17 de outubro de 2014

XXIII - AS ALMAS DO PURGATÓRIO

A causa das almas do Purgatório é por si mesmo recomendada a todos que têm fé e coração. Eu vos proponho a considerar antes o excesso das penas daquelas almas purgantes, depois a facilidade que vós tendes para liberá-las, enfim a utilidade que virá a vós do socorro a elas prestado.
1. Tormentosa prisão das almas padecentes
Eis abertas aos olhos da vossa piedosa consideração aquele cárcere tormentoso onde estão as almas dos nossos irmãos que passaram desta vida embora vestidos da veste nupcial da caridade e da graça, não porém ainda plenamente purificadas e dispostas para subir ao céu. Ó Deus que espetáculo de
terna compaixão! Imaginai qualquer prisão, a mais horrorosa, a mais obscura, a mais estreita; finalmente não haverá mais prisão de fogo neste mundo como existe para aquelas almas que estão se purificando. Quem pudesse manter vivo um dia inteiro um condenado dentro de uma fornalha acesa? Que pena se poderia igualar a este? Que direis, pois, daquelas almas que não por um dia, mas por meses, por anos, até por séculos são presas pela Justiça divina naquelas chamas? Ó justiça divina, quão pouco sois temida pelos homens! Ó grande Deus, porque Vós quase disfarçais nesta vida nossas culpas para dar-nos lugar de penitência, e sois um recompensador paciente e longânime, nós nos confiamos em aumentar diariamente as dívidas com a vossa terrível Justiça sem jamais pensar em
satisfazer as já contraídas; contentes por haver obtido no sacramento a remissão das culpas e da pena eterna, pouco nos cuidamos de que nos reste para descontar ainda grande parte da pena temporal; antes por suma negligência continuamos repetindo; porque nos livra do inferno, e nos dá segurança de ir ao Paraíso, se também depois da morte nos permaneceremos no Purgatório até que Deus queira,
nós nos contentamos. Ó preguiça! Ó insensibilidade!
2. - A nossa purificação se faz ou pela água ou pelo fogo
Se alguém nos propusesse de nos lavar ou com água ou com fogo, o que escolheríamos? Certamente com água. E enquanto Deus por sua misericórdia se satisfaz que nós nesta vida nos lavemos perfeitamente com a água das nossas lágrimas e de uma voluntária penitência, nós escolheremos todavia de sermos lavados com o fogo da sua Justiça? E se não podemos agüentar a pontinha de um
dedo por um breve quarto de hora sobre a ponta de uma lânguida chama doméstica, como poderemos aturar sem gravíssimos espasmos no fogo purificador da outra vida por semanas, meses, anos e mais ainda? Neste fogo se encontram agora mesmo em que estamos pensando tantas almas a nós ligadas pela fé, pela caridade e ainda pelo sangue. E não se presta atenção.
3. - A pena dos sentidos
Eis, portanto, como falam os Santos Doutores e os sereníssimos padres da Igreja daqueles tormentos.
S. Agostinho diz abertamente ser aquele fogo tão acerbo que supera toda pena que os homens no mundo jamais sentiram ou possam sofrer, e que a pena de todos os mártires e de todas as outras pessoas e criaturas são um nada em comparação com a pena do Purgatório (2); e que há tanta diferença entre o nosso fogo natural, e o Purgatório quanto existe entre o fogo na pintura e o fogo
verdadeiro. S. Cirilo acrescenta, que se todas as penas que se possam imaginar neste mundo e quanto mais tormentos e aflições se comparem com a menor pena que se sente no Purgatório, ficaríamos imediatamente aliviados. Por isso qualquer dos viventes, se conhecesse por experiência aquelas penas, preferiria ser atormentado ao mesmo tempo por todas as penas que todos os homens sofreram
de Adão até hoje sem conforto até o fim do mundo, antes que um só dia ser atormentado no Purgatório pela menor pena que lá se encontra. O próprio S. Gregório confirma, e assim escreve: "Eu julgo que aquele fogo transitório seja mais intolerável que todas as tribulações desta vida". E o Venerável Beda enfim conclui também ele com toda franqueza que a correção que se fará no Purgatório é muito mais grave que tudo mais que sofreram os condenados pela severa justiça dos homens, ou os santos mártires da bárbara crueldade dos tiranos, e de tudo mais de mais acerbo e desapiedado o homem possa imaginar.
