga liturgia. Certamente estamos no caminho errado” (p. 172-173).

Estas são as palavras do Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Estas são as palavras de um homem de governo e de um homem “livre”. Mesmo assim, ele não pronunciou essas palavras sob a ameaça de medo. Ele pesou as consequências de suas palavras.

[Papa Paulo VI]

Era novo. Roma se distanciava cada vez mais do Consistório de 1976 do Papa Paulo VI – e ainda assim fumegavam suas cinzas…, da “lei do indulto de 1984”, não só por causa da pressão tradicionalista, mas também e sobretudo – é mais certo – por causa dos óbvios erros da liturgia reformada e sua prática nas paróquias: “uma desolação de proporções espantosas”, escreveu monsenhor Gamber, um eminente homem da ciência litúrgica, diretor do Instituto Litúrgico de Regensburg, até sua morte em 2 de junho de 1989.

Roma estava aberta a esta realidade – pelo menos alguns. O cardeal pronunciou palavras de bom senso. Ele argumentou que seria muito razoável restaurar “o direito, pelo menos àqueles que o desejarem, de manter o rito antigo”.

O cardeal Ratzinger não teve medo de repetir tais afirmações.

d) Seu livro, intitulado em francês, Ma vie, Souvenirs (ed. Fayard, outubro de 1998).

Particularmente em seu novo livro, um livro de memórias intitulado em francês: Ma vie, Souvenirs [Minha vida, Recordações]

Desta vez, estávamos em 1997-1998.

Nas páginas 132-133, o Cardeal aproveita a oportunidade para expor suas reflexões sobre o doloroso caso da reforma litúrgica:

“O segundo grande acontecimento no início dos meus anos em Regensburg foi a publicação do Missal de Paulo VI, acompanhada da proibição quase total do missal tradicional, após uma fase de transição de apenas seis meses”.

O problema litúrgico está bem colocado.

“Ele estava feliz por ter um texto litúrgico normativo após um período de experimentação que muitas vezes desfigurou profundamente a liturgia”.

É justo. Tantas experiências anteriores à lei! Tantas improvisações fantasiosas! O testemunho do cardeal Gut certa vez confirmou isso dramaticamente.

O Cardeal Ratzinger continua:

“Mas fiquei consternado com a proibição do antigo missal, porque nunca tinha sido visto em toda a história da liturgia. Claro, fez-se acreditar que tudo era perfeitamente normal. O missal anterior teria sido elaborado por Pio V em 1570 após o Concílio de Trento. Portanto, era apropriado que, depois de quatrocentos anos e um novo concílio, um novo papa apresentasse um novo missal. Mas a verdade histórica é bem diferente: Pio V se contentou em revisar o missal romano em uso na época, como normalmente é feito em uma história que evolui. Assim, muitos foram seus sucessores para revisar este missal, sem opor um missal a outro”.

[Ilustração representando o Papa Pio V]

É muito justo. São Pio V apenas “revisou” e “removeu as escórias” que inevitavelmente se acrescentam com o tempo. Portanto, não era outro missal, diferente, mas o mesmo purificado dos acréscimos do tempo. O Cardeal escreve, com efeito:

“Foi um processo contínuo de crescimento e purificação ininterruptos. Pio V nunca criou um missal. Ele só o revisou, fase de uma longa evolução. A novidade após o Concílio de Trento foi de outra ordem: a irrupção da Reforma foi realizada essencialmente na forma de ‘reformas religiosas’. Não havia apenas uma Igreja Católica e uma Igreja Protestante lado a lado; a segmentação da Igreja ocorreu quase imperceptivelmente, e do modo mais visível e historicamente mais eficiente, através da transformação da liturgia, que assumiu formas muito diferentes em diferentes lugares; de modo que muitas vezes não distinguíamos a fronteira entre o que era ‘ainda católico’ e o que ‘não era mais católico’”.

“Nessa confusão, possibilitada pela falta de uma legislação litúrgica uniforme e pela existência de um pluralismo litúrgico datado da Idade Média, o Papa decidiu apresentar o Missale Romanum, o livro da missa da cidade de Roma, como inequivocamente católico, em todos os lugares onde não poderia se referir a liturgias que datam de pelo menos duzentos anos. Caso contrário, poderíamos nos ater à liturgia em vigor, pois seu caráter católico poderia então ser considerado assegurado. Portanto, estava fora de questão proibir um missal tradicional que era legalmente válido até então. O decreto que proíbe este missal, que não cessou de evoluir ao longo dos séculos desde os sacramentários da Igreja de todos os tempos, rompeu a história litúrgica, cujas consequências só poderiam ser trágicas. Uma revisão do missal, como sempre havia ocorrido, poderia ser radical desta vez, especialmente por causa da introdução de línguas nacionais; e ela tinha sido estabelecida sabiamente pelo Concílio.

