Virum dolorum, et scientem infirmitatem — “O homem de dores e experimentado nos trabalhos” (Is. 53, 3).
Sumário. O primeiro Adão gozou durante algum tempo as delícias do paraíso terreal; mas o segundo Adão, Jesus Cristo, não teve nem sequer um instante em sua vida que não fosse cheio de aflições e agonias, porquanto desde o berço afligiu-O a dolorosa previsão de todas as penas e ignomínias que deveria padecer, e particularmente a previsão da ingratidão de que os homens usariam para com Ele. Ó céus! Nós também temos contribuído para contristar esse amabilíssimo Coração.
I. O profeta Isaias chama a Jesus Cristo o homem de dores. E com razão, porquanto a natureza humana de Jesus foi criada expressamente para padecer, e assim desde o berço começou a sofrer as maiores dores, que os homens jamais têm sofrido. Para o primeiro homem, Adão, houve um tempo em que gozava as delícias do paraíso terrestre; mas o segundo Adão, Jesus Cristo, não teve nem sequer um instante de vida que não fosse cheio de aflições e agonias. Desde o berço afligiu-o a dolorosa previsão de todas as penas e ignominias que deveria padecer no correr de sua vida e particularmente na hora de sua morte, quando deveria terminar a vida como que submergido num oceano de dores e de opróbrios, assim como o predisse Davi: Veni in altitudinem maris, et tempestas demersit me (1) — “Cheguei ao alto mar e a tempestade me submergiu”.
Desde o seio de Maria, Jesus Cristo aceitou obediente a ordem de seu Pai acerca da sua paixão e morte. De sorte que já antes de nascer previu os açoites e apresentou seu corpo para os receber; previu os espinhos e apresentou-lhes a cabeça; previu as bofetadas e apresentou-lhes as faces; previu os cravos e apresentou-lhes as mãos e os pés; previu a cruz e apresentou sua vida. Daí é que o nosso Redentor, desde a primeira infância e a cada instante da sua vida, padeceu um contínuo martírio, e a cada instante oferecia esse martírio por nós ao Pai Eterno.
Mas, o que mais O atormentou, foi a vista dos pecados que os homens haviam de cometer, mesmo depois da sua tão dolorosa Redenção. Na luz divina conhecia Jesus perfeitamente a malícia de cada pecado e veio ao mundo exatamente para tirar os pecados; mas ao ver em seguida o número tão grande de pecados que ainda iam ser cometidos, a angústia que o Coração de Jesus sofreu, foi maior do que a que tem sofrido ou ainda sofrerão todos os homens da terra.
II. Meu doce Redentor, quando é que começarei a ser grato para com vossa bondade infinita? Quando começarei a reconhecer o amor que me tendes consagrado, e as penas que tendes sofrido por minha causa? Nos tempos passados, em vez de amor e de gratidão, paguei-Vos com ofensas e desprezos. Deverei continuar a viver sempre tão ingrato para convosco, meu Deus, que nada poupastes para adquirir para Vós o meu amor? Não, Jesus meu, não há de ser assim. Nos dias de vida que ainda me restam, quero ser-Vos grato; e Vós mesmo deveis ajudar-me nisso. Se Vos tenho ofendido, as vossas penas, a vossa morte são a minha esperança. Prometestes perdoar a quem se arrepende. Arrependo-me de todo o meu coração de Vos ter desprezado. Cumpri a vossa promessa, Amor meu, e perdoai-me.
Ó meu caro Menino, contemplo-Vos nessa manjedoura como que já pregado na cruz, visto que esta Vos está presente e Vós a aceitais por mim. Ó Menino crucificado — assim quero chamar-Vos — , eu Vos agradeço e Vos amo. Deitado sobre essa palha, padecendo por mim e preparando-Vos para morrer por meu amor, Vós mandais e me convidais a amar-Vos: Diliges Dominum Deum Tuum (2) — “Amarás ao Senhor, teu Deus”. Não desejo outra coisa senão amar-Vos. Já que quereis ser amado por mim, dai-me todo esse amor que me pedis. O amor para convosco é um dom vosso, e o dom mais precioso que podeis conferir a uma alma. Aceitai, ó meu Jesus, o amor de quem pecando, tantas vezes Vos tem ofendido. Vós baixastes do céu para buscar as ovelhas perdidas: buscai-me, pois, a mim, que eu não busco senão a Vós. Vós quereis a minha alma, e a minha alma não quer senão a Vós. Vós amais a quem Vos ama, segundo a vossa palavra: Diligentes me diligo (3) — “Eu amo a quem me ama”. Eu Vos amo, amai-me também Vós; e se me amais, prendei-me ao vosso amor, mas prendei-me de tal maneira, que eu não possa mais separar-me de Vós. — Maria, minha Mãe, ajudai-me. Seja uma nova glória para vós verdes vosso Filho amado de um miserável pecador, que em outros tempos O tem ofendido tanto. (II 334.)
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1. Ps. 68, 3.
2. Luc. 10, 27.
3. Prov. 8, 17.
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 35-38.)
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