12 de fevereiro de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

IV 

Contemplemos agora o nosso divino Chefe em luta com o príncipe dos espíritos rebeldes.
 Sabeis que Jesus esteve no deserto quarenta dias e quarenta noites, <
 Para bem compreenderdes o mistério da tentação de Jesus, lembrai-vos do que tantas vezes vos tenho dito: Jesus Cristo é em tudo semelhante a nós: Debuit per omnia fratribus similari. Imaginai agora a que estado de fraqueza ficaria reduzido um homem que, durante quarenta dias, não tomasse alimento algum. Não quis Nosso Senhor fazer milagres para impedir em Si os efeitos do jejum; por isso, diz- nos o Evangelho que, depois deste tempo todo, Jesus sentiu fome: Postea esuriit. Naturalmente, depois de tanto tempo, devia achar-se num estado de extrema fraqueza. Vamos já ver como o demônio se vai aproveitar da ocasião para O tentar.
 No entanto, embora participe das nossas enfermidades e fraquezas, a santa Humanidade de Jesus Cristo não pode conhecer o pecado: Absque peccato; a alma de Jesus não está sujeita a ignorância, a erro, a fraqueza de espécie alguma.
 Escusado será dizer que tão pouco experimenta nenhum desses movimentos desordenados que em nós resultam da culpa original ou dos hábitos do pecado. Se, por amor de nós, Jesus padece fome e abatimento, em Si mesmo permanece o Santo dos santos. Qual é a consequência desta doutrina? Que a tentação que Jesus Cristo pode sofrer Lhe não atinge a alma, é apenas exterior; não pode ser tentado senão <
Entre estes espíritos devemos pensar que aquele que tentou o Salvador era dotado de um poder particular: por maravilhosa, porém, que fosse a sua inteligência, ignorava contudo quem era Jesus Cristo. Criatura alguma pode ver a Deus, a não ser pela visão beatífica, de qual está privado o demônio.
 Do mesmo modo lhe não era permitido conhecer a chave do mistério que estabelece em Jesus a união da Divindade com a Humanidade. Certamente suspeitava qualquer coisa; não se esquecera da maldição que sobre ele pesava. desde que Deus estabelecera inimizade eterna entre Satanás e a mulher que lhe devia esmagar a cabeça, isto é, destruir o seu poder sobre as almas; não podia ignorar os prodígios que se haviam operado desde o nascimento de Jesus; o relato da tentação mostra-o claramente. A sua ciência, porém, era incerta. Queria, ao tentar a Jesus Cristo, conhecer de modo indubitável se era possível triunfar daquele homem, que, não havia dúvida, considerava um ser extraordinário. 
O tentador aproxima-se, pois, de Jesus, diz-nos o Evangelho! Et accedens tentator. Vendo-O num estado de esgotamento, tenta fazê-lo cair num pecado de gula. Não num pecado de grande gulodice, apresentando a Jesus Cristo suculentas iguarias; o demônio tinha uma opinião muito elevada 
d'Aquele que atacava, para acreditar que pudesse sucumbir a uma sugestão deste gênero. Mas sugere a Jesus, acabrunhado pela fome, que, se é o Filho de Deus, tem o poder de operar milagres para a satisfazer. Queria assim induzir Jesus Cristo a antecipar a hora do Pai para realizar um prodígio cuja finalidade era inteiramente pessoal. «Se és o Filho de Deus diz a estas pedras» - e mostrava-as aos pés de Jesus - << que se transformem em pão». E que responde Nosso Senhor? Dá a conhecer a sua qualidade de Filho de Deus? Não. Opera o milagre proposto pelo demônio? Ainda menos. Limita-se a replicar com uma palavra da Escritura: «Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra de Deus». Mais tarde, durante a vida pública, um dia em que os Apóstolos Lhe trazem alimento - «Mestre, comei»: Rabbi manduca -, Jesus Cristo dá uma resposta análoga: «Tenho um alimento que vós não conheceis: cumprir a vontade do meu Pai». O mesmo diz ao demônio. Esperará, para satisfazer a fome, que o Pai venha em Seu auxílio; não antecipará o momento marcado pelo Pai para revelar o Seu poder; quando o Pai falar, escutará a Sua voz.