“No entanto, as coisas foram mais longe do que o esperado; o antigo edifício foi demolido para a construção de outro, certamente aproveitando muito dos materiais e planos da antiga construção. Não há dúvida de que este novo missal trouxe uma melhora real e um enriquecimento real em muitos pontos; mas ter-se oposto como uma nova construção para a história tal como ela havia se desenvolvido, ter proibido esta última, fazendo assim a liturgia passar não mais como um organismo vivo, mas como o produto do trabalho de estudiosos e de habilidades jurídicas: é isso que estava a causar-nos um enorme prejuízo. Pois tínhamos então a impressão de que a liturgia foi ‘fabricada’, sem nada pré-estabelecido, e dependia da nossa decisão. Portanto, é lógico que não se reconheça os especialistas ou um órgão central como os únicos com poderes para decidir, mas que cada ‘comunidade’ acabe por se dar a sua própria liturgia. Ora, quando a liturgia é obra nossa, já não nos oferece o que deveria precisamente nos dar: o encontro com o mistério, que não é a nossa ‘obra’, mas a nossa origem e a fonte da nossa vida. Uma renovação da consciência litúrgica, uma reconciliação litúrgica que reconheceria a unidade da história litúrgica e veria no Vaticano II não uma ruptura, mas uma etapa, é uma necessidade urgente para a Igreja”.

“Estou convencido de que a crise da Igreja que vivemos hoje repousa em grande parte na desintegração da liturgia, que às vezes é concebida de tal maneira – etsi Deus non daretur [ndt: Como se Deus não existisse]– que seu propósito não é mais significar que Deus existe, que Ele fala conosco e nos escuta. Mas se a liturgia não deixa mais aparecer uma comunidade de fé, a unidade universal da Igreja e de sua história, o mistério do Cristo vivo, onde a Igreja ainda manifestaria sua natureza espiritual? Portanto, a comunidade apenas se celebra a si própria. E não vale a pena. E porque não há comunidade em si, mas que brota sempre e somente do próprio Senhor, pela fé, como uma unidade, a desintegração em todos os tipos de brigas de comunidades, as oposições partidárias em uma Igreja que está se despedaçando, assim, tornam-se inevitáveis. É por isso que precisamos de um novo movimento litúrgico que faça nascer a verdadeira herança do Concílio Vaticano II”.

É por isso que a reforma litúrgica resultante do Concílio Vaticano II não foi um sucesso, longe disso. Há uma perfeita comunhão de pensamentos entre o cardeal Stickler, o cardeal Ratzinger e mons. Gamber: que descrédito os três não lançam à reforma litúrgica!

Mons. Gamber e o Cardeal Ratzinger

A reforma litúrgica resultante do Concílio Vaticano II não é um sucesso”, acabamos de dizer. Longe disso.

Mons. Gamber já o dizia em 1974: “O novo rito deve ser melhorado em relação àquele que se pratica hoje em dia” (A reforma litúrgica em questão, p. 96).

Ora, o Cardeal via neste sacerdote um verdadeiro liturgista, um verdadeiro historiador da liturgia que poderia ser o “pai” de um novo ímpeto litúrgico que deve necessariamente ser realizado dentro da Igreja, o “pai” de “um novo começo” litúrgico (p. 7): “Este novo começo precisa de “pais” que sejam modelos… Quem hoje procura tais “pais” encontrará inevitavelmente a pessoa de mons. Gamber, que infelizmente foi-nos levado cedo demais”.

Dificilmente podemos ser mais elogiosos. A estima que ele tinha por este prelado alemão, especialista em liturgia, dificilmente poderia ser maior!

Portanto, é interessante conhecer o pensamento de Mons. Gamber para medir sua influência no pensamento do Cardeal Ratzinger.

Mons. Klaus Gamber primeiro afirma que as duas formas – o antigo e o novo rito – deveriam permanecer pacificamente lado a lado.

Mons. Klaus Gamber expressa essa ideia no capítulo 7 do livro A reforma litúrgica em questão (Ed. Sainte Madeleine): “O ritus romanus e o ritus modernus devem ser considerados legítimos”.

Ele retoma essa ideia no final do livro, no capítulo intitulado: “Como conclusão”. Ele se expressa de maneira particularmente forte: “Só podemos rezar e esperar que a Igreja Romana volte à tradição e autorize novamente em todos os lugares a liturgia da Missa antiga, que já tem mais de mil anos. Por que duas formas, o antigo e o novo rito, não podiam existir pacificamente lado a lado? Como no Oriente onde existem vários ritos ou liturgias; e até no Ocidente, ainda hoje, onde existem ritos especiais como em Milão. Sem falar no fato de que atualmente quase todo pároco modela a missa como lhe agrada. Mas de toda maneira, o novo rito deve ser melhorado em relação àquele que se pratica hoje em dia… O rito mais que milenar da Missa deve ser preservado no futuro na Igreja Católica Romana, não apenas para padres idosos e leigos, incapazes de se adaptar, mas como forma primária de celebração da missa. Deve voltar a ser a norma da fé e o sinal da unidade dos católicos de todo o mundo, um polo fixo por um tempo confuso e em perpétua mudança” (p. 95-96).

Isso é o que nosso autor escreveu em 1974, 1978.

No entanto, esta foi a época em que uma verdadeira “tirania” reinou na Igreja contra os padres e leigos que desejavam permanecer fiéis à Missa “Tridentina”.

[Foto do Consistório de 24/5/1976]

Foi preciso uma força de alma particular, fundada na verdade, para pedir que a Missa Tridentina ainda pudesse ser celebrada na Igreja, e para dizer que ela não foi de forma alguma revogada nas formas canônicas, e que não foi, não poderia ser por causa de seu aspecto imemorial.

