5 de dezembro de 2016

Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

IV 

A Humanidade de Jesus Cristo torna Deus visível; mas principalmente - e é aqui que a divina sabedoria se mostra «admirável » - torna Deus passível.
 O pecado que em nós destruiu a vida divina exige uma satisfação, uma expiação, sem a qual não nos podia ser restituída essa vida divina. O homem, sendo simples criatura, não podia sofrer nem reparar. Deus só nos pode comunicar a Sua vida, se o pecado for extinto; por um decreto imutável da sabedoria eterna, o pecado não se apaga, se não for expiado duma maneira conforme à equidade. Como resolver o problema? 
 A Incarnação dá-nos a reposta. Considerai o Menino de Belém: é o Verbo feito carne. A Humanidade que o Verbo toma é passível; é ela quem sofrerá, quem satisfará. Esses sofrimentos e satisfações, que são obra Sua, bem Sua,  pertencerão, no entanto, como a própria Humanidade, ao Verbo; a pessoa divina dar-lhes-á um valor infinito que bastará para resgatar o mundo, destruir o pecado e fazer superabundar a graça nas almas como um rio impetuoso e fertilizante: Fluminis impetus laetificat civitatem Dei.
 Ó comércio admirável. Não nos demoraremos em prescrutar de que modo teria Deus podido operá-lo; vejamos como o realizou. O Verbo pede-nos uma natureza humana para encontrar nela com que sofrer, reparar, merecer e cumular-nos de graças. Foi pela carne que­ o homem se desviou de Deus; é fazendo-se carne que Deus liberta o homem:
 Beatus auctor saeculi
 Servile corpus induit
 Ut carne carnem 1iberans 
Ne perderet quos condidít.
 A carne revestida pelo Verbo de Deus tornar-se-á,  para toda a carne o instrumento da salvação. O admirabile commercium ! 
Evidentemente não ignorais que será necessário esperar pela imolação do Calvário para que seja completa a expiação. Mas, como no-lo ensina S. Paulo, «logo no primeiro momento da Incarnação, Jesus Cristo aceitou cumprir a vontade de Pai e oferecer-se como Vítima pelo gênero humano »: ldeo ingrediens mundum dicit: Ho­stiam et oblationem noluisti: CORPUS autem aptasti mihi .. , Et tunc dixi: Ecce venio ... ut faciam Deus voluntatem tuam . « É por esta oblação que Jesus Cristo começa a santificar-nos»: In qua voluntatem sanctificati sumus; é no presépio que inaugura essa existência de sofrimento que quis viver para nossa salvação, cujo termo é no Gólgota e que, destruindo o pecado, deve restituir-nos a amizade de Pai. O presépio é apenas o primeiro passo, mas contém radicalmente todos os outros.
 Eis por que, na solenidade do Natal, a Igreja atribui a nossa salvação ao próprio nascimento temporal do Filho de Deus. «Ó Senhor, que o novo nascimento do Vosso Filho na carne nos liberte da antiga servidão que nos trazia cativos sob o jugo do pecado ». Por isso, desde esse momento, falar-se-á constantemente de « libertação, de redenção, de salvação, de vida eterna ». É pela Sua Humanidade que Jesus Cristo, Pontífice e Mediador, nos une a Deus; mas é ·em Belém que nos aparece nessa Humanidade. 
Vede, pois, como, desde o Seu nascimento, Ele realiza a Sua missão.
 O que é que nos faz perder a vida divina?
 O orgulho. Porque acreditaram que se tornariam semelhantes a Deus, conhecedores da ciência do bem e do mal, Adão e Eva perderam, para si e para os seus descendentes, a amizade de Deus. Jesus Cristo, novo Adão, resgata-nos e reconduz-nos a Deus pela Humildade da Incarnação. «Apesar de ser Deus, aniquilou-se a Si próprio, tomando a condição de criatura, tornando-se semelhante aos homens: manifestou-se como homem em tudo o que fez ». Que humilhação! Mais tarde, a Igreja exaltará até ao mais alto dos céus a Sua glória resplandecente de triunfador do pecado e da morte; mas, por enquanto, Jesus Cristo conhece apenas o aniquilamento e a fraqueza. Quando os nossos olhares descem sobre essa criancinha que em nada se distingue das outras e pensamos estar diante de Deus, do Deus infinito, no qual se escondem todos os tesouros da sabedoria e da ciência, a alma sente-se compenetrada e o nosso vão orgulho confunde-se diante de tamanha humilhação.
Que mais nos perdeu ainda? A nossa recusa em obedecer. Vede o Filho de Deus. Ele dá o exemplo duma obediência admirável; com a simplicidade das criancinhas, entrega-se nas mãos dos Seus pais; deixa-se tocar, pegar e levar para onde desejam; e toda a infância, toda a adolescência, toda a mocidade de Jesus estão resumidas pelo Evangelho nestas únicas palavras: «Era submisso a Maria e a José». Que mais? As nossas cobiças: «a concupiscência dos olhos», tudo o que aparece, brilha, fascina e seduz; a inanidade da bagatela fugaz que preferimos a Deus. O Verbo se fez carne; mas nasceu na pobreza e na abjecção: Propter vos egenus factus est cum esset dives: «Jesus Cristo fez-se pobre, de rico que era». Posto que seja «O rei dos séculos», Aquele que com uma palavra tirou do nada toda a criação, que só «com abrir a mão enche de bênçãos todo o ser vivo», não nasceu num palácio; Sua Mãe, não encontrando lugar na hospedaria, viu-se obrigada a refugiar-se numa gruta: o Filho de Deus, Sabedoria eterna, quis nascer nu e ser deitado na palha. Se contemplarmos com fé e amor o Menino Jesus no presépio, veremos n'Ele o exemplo divino de muitas virtudes; se soubermos ouvir com o coração o que Ele nos diz, muito aprenderemos; se percorrermos as circunstâncias do Seu nascimento, veremos como a Humanidade serve ao Verbo de instrumento, não só para nos instruir, mas ainda para nos levantar, para nos vivificar, para nos tornar agradáveis ao Pai e desprender-nos das coisas que passam, de nós mesmos, para nos elevar até Deus. «A Divindade reveste a nossa carne mortal; e por isso mesmo que o  Senhor se abaixa a viver uma vida humana, o homem eleva-se para as coisas divinas»: 
Dum divinitas defectum nostrae carnis suscepit, humanum genus lumen, quod amiserat, recepit. Unde enim Deus humana patitur, inde homo ad divina sublevatur. 

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