 Vendo-se repelido, Satanás compreende que tem diante de si, senão o Filho de Deus, pelo menos um ser de grande santidade. Por isso, resolve lançar mão de outra arma mais perigosa. Conhece maravilhosamente a natureza humana; sabe que aqueles que atingiram um alto grau de perfeição e de união com Deus estão acima das solicitações do apetite grosseiro dos sentidos, mas podem-se deixar seduzir pelas sugestões mais sutis do orgulho e presunção; podem-se julgar superiores aos outros e pensar que, em atenção à sua fidelidade, mesmo quando se exponham voluntariamente ao perigo, Deus é obrigado a dispensar-lhes especial proteção. - O dem­ônio intenta, pois, impelir a Cristo por esse caminho. Fazendo uso do seu poder espiritual, transporta Jesus ao pináculo do Templo e diz-Lhe :«Se és o Filho de Deus, atira-te daqui abaixo; para ti não haverá perigo algum, porque Deus ordenou aos Seus Anjos que te amparem em suas mãos, para não te ferires de encontro às pedras». «Se Jesus é o Filho de Deu», aparecer assim no ar e descer no meio da multidão que se aglomera no átrio, que maravilhoso sinal da Sua missão messiânica, que prova evidente de que Deus está com Ele! E para tornar a sugestão mais sedutora, o demônio recorre à autoridade da palavra divina. - Mas Jesus replica, dum modo soberano, com outro texto sagrado: <
 O espírito das trevas tenta vencer a Cristo num derradeiro assalto. Transporta-O ao cume duma elevada montanha, e mostra-Lhe todos os impérios do mundo, desenrola a Seus olhos todas as suas riquezas, todo o seu esplendor e glória. Que tentação para a ambição d'Aquele que se considerava o Messias! Faltava marcar-lhes o preço. Mais um ardil do espírito maligno para conhecer finalmente quem era Aquele que lhe resistia. «Tudo isto me pertence; mas tudo te darei, se, prostrando-te, me adorares». - Conheceis a resposta de Jesus e o vigor com que repele as sacrílegas sugestões do demônio: «Retira-te, Satanás! Está escrito: só a Deus adorarás e só a Ele servirás ».
 O príncipe das trevas sente-se agora inteiramente desmascarado: só lhe resta retirar-se. Mas, diz o Evangelho, «foi só por certo tempo que se afastou»: Usque ad tempus. O escritor sagrado dá assim a entender que, durante a vida pública, o demônio voltará ao ataque; pelos seus ministros, quando não em pessoa, perseguirá sem tréguas a Nosso Senhor; durante a Paixão principalmente há de encarniçar-se, pelas mãos dos fariseus, em perder Jesus: Haec est hora vestra, et potestas tenebrarum. O demônio incitará os fariseus, e estes o povo, a exigirem que o Salvador seja crucificado: Tolle, tolle, crucifige eum. Sabeis, no entanto, que a morte do Salvador na Cruz será precisamente o golpe decisivo que arruinará para sempre o império do demônio. Assim resplandece a sabedoria em todas as suas obras! Qui salutem humani generis in ligno crucis constituistí ... ut qui in ligno vincebat in ligno quoque vinceretur.
 O Evangelho acrescenta que, << tendo-se retirado o tentador, os Anjos desceram do céu para servirem a Jesus ». Era a manifestação sensível da exaltação que o Pai concedia ao Filho por se ter abaixado a ponto de suportar em nosso nome os ataques do demônio. Apareceram os Anjos fiéis e serviram a Jesus o pão que esperava, na hora designada pela Providência do Pai. 
Até aqui, o relato evangélico da tentação de Jesus. Se Jesus Cristo, Verbo Incarnado, Filho de Deus, quis entrar em luta com o espirito maligno, como admirar-nos de que os membros do seu corpo mistico tenham de seguir por igual caminho? Muitas pessoas, mesmo piedosas, creem que a tentação é um sinal de condenação. Mas, a maior parte das vezes, é o contrário! Tendo-nos tornado discípulos de Jesus pelo Batismo, não podemos « estar acima do nosso divino Mestre ». QUIA acceptus eras Deo, NECESSE FUIT ut tentatio pro­baret te: « Porque eras agradável a Deus, foi necessário que a tentação te experimentasse ». É o próprio Senhor quem no-lo diz.
 Sim, o demônio pode tentar-nos, e tentar-nos poderosamente, e tentar-nos quando nos julgamos inteiramente ao abrigo dos seus dardos: nas horas de adoração, depois da sagrada Comunhão; nestes momentos abençoados pode sugerir-nos pensamentos contra a fé, contra a esperança, pode induzir o nosso espírito à independência para com os direitos divinos, à revolta; pode despertar em nós as paixões. Pode, e não deixará de o fazer.
 Repito, não nos admiremos; nunca nos esqueçamos de que Jesus Cristo, em tudo nosso modelo, foi tentado antes de nós, e não só tentado, mas tocado pelo espírito das trevas; permitiu ao demônio pusesse a mão na Sua Santa Humanidade.
 Sobretudo não esqueçamos que não foi só como Filho de Deus que Jesus venceu o demônio, mas também como Chefe da Igreja; n'Ele e por Ele triunfamos e triunfaremos das sugestões do espírito rebelde.
 Foi esta precisamente a graça que nos mereceu o nosso divino Salvador por este mistério; nele encontraremos a fonte da nossa confiança nas provações e nas tentações; resta-me apenas mostrar-vos como esta confiança deve ser inquebrantável, e como, pela fé em Jesus Cristo, encontraremos sempre o segredo da vitória. 

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