De fato, o Papa Paulo VI, em 24 de maio de 1976, havia comprometido toda a sua “autoridade papal” para que somente a Nova Missa pudesse ser celebrada, na Igreja e em todas as comunidades. Ele disse aos membros do Consistório em 24 de maio de 1976: “… Diversas vezes, diretamente ou por intermédio de nossos colaboradores e outras pessoas amigas, chamamos a atenção do Dom Lefebvre para a gravidade de suas atitudes, a inconsistência e muitas vezes a falsidade das posições doutrinárias em que funda essas atitudes e iniciativas, e os danos daí resultantes para toda a Igreja. É, portanto, com profunda amargura, mas também com esperança paternal, que nos dirigimos mais uma vez a este confrade, aos seus colaboradores e a quantos se deixaram levar por eles. Oh, é claro, acreditamos que muitos desses fiéis, pelo menos inicialmente, eram de boa fé: também entendemos seu apego sentimental às formas de culto e de disciplina às quais estavam acostumados, o que por muito tempo tinha sido para eles um apoio espiritual e no qual eles encontraram alimento espiritual. Mas temos a firme esperança de que eles serão capazes de refletir com serenidade, sem preconceitos, e que estarão dispostos a admitir que podem encontrar hoje o apoio e o alimento a que aspiram nas formas renovadas que o Concílio Vaticano II e Nós próprios declaramos como necessárias para o bem da Igreja, para o seu progresso no mundo contemporâneo, para a sua unidade. Por isso apelamos, mais uma vez, a todos estes irmãos e filhos, rogamos-lhes que percebam as feridas profundas que, de outra forma, causam à Igreja. Mais uma vez, os convidamos a pensar nas graves advertências de Cristo sobre a unidade da Igreja (cf. Jo 17, 21 ss) e sobre a obediência ao pastor legítimo que Ele colocou à frente do rebanho universal, como sinal da obediência devida ao Pai e ao Filho (cf. Lc 10,16). Esperamos por eles com o coração bem aberto, os braços prontos para abraçá-los: que encontrem, na humildade e na edificação, para alegria do povo de Deus, o caminho da unidade e do amor!”.

Apesar disso, Mons. Gamber afirma que “no futuro, o rito mais que milenar da Missa deve ser preservado na Igreja Católica Romana… como o rito primário da celebração da Missa”.

“Rito milenar na Igreja Católica… Rito primário da celebração da Missa” …

Essas ideias são encontradas não apenas no livro do cardeal Ratzinger O sal da terra, um livro de entrevistas sobre a liturgia com Peter Seewald, publicado pela Flammarion em 1997 – como vimos acima – mas também em um dos últimos livros do Cardeal Voici quel est notre Dieu. Na página 291 ele escreve: “Para a formação da consciência no campo da liturgia, é importante também deixar de proibir a forma da liturgia em vigor até 1970. Aquele que, na atualidade, intervém pela validade desta liturgia, ou quem a pratica, é tratado como um leproso; este é o fim de toda tolerância. Tamanha intolerância que não a conhecemos ao longo de toda a história da Igreja. Nisto desprezamos todo o passado da Igreja… Admito também que não entendo por que muitos dos meus confrades bispos se submetem a esta lei da intolerância, que se opõe às reconciliações necessárias na Igreja, sem razão válida” (p. 291).

Portanto, não devemos nos surpreender que o Cardeal Ratzinger, dois anos depois de sua eleição para a Sé de Pedro, naturalmente retome essa ideia da legítima celebração da antiga Missa na Igreja. Este é o objetivo do seu Motu Proprio.

Estes são os primeiros cinco artigos do Motu Proprio. Em primeiro lugar, ele afirma a livre celebração dos dois ritos, um a que chama rito “extraordinário”, de João XXIII, o outro que denomina rito “ordinário”, de Paulo VI (Mons. Gamber falava, como já dissemos, do ritus romanus para a missa de João XXIII e do ritus modernus para a missa de Paulo VI); Eu teria preferido encontrar no Motu proprio essas expressões de Mons. Gamber.

Artigo 1 § 2: “É, portanto, permitido celebrar o Sacrifício da Missa de acordo com a edição típica do Missal Romano promulgado pelo B. João XXIII em 1962 e nunca revogado, como forma extraordinária da liturgia da Igreja.”

É um direito puramente e simplesmente afirmado. Esta não é uma “concessão”. É um direito. Já não é mais necessário recorrer primeiramente a qualquer autoridade, quer da Santa Sé quer do Ordinário, como o exigia os últimos documentos nesta matéria: Quattuor abhinc annos ou Ecclesia Dei adflicta. Como tal, esses textos são pura e simplesmente abolidos. O artigo 1 § 2 afirma: “É, portanto, permitido celebrar o Sacrifício da Missa de acordo com a edição típica do Missal Romano promulgado pelo B. João XXIII em 1962 e nunca revogado, como forma extraordinária da Liturgia da Igreja. Mas as condições estabelecidas pelos documentos anteriores, Quattuor abhinc annos e Ecclesia Dei para a utilização deste Missal, são abolidas”.

