VIII
EPIFANIA
. Todas as vezes que a alma se encontra em contacto mais íntimo com Deus, sente-se envolta em mistério: Nubes et caligo in circuitu ejus. Este mistério é a consequência inevitável da distância infinita que separa a criatura do Criador. Por todos os lados o ser finito é ultrapassado por Aquele que é eternamente a verdadeira plenitude do Ser.
Um dos caracteres mais profundos do Ser divino é a Sua incompreensibilidade e invisibilidade; é uma coisa deveras notável a invisibilidade divina neste mundo.
«Deus é luz», diz S. João; é a luz infinita, «sem sombras nem trevas»; Deus lux est, et tenebrae in eo non sunt ullae. S. João tem cuidado de notar que esta verdade constitui uma das bases do seu Evangelho: Et haec est annuntiatio quam audivimus ab eo, et annuntiamus vobis. Mas esta luz que nos envolve a todos na sua claridade, em vez de revelar Deus aos olhos da nossa alma, oculta-O. O mesmo se dá com o sol, cujo fulgor impede que o contemplemos: Lucem inhabitat inaccessibilem. E, no entanto, esta luz é a vida da alma. Já reparastes como na Escritura Sagrada estão frequentemente incarnadas as ideias de vida e de luz? Quando o Salmista quer descrever a eterna bem-aventurança de que Deus é a fonte, diz que «n'Ele se encontra o princípio da vida»: Torrente voluptatis tuale potabis eos. Quoniam apud te est fons VITAE. E logo acrescenta: «E em tua luz veremos a luz»: Et in lumine tuo VIDEBIMUS LUMEN. Igualmente, quando Nosso Senhor declara ser «a luz do mundo», diz ainda (e aqui há mais que uma simples justaposição de palavras): «Aquele que me segue não anda em trevas, mas terá a luz da vida»: Habebit LUMEN VITAI. E esta luz da vida procede da vida por essência, que é luz: In ipso vita erat, et vita erat luz hominum. A nossa vida no céu será conhecer sem véu a luz eterna e gozar dos seus esplendores.
Já na terra Deus dá uma participação da Sua luz, dotando a alma humana com a inteligência: Signatum est super nos lumen vultus tui, Domine. A razão é para o homem uma verdadeira luz. Toda a atividade natural do homem, para ser digna dele mesmo, deve, principalmente, ser dirigida por esta luz, que lhe indica o bem a praticar; luz tão poderosa, que é capaz de revelar ao homem a existência de Deus e algumas das Suas perfeições. S. Paulo, escrevendo aos fiéis de Roma, declara que os pagãos não têm desculpa de não terem conhecido a Deus, pois contemplam o mundo, obra de Suas mãos. As obras de Deus contêm um vestígio, um reflexo das Suas perfeições, e revelam assim, até certo ponto, a luz infinita.
Há outra manifestação mais profunda e misericordiosa que Deus fez de Si mesmo: a Incarnação.
A luz divina, demasiadamente brilhante para se manifestar aos nossos olhos em todo o seu esplendor, escondeu-se sob a Humanidade: quod est velamen. É o pensamento de S. Paulo. «Esplendor da luz eterna», luz derivada da luz, lumen de lumine, o Verbo revestiu a nossa carne para que através dela nós pudéssemos contemplar a Divindade; Nova mentis nostrae oculis lux tuae claritatis infulsit. Jesus Cristo é Deus posto ao nosso alcance, mostrando-se a nós numa existência autenticamente humana; o véu da Humanidade impede que nos cegue o esplendor infinito e deslumbrante da Divindade.
Mas deste Homem desprendem-se raios que revelam a Sua Divindade a toda a alma de boa vontade; a alma esclarecida pela fé conhece os esplendores que se escondem por trás do véu deste Santo dos Santos. No homem mortal que é Jesus, a fé encontra o próprio Deus e, quando encontra Deus,sacia-se na fonte de luz, de salvação e de vida imortal: Quia cum Unigenitus tuus in substantia nostrae mortalitatis apparuit, nova nos immortalitatis suae luce reparavit.
Esta manifestação de Deus aos homens é um mistério tão inaudito, uma obra tão cheia de misericórdia, e constitui um dos caracteres tão essenciais da Incarnação, que nos primeiros séculos da Igreja não havia festa alguma para honrar particularmente a Natividade do Salvador em Belém; celebrava-se a festa das «Teofanias» ou «das manifestações divinas» na pessoa do Verbo Incarnado: manifestação aos Magos; nas margens do Jordão por ocasião do Batismo de Jesus; nas bodas de Caná, onde Jesus Cristo realiza o primeiro milagre. Passando da Igreja do Oriente para a do Ocidente, a festa conservou o nome grego - Epifania - «manifestação»; mas tem por objeto quase exclusivo a manifestação do Salvador aos gentios, às nações pagãs, na pessoa dos Magos.
Conheceis suficientemente a narração evangélica da vinda dos Magos a Belém, narração ilustrada e popularizada pela tradição. Dir-vos-ei apenas algumas palavras sobre a significação geral do mistério; demorando-me em seguida em certos pormenores, indicar-vos-ei alguns dos inúmeros ensinamentos que contém para a nossa piedade.
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