1 de janeiro de 2011

Sacerdote Eternamente - Parte 19

SACERDOTE ETERNAMENTE
Dom Emmanuel Marie André

LIVRO TERCEIRO
O CAMPO DO MINISTÉRIO

CAPÍTULO III
Como se Gera o Mal Presente

A fonte do mal, já dissemos, é o pecado original. Ora, essa fonte é muito secreta, e, em virtude do próprio segredo em que se oculta, ela tem mais facilidade de disseminar seus venenos.

O pecado original é pouco conhecido; e, freqüentemente, mal conhecido.

Como ele lançou as almas na ignorância, parece que deliberadamente se empenhou em ocultar sua própria malícia, a qual consiste essencialmente em duas coisas:

1) a perda da justiça original;

2) a deterioração da natureza.

Hoje, entretanto, ainda que se admita a perda da justiça original, busca-se não reconhecer que a natureza tenha sido deteriorada.

Este conhecimento assim truncado do pecado original deixa campo livre para uma multidão de erros e em todo caso ele é ineficaz para a salvação, segundo a máxima bem conhecida: Bonum ex integra causa; malum exquocumque defecta (o bem provém de uma causa sem falhas; o mal provém de qualquer falha).

Do fato de não se saber mais, de não mais se querer reconhecer a deterioração da natureza pelo pecado original decorrem as mais funestas conseqüências.

A natureza sente-se orgulhosa de si mesma, não obstante a palavra tão solene do Apóstolo: Quid habes quod non accepisti? Si autem accepisti, quid gloriaris quasi non acceperis? (O que tens que não tenhas recebido? E, se recebeste, por que te glorias, como se não tivesses recebido? — 1 Cor 4,7).

Deixando de perceber seu próprio mal, a natureza é levada a abusar dos bens que lhe foram dados, empregando-os como arma contra Deus; e, assim, produz em si própria novas chagas.

Ela possui razão, liberdade e os sentidos, mas de tudo abusa. Sua revolta insolente contra Deus precipitou-a no naturalismo; e por uma série de conseqüências inevitáveis, a razão caiu no racionalismo, a liberdade no liberalismo e os sentidos no sensualismo.

Depois de todas essas incursões espantosas no domínio do mal, a natureza, ainda insatisfeita, voltou-se contra o próprio Salvador, negando Sua divindade e negando Sua humanidade. Negou Sua graça. Negou Sua Igreja. Negou tudo. E depois disse de si própria, tal como a Babilônia de outrora: Ego sum, et nom est praeter me amplius (Eu sou, e somente eu sou — Is 47,8).

O mal não é tão grave assim em todas almas; mas nos próprios fiéis as verdades foram singularmente diminuídas. Há para eles um naturalismo atenuado que não pretende ser erigido em dogma, mas que se contenta perfeitamente em ser aceito como doutrina prática. Há um racionalismo mitigado que não condena a fé, mas que comumente se reserva o direito de julgá-la; há também um liberalismo católico; e se ainda não se ousou falar em sensualismo católico, somos entretanto obrigados a convir que o sensualismo se instalou em muitas almas católicas de tal sorte que a vida sensual chegou a extinguir nelas o conhecimento da mortificação cristã, sem a qual porém, segundo o testemunho do Apóstolo, não se vive na presença de Deus: Si secundum carnem vixeritis moriemini; si autem spiritu facta carnis mortificaveritis, vivetis (Se viverdes segundo a carne, morrereis; mas se, pelo espírito, fizerdes morrer as obras da carne, vivereis — Rom 8,13).

Deve-se notar aqui um ponto capital a respeito do qual o naturalismo falseou singularmente as idéias, mesmo dos bons. Estudando os Autores que até os séculos XV ou XVI trataram da graça e cotejando-os com os autores modernos, pode-se notar entre eles uma diferença considerável.

Os primeiros reconhecem a graça salvífica do Redentor, sua gratuidade, sua eficácia.

Hoje, a eficácia da graça é freqüentemente atribuída à vontade da criatura; outrora, ela era considerada como um dom da própria graça.

É de se afirmar que os homens de nossos dias, mesmo os cristãos, não estão aptos para ler o tratado de São Bernardo - De gratia et libero arbitrio - sem se pasmar ou mesmo talvez sem se escandalizar. Pois não é que o padre Rohrbacher chegou a escrever que São Bernardo não soube estabelecer distinção entre a natureza e a graça? Ó pigmeu do século XIX, dissestes isso de São Bernardo; e até de Santo Agostinho dissestes coisa semelhante!

Como os homens sem grandeza dos tempos presentes não possuem sobre a graça os sentimentos que lhe devotaram os antigos, conseqüentemente não consideram mais neces-sário rezar para pedi-la, obtê-la e conservá-la. O que é hoje a oração? Onde estão as almas que rezam? Não é verdade que a oração da maioria dos cristãos consiste apenas na recitação de fórmulas? Como estão longe do cristianismo de Nosso Senhor e de seus Apóstolos, o qual é espírito e vida!

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ANDRÉ, Dom Emmanuel Marie. Tratado do Ministério Eclesiástico.

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