Repete-se claramente no artigo 2: “Para celebrar assim segundo um ou outro missal, o sacerdote não precisa de autorização, nem da Sé Apostólica nem do seu Ordinário”.

Este direito aplica-se a todos os sacerdotes diocesanos, a todos os sacerdotes religiosos, a todos os Institutos de vida consagrada e das Sociedades de vida apostólica de direito pontifício. Trata-se do artigo 3: “Se as comunidades de Institutos de vida consagrada e de Sociedades de vida apostólica de direito pontifício ou diocesano desejam, para a celebração conventual ou ‘comunitária’, celebrar em seus próprios oratórios a Missa segundo a edição do Romano Missal promulgado em 1962, isto lhes é permitido. Se uma determinada comunidade ou todo o Instituto ou Sociedade deseja realizar tais celebrações com frequência, ou habitualmente, ou permanentemente, esta forma de fazer deve ser determinada pelos Superiores maiores de acordo com as normas do direito e as leis e estatutos particulares”.

O artigo 5º especificará este direito e seu exercício para as paróquias. Aqui está sua formulação:

Arte. 5 § 1: “Nas paróquias onde existe um grupo estável de fiéis vinculados à tradição litúrgica anterior, o pároco aceitará de bom grado o pedido de celebrar a Missa segundo o rito do Missal Romano publicado em 1962. Ele mesmo apreciará o que convém ao bem destes fiéis, em sintonia com a solicitude pastoral da paróquia, sob o governo do Bispo segundo as normas do Cânon 392, evitando a discórdia e favorecendo a unidade de toda a Igreja”.

Arte. 5 §2: “A celebração segundo o Missal do beato João XXIII pode realizar-se em dias ordinários, mas aos domingos e feriados também pode ser celebrada uma missa nesta forma”.

Arte. 5 § 3: “O pároco pode também autorizar aos fiéis ou ao sacerdote que o solicite, a celebração desta forma extraordinária em casos especiais como casamentos, funerais ou celebrações ocasionais, por exemplo, peregrinações”.

Arte. 5 § 4: “Os sacerdotes que usam o Missal do Bem-aventurado João XXIII devem ser idôneos e não impedidos por lei”.

Arte. 5 § 5: “Nas igrejas que não são paroquiais nem conventuais, compete ao Reitor da igreja autorizar o que foi indicado acima”.

Mons. Gamber, no capítulo 7 do livro A Reforma litúrgica em questão, insiste em outra ideia que será retomada pelo Papa Bento XVI no Motu Proprio. Ele afirma que as duas formas do rito, que ele chama de ritus romanus e ritus modernus, devem ser claramente distinguidas uma da outra. “Devem ser claramente distinguidos um do outro como dois ritos independentes, e isso de tal forma que o missal romano usado até agora, assim como os outros livros litúrgicos (ritual e pontifical), sejam novamente impressos e autorizados em sua forma pré-conciliar. As mudanças do rito do pós-Concilio só devem ser válidas para o rito moderno. Estas incluem, entre outras coisas, a mudança nas palavras da consagração que escandalizou muitos sacerdotes, as novas orações eucarísticas, bem como a nova distribuição de leituras que, em todo o caso, dadas as suas insuficiências, deverá ser substituída por uma outra, melhor” (p. 75).

Esta é uma das afirmações mais importantes: a distinção entre os dois ritos, o rito Romanus e o rito Modernus, são distintos. Um não é o outro. O prelado aproveitou para acrescentar duas críticas. As “modificações do rito pós-conciliar” não devem ser introduzidas no rito romano: a modificação da forma da consagração do vinho, a expressão mysterium fidei, os três novos Cânones e, finalmente, “a nova distribuição das leituras”, esta última é “insuficiente” e “deve ser substituída por outra melhor”. Eis o que ele diz: “As mudanças do rito do pós-Concilio só devem ser válidas para o rito moderno. Estas incluem, entre outras coisas, a mudança nas palavras da consagração que escandalizou muitos sacerdotes, as novas orações eucarísticas, bem como a nova distribuição de leituras que, em todo o caso, dadas as suas insuficiências, deverá ser substituída por uma outra, melhor”.

Essas duas críticas são muito importantes. Elas emanam daquele que Bento XVI nos apresenta como “o pai” de um novo começo em matéria litúrgica.

Mas por que então afirmar em alto e bom som esta distinção entre os dois ritos, o rito “antigo” – o rito do “sempre”, como Dom Lefebvre gostava de dizer – e o rito de Paulo VI, o “rito moderno”. A resposta a esta pergunta é a mais importante:

A “continuidade das formas da Missa” é a razão primeira e fundamental para isso. Ele escreve: “Não faz sentido submeter o ritus Romanus tradicional, como infelizmente se tem feito até agora, aos experimentos atuais (e deve-se considerar que a maioria das inovações o são). Do contrário, perderíamos um elemento importante, esta continuidade das formas da Missa de que falamos várias vezes nas apresentações anteriores. Considerando que se deixarmos o antigo rito inalterado e se continuarmos a usá-lo ao lado do novo – mas como algo vivo e não como uma peça de museu! – teremos guardado para toda a Igreja, como se manifesta nos diversos povos, um elemento importante para o futuro: a unidade do culto” (p. 76).

Ele invoca uma segunda razão: a manutenção dos dois ritos evitaria o risco de um cisma. “Muitos problemas poderiam ser resolvidos, diz ainda Mons. Gamber, na Igreja pela separação estrita entre o rito romano e a nova liturgia em língua vulgar do ritus modernus e pela possibilidade assim oferecida aos fiéis de usar as duas formas de missa. Mas, acima de tudo, reduziria o risco de um grande cisma, as legítimas reivindicações de inúmeros católicos – quase a metade dos que ainda praticam – em favor da celebração tradicional da liturgia sendo satisfeitas, sem negligenciar o desejo dos outros de ter uma missa ‘atual’” (p. 77).

Essa ideia é amplamente desenvolvida na carta explicativa do Papa Bento XVI aos bispos. Ele até o apresenta como “o motivo positivo” de sua decisão. Escreve-lhes: “Chego ao motivo positivo que me faz atualizar com este Motu Proprio o de 1988. Trata-se de conseguir a reconciliação interna na Igreja. Olhando para o passado, as divisões que dilaceraram o corpo de Cristo ao longo dos séculos, fica-se continuamente com a impressão de que nos momentos críticos quando a divisão estava começando a surgir, os líderes da Igreja não fizeram o suficiente para manter ou conquistar a reconciliação e a unidade; tem-se a impressão de que as omissões na Igreja tiveram sua cota de culpabilidade no fato de que essas divisões conseguiram se consolidar. Este olhar para o passado impõe-nos hoje uma obrigação: fazer todos os esforços para que todos aqueles que realmente desejam a unidade tenham a possibilidade de permanecer nesta unidade ou de reencontrá-la novamente”.

Mons. Gamber expõe uma terceira ideia que também será amplamente adotada e desenvolvida por Bento XVI: a diversidade do culto não prejudica a unidade da Igreja. Pelo contrário!

“Pode-se objetar que a solução aqui proposta de dois ritos usados ​​em paralelo pode perturbar a unidade eclesial nas paróquias. Responderemos a isso, que em toda a Igreja e especialmente no Oriente, sempre houve vários ritos reconhecidos por Roma. Portanto, não poderia ser realmente sério se, também na Igreja Romana, duas formas de missa coexistissem lado a lado – pelo menos por um tempo. Mas se houvesse atualmente apenas dois! No momento existem, como sabemos, inúmeros ritos, vários padres ‘fabricando’ a missa inteiramente como desejam. Portanto, na realidade, não pode haver uma questão de uma unidade de rito” (p. 78).

O Cardeal Ratzinger fez eco a esta ideia em todos os sentidos na conferência que dirigiu em 1998 aos membros das comunidades Ecclesia Dei que vieram a Roma para celebrar o décimo aniversário do Motu Proprio com o mesmo nome. Ele lhes disse: “Ainda temos que examinar o outro argumento, que afirma que a existência de dois ritos pode quebrar a unidade. Aí, uma distinção deve ser feita entre o lado teológico e o lado prático da questão. Do lado teórico e fundamental, deve-se notar que várias formas de rito latino sempre existiram, e que se retiraram lentamente após a unificação do espaço de vida na Europa. Até o Concílio, ao lado do rito romano, existia o rito ambrosiano, o rito moçárabe de Toledo, o rito Braga, os ritos cartuxo e carmelita e, o mais famoso, o rito dominicano – e talvez de outros ritos ainda que eu não conheço. Nunca ninguém se escandalizou que os dominicanos, muitas vezes presentes nas nossas paróquias, não celebrassem como os párocos, mas tivessem o seu próprio rito. Não tínhamos dúvidas de que seu rito era tanto católico quanto romano, e nos orgulhamos dessa riqueza de ter várias tradições diversas”.

Bento XVI retoma o argumento em sua carta aos bispos, dando outra razão. Ele lhes disse:

“Em segundo lugar, durante as discussões sobre este esperado Motu Proprio, exprimiu-se o receio de que uma possibilidade mais ampla de utilização do Missal de 1962 pudesse levar a distúrbios e até mesmo a fraturas nas comunidades paroquiais. Este medo também não me parece fundado. O uso do antigo Missal pressupõe um mínimo de formação litúrgica e acesso à língua latina; nem um nem outro é tão comum. Destes elementos preliminares concretos decorre claramente o fato de que o novo missal permanecerá certamente a forma ordinária do rito romano, não só por causa das leis jurídicas, mas também por causa da situação real em que se encontram as comunidades de fiéis”.

Este pequeno estudo mostra realmente o parentesco de pensamento entre Mons. Klaus Gamber e Bento XVI em matéria litúrgica, sobre a coexistência pacífica dos dois ritos. Ele segue aquele que nos propõe como “mestre” na liturgia e que já havia expressado todas essas ideias desde 1974-1978. Nós os encontramos em 2007 no Motu Proprio Summorum Pontificum.

No entanto, Bento XVI vai se afastar dele em seu Motu Proprio, e é aí – suponho – que ele deve ter sofrido “pressão”.

Ele não poderia restaurar a Missa Tridentina sem, ao mesmo tempo, afirmar “o valor e a santidade da Nova Missa”. O que ele estava longe de dizer na época em que prefaciou, em 1992, o livro de Mons. Gamber. As oposições devem ter sido muito fortes, muito fortes. Esta é minha tese. E essas oposições que ele teve que suportar, aí e em outros lugares, neste campo e em outros campos, o desgastaram em sua saúde. É por isso que ele teve que se retirar…

Oposições no Vaticano nesta questão litúrgica! Sim. Nesta questão litúrgica, a unidade na Igreja atual, no Vaticano como no corpo episcopal, está longe de existir. E se não há unidade, há confrontos possíveis…

Em 1998

Vi isso quando acompanhei as comunidades Ecclesia Dei em Roma, de 24 a 26 de outubro de 1998, no décimo aniversário da publicação deste Motu Proprio.

Em 24 de outubro de 1998, o Cardeal Ratzinger recebeu as comunidades e fez um discurso notável, insistindo na necessidade de restaurar a Missa Tridentina na Igreja, este rito não podendo ser abolido por ser um costume imemorial. A retirada prática de sua celebração na Igreja foi, para se expressar como Dom Guéranger, uma verdadeira “heresia litúrgica”. Proibir um rito ortodoxo, isso nunca se viu na Igreja; ele diz: “Vale a pena relembrar aqui o que o Cardeal Newman observou quando disse que a Igreja, em toda a sua história, nunca aboliu ou proibiu as formas litúrgicas ortodoxas, o que seria completamente estranho ao espírito da Igreja. Uma liturgia ortodoxa, isto é, aquela que expressa a verdadeira fé, nunca é uma compilação pragmática de várias cerimônias das quais se poderia dispor de maneira positiva e arbitrária – hoje assim e amanhã de outra forma. As formas ortodoxas de um rito são realidades vivas, nascidas do diálogo de amor entre a Igreja e o seu Senhor – são expressões da vida da Igreja na qual se sintetizaram a fé, a oração e até mesmo a vida de gerações passadas e onde se encarnaram de forma concreta ao mesmo tempo que a ação de Deus e a resposta do homem. Esses ritos podem morrer, se o motivo que os trouxe desaparece ao longo da história, ou se esse motivo se inseriu em um outro quadro de vida. A autoridade da Igreja pode definir e limitar o uso de ritos em diversas situações históricas – mas jamais ela os proíbe pura e simplesmente”.

[Foto do Vaticano]

A ideia é claramente expressa e justificada.

Em 26 de outubro de 1998, essas comunidades foram recebidas pelo Soberano Pontífice, João Paulo II, sobre os degraus da praça São Pedro. Ele lhes dirigia um discurso onde se encontrava o pensamento de Dom Ré, substituto na época da 1ª seção da Secretaria de Estado, esta que expunha a Eric de Saventhem, presidente honorário da Una Voce: As diversas posições tomadas desde 1984 (em matéria litúrgica) tinham por objetivo facilitar a vida eclesial de um certo número de fiéis sem perpetuar as formas litúrgicas anteriores. A lei  geral continua o uso do rito renovado pelo Concílio enquanto que o uso do rito antigo brota atualmente de privilégios que devem guardar o caráter da exceção”.

O cardeal Ratzinger, em sua conferência, explica por que o rito Tridentino deveria permanecer na Igreja. Esta é uma questão de fé. Dom Ré exprime um pensamento diferente: este rito ancestral só pode ser mantido na Igreja a titulo de exceção e apenas por um tempo: o tempo necessário para pacificar as oposições ilegítimas.

[Cardeal Lehmann]

Essas oposições na hierarquia estão presentes, ainda hoje. O cardeal Lehmann, arcebispo de Colônia, junto ao Congresso Eucarístico Nacional alemão, que se realizou em maio de 2013, declarou na revista KölnerStadt-Anzeigerson sua avaliação face ao crescimento do número de missas tradicionais: segundo ele, essa mania só pode ser explicada por razões elitistas e estéticas. (Paix Liturgique Junho de 2013). E por que não por razões teológicas?

[Dom Pierre Raffin]

Na França, é Dom Pierre Raffin, bispo de Metz ainda por alguns dias, que “botou a boca no trombone”. Durante o colóquio organizado em Paris para os 70 anos do Serviço Nacional de Pastoral Litúrgica e Sacramental (SNPLS), originalmente CPL (Centro de Pastoral Litúrgica) pediu “que na ocasião dos 50 anos da Sacrosanctum Concilium [a constituição do Vaticano II sobre a liturgia], o Papa Francisco manifeste claramente sua fidelidade à reforma litúrgica do Vaticano II”. Segundo ele, o Motu Proprio Summorum Pontificum a “fragilizou”. E acrescenta: “eu gostaria que o papa Francisco tirasse toda suspeita a respeito do patrimônio litúrgico do Vaticano II”, porque ainda segundo ele “é difícil de sustentar o argumento segundo o qual o Missal de 1570 nunca teria sido juridicamente revogado enquanto lemos pacificamente a constituição apostólica Missale Romanum de Paulo VI” (La Croix, 29 de maio de 2013) (citado por Paix Liturgique, junho de 2013).

As divisões de ontem e de hoje em matéria litúrgica são, portanto, grandes.

Eles podem explicar, a meu ver, a redação do artigo 1º § 1º do Motu Proprio Summorum Pontificum: “Essas duas expressões da ‘lex orandi’ da Igreja não induzem nenhuma divisão da ‘lex credendi’ da Igreja; estas são, de fato, duas implementações do único rito romano”, ou mesmo as expressões encontradas na carta que acompanha os bispos: “Não há contradição entre uma e outra edição do Missale Romanum”.

Pressões podem ter desempenhado um papel…

Na verdade, Mons. Gamber, que teve uma grande influência no pensamento do Cardeal Ratzinger, é muito severo com a reforma litúrgica. Para ele, a reforma litúrgica contribuiu muito pouco para manter, e até causou a crise da fé, a crise das vocações, a crise sacerdotal na Igreja (ver p. 44).

Que depreciação!

Ele critica os ritos de abertura da Missa por causa das muitas variações possíveis: “Os ritos de abertura dotados de… muitas ‘prescrições de possíveis escolhas’ abrem uma porta ampla para a arbitrariedade do sacerdote celebrante. Que falatório os fiéis não devem suportar em alguns lugares, desde o início da Missa! Como mais de uma vez acontece atualmente em comunidades protestantes” (p. 45-46).

Bento XVI, como vimos, também pede que todas essas variações possíveis sejam retiradas do próprio texto do novo missal. Elas foram muito prejudiciais para a santidade da liturgia e para sua celebração piedosa. E, no entanto, em seu Motu proprio ele fala de “santidade e valor” da Nova Missa. Não existe uma incoerência? Uma contradição entre seu pensamento de ontem e o de hoje, ao escrever seu Motu proprio? Mas essa incoerência não pode ser explicada também pelas pressões sofridas durante as “discussões” para finalizar o texto definitivo do Motu proprio? Eu ia dizer: troca por troca. “Você quer fazer valer o direito da Missa Tridentina. Isso está de acordo com o ser histórico da Igreja… E é difícil contestar isso. Mas ao mesmo tempo, para não depreciar a outra Missa, a do Concílio Vaticano II e sua Reforma, é necessário declarar a “santidade” e afirmar que ela não se afasta de forma alguma da doutrina católica, como o disse uma vez, em 1969, os cardeais Ottaviani e Bacci e como nos lembra o cardeal Stickler em 2004, aquele que tanto apoiou Bento XVI para esta restauração litúrgica tão necessária para a santidade da Igreja”. Daí o artigo 1º § 1º da Motu proprio e sua surpreendente redação…

Mons. Gamber ousou escrever: “As três novas orações eucarísticas constituem uma ruptura completa com a tradição. Elas foram recentemente compostas segundo os modelos orientais e galicanos e representam, pelo menos em estilo, um corpo estranho no rito romano” (p. 49).

E o Papa, por sua vez, afirma em seu Motu proprio e em sua carta de apresentação que não há ruptura no rito litúrgico entre o missal de João XXIII e o de Paulo VI. Em si. Certamente. Mas, de fato, isso é outra coisa. Mons. Gamber fala aqui de uma “ruptura completa na tradição” por ocasião da publicação das três novas orações eucarísticas. Ele é corroborado nesta afirmação pelas próprias pessoas que produziram essas “obras-primas”! Lembramos o testemunho do Padre Bouyer. Então, onde está o “valor” e a “santidade” da Nova Missa, como afirma Bento XVI em sua carta? Não teria havido fortes pressões obrigando a afirmar a unidade do rito romano da forma ordinária e da forma extraordinária… enquanto mons. Gamber, um mestre em assuntos litúrgicos, expressa o contrário com tanta veemência… Mas os oponentes da Missa Tridentina – e eles são legiões, ainda hoje, veja o Cardeal Lehmann, presidente da Conferência Episcopal Alemã, veja Dom Raffin, Arcebispo de Metz – durante essas discussões, foram intimidadores. Era necessário concordar com suas exigências. Caso contrário, as conversas talvez se prolongassem e a Missa Tridentina tivesse sempre permanecido “revogada” de fato, como em 1986.

Em 1986.

[Papa João Paulo II]

Nesta data, o Papa João Paulo II queria restaurar a Missa Tridentina em termos de igualdade com a Missa de Paulo VI. (Não depende de mim se a missa de Paulo VI exista ou não) Mas ele teve que desistir diante da oposição que surgiu. Minha tese pode ter algumas verdades, pelo menos tem um exemplo histórico… um testemunho.

O testemunho do Cardeal Stickler.

Em uma entrevista com a Latin Mass (verão de 1995 na América), o Cardeal revela a criação de uma comissão de nove cardeais para responder à pergunta: A Missa Tridentina foi revogada? “A resposta dada por oito dos nove cardeais em 1986 foi, portanto, que não; a missa de São Pio V nunca foi proibida – eu mesmo fui um desses cardeais. Apenas um foi contra. Todos os outros eram por uma livre autorização, para que todos pudessem escolher a missa antiga. Acho que o Papa aceitou essa resposta. Porém, também aí, quando certas conferências episcopais se deram conta do perigo representado por esta autorização, os seus representantes foram ver o Papa e disseram-lhe: “Isso absolutamente não pode ser autorizado, porque será a ocasião e mesmo a causa de controvérsias entre os fiéis”. Então o Papa se absteve de assinar esta autorização, acho que curvando-se a este argumento. E, no entanto, no que diz respeito à Comissão… Falo disso por experiência própria – a resposta da grande maioria foi positiva” (Testemunho de um perito do Concílio, p. 27-28).

E então não haveria pressão sobre um papa?

Mons. Gamber também critica a modificação da fórmula da consagração do vinho em Sangue de Cristo, da mudança de lugar do “mysterium fidei” mudando seu significado, bem como a tradução para o vernáculo do “pro multis” por “para todos” [ndt: em português temos outra invenção litúrgica com o uso da resposta “Ele está no meio de nós” à frase do celebrante “O Senhor esteja convosco”, ao invés da resposta original do Missal de Paulo VI em latim, que é tradicional e lógica, “Et cum spiritu tuo” (“E com o vosso espírito também”, isto é, os fiéis desejam que o celebrante também esteja unido com Cristo no espírito)]. Está na página 50 do livro dele. Vimos, acima, o quanto o Cardeal Stickler insistiu nessas mudanças.

[Cardeal Arinze]

Estas são críticas importantes dirigidas à nova liturgia. Então, como podemos falar da “santidade” da reforma litúrgica? É verdade que o cardeal Arinze, então prefeito da Congregação dos Ritos, solicitou, a pedido de Bento XVI, que esta tradução fosse modificada. Diante do insucesso, Bento XVI interveio pessoalmente junto ao episcopado alemão e ao episcopado austríaco, apenas recentemente. É que existe um problema teológico real oculto sob esta falsa tradução. Mesmo que a redenção de Cristo seja universal para ele, não é para nós, ainda é necessário recebê-la na fé. Então, como podemos falar de “santidade” e “valor” da nova liturgia, de “unidade” entre as duas formas litúrgicas? Isso não é possível a menos que haja algumas pressões. Mas seria necessário aceitá-las… para poder dizer finalmente… contra grande parte do corpo episcopal, que a Missa Tridentina nunca foi abolida?

Mons Gamber destaca a importância da expressão “Mysterium fidei” na fórmula da consagração do vinho em Sangue de Cristo. Ele escreve: “Do ponto de vista do rito, surpreende-se ver que foi possível retirar sem razão as palavras ‘mysterium fidei’ inseridas nas palavras da consagração por cerca de seis séculos, para dar-lhes um novo uso: elas se tornam um convite do sacerdote após a consagração. Um convite como este: Mysterium fidei! certamente nunca foi usado para uma aclamação da assembléia: “Proclamamos sua morte…” não é encontrada em nenhuma anáfora egípcia. Por outro lado, ela é estranha aos outros ritos orientais e a todas as orações eucarísticas ocidentais, e também não se encaixa no estilo do Cânon Romano. Além disso, representa uma ruptura abrupta no discurso: enquanto nos voltamos para Deus Pai, de repente nos voltamos para o Filho” (p. 50).

Estas justas observações, o Cardeal Stickler nunca deixou de sustentar. O cardeal Ratzinger também. Então, como falar, no dia 7 de julho de 2007, data da publicação do Motu proprio, de “santidade” de “valor” do novo rito? Não teria havido pressão sobre o Papa? Ele queria a restauração do antigo rito na Igreja. Mons. Gamber também desejava isso. O governo é a arte do possível. Conceder isso para conseguir aquilo! Por que não?

Mons. Gamber escreve e esta será nossa última citação: “A liturgia permanece uma pátria, mesmo quando continua a se desenvolver. E continuou a se desenvolver ao longo da história de quase dois milênios da Igreja. Mas o que é capital é que nunca houve essa ruptura com a tradição que hoje vivemos de forma tão assustadora, e isso numa época em que, aliás, quase tudo está sendo questionado na Igreja” (p. 92 -93).

O Papa muitas vezes apoiou a mesma ideia e a expressou com força em muitos lugares, enquanto ainda era Cardeal Prefeito da Congregação da Fé, e particularmente no prefácio do livro de Mons. Gamber. E aqui no Motu Proprio, ele afirma que a Nova Missa é a “forma ordinária” do rito romano, que a Missa Tridentina é sua “forma extraordinária”, que ambas são duas formas de um único rito romano “expressando a mesma fé”…

Como isso é possível?

Como entendê-lo senão pelas fortes pressões exercidas pelo corpo episcopal que, de toda maneira, não via com bons olhos este retorno da missa tridentina e que nem a queria por medo de uma depreciação, no povo fiel, da obra litúrgica do Concílio Vaticano II. Bento XVI teve que reconhecer. Sob essa pressão, ele escreveu este surpreendente artigo 1 § 1 do Motu Proprio Summorum Pontificum.

Apesar disso, a oposição do episcopado ao Motu Proprio não se desarmou. As concessões não servem para nada.

A aplicação da Motu Proprio foi e ainda é muito difícil.

Bento XVI sentiu resistência, para não dizer desobediência. Ele se sentia cada vez mais isolado em seu ministério petrino, que consumiu sua resistência moral e física. O exercício do poder requer sempre certo “consenso”. Em matéria litúrgica, ele não o obteve. Exausto e de caráter manso e pacífico, retirou-se.

 

Link da publicação original:  https://ibp-sp.org/ibpsp/artigo-em-portugues-do-pe-paul-aulagnier-ibp/