4. - A pena da condenação
Contudo segundo aquilo que comumente sentem os Padres e Doutores, a pena da condenação que sofrem estas benditas almas no seu exílio do céu, supera de longe toda a pena do sentido, mesmo assim horríveis. O que dizeis então, irmãos? Não parece que a miséria extrema destas almas não mereça toda a vossa compaixão? Vós sois tão bem disposto por natureza, que se pela estrada chegasse a ver um jumento que caiu debaixo da carga, procura logo quem o ajude, ou senão correis vós mesmos para ajudá-lo. Agora vendo caído lá naquele fogo o vosso próximo, e gemendo sob o peso de tão excessiva tribulação, duvidarei eu que não vos esforceis para livrá-lo incontinente?
5. - Lamento das almas que estão se purificando
Assim pudesse eu fazer ouvir um só daqueles suspiros, um só daqueles gemidos com que estendem a vós suplicantes suas mãos, aquelas almas desconsoladas que confiam em vós e invocam o vosso socorro. É possível - dizem entre si - que tantos nossos amigos que deixemos vivos no mundo, e que
alastravam tanto zelo e tanto afeto por nós, esqueçam de nós justamente agora que temos mais necessidade? Possível - diz aquele pai - que meu filho seja tão ingrato, tão indiferente, que tenha sepultado minha memória juntamente com meus ossos? Porém prometeu no meu leito de morte que jamais se esqueceria de rezar por mim. Possível - diz aquela mãe - que a minha querida filha a quem tanto me recomendei, venha agora deixar-me sofrer ainda mais nestas chamas? Assim vai dizendo aquele marido; aquele irmão, aquela irmã, do outro irmão, da outra irmã; e levantam com piedosos gritos sua voz à semelhança de Jó: "Piedade de mim, piedade de mim, ao menos vós meus amigos". Ai tende piedade, compaixão de nossas penas, ó amigos viventes, "porque a mão do Senhor me atingiu" (Jó 19, 21); porque a mão do Senhor justíssimo nos atingiu com inenarráveis tormentos. Oh! vós desatais estes vínculos que nos mantém ligados a estes tormentos, e longe da nossa felicidade. Vós, diminuí ao menos o tempo desta nossa penosa demora, acelerai o nosso descanso, a nossa glória, vós que vivendo na terra podeis-merecer e expiar também por nós. Pois, para nós, já expirou junto com a vida o tempo do merecimento; a nós já chegou a noite quando "ninguém pode trabalhar" (Jo 9, 4). Toda nossa confiança está em vós. Está em vossas mãos o aliviar-nos destas penas, o abrir-nos as desejadas portas do Céu.
6 - Exemplos
Ah! Fiéis! Quem de vós terá coração tão duro que resista às orações compassivas destes míseros nossos irmãos? Mas talvez será tão difícil este alívio? Custar-nos-á muito sua libertação? Conta S. Gregório nos seus Diálogos sobre aquele padre de nome Santolo, e na verdade grande santo, que para libertar um diácono seu amigo da morte cruel que lhe preparavam os Longobardos, encontrou primeiro um meio de tornar-se ele próprio fiador por ele, e, portanto, fazê-lo fugir ficando ele assim exposto, por sua vez aos tormentos e à morte, se Deus com um manifesto milagre não o tivesse
tirado no momento (6). Foi este um ato do mais perfeito amor, tendo o próprio Cristo dito "ninguém tem maior amor do que aquele que dá sua vida por seus amigos" (Jo 15, 13). Devemos nós fazer a mesma coisa? Ah! Muito menos se requer de nós para libertar os nossos amigos do fogo acerbo do Purgatório. Leiamos ainda S. Paulino de Nola que resgatava com suma profusão de esmolas os escravos cristãos das ferozes cadeias dos Vândalos; e gasto todo o patrimônio e o que tinha no mundo nesta tão excelsa e excelente misericórdia, finalmente para libertar o filho daquela viúva vendeu-se ele mesmo como escravo. Teremos nós que perder a liberdade? Perder todos os nossos bens para tirar
as almas dos nossos irmãos daquela terrível prisão? Não. Todas as obras satisfatórias pelos defuntos podem reduzir-se a estes três: sacrifícios, esmolas, orações. Judas, o Macabeu, mandou a Jerusalém dez mil dracmas de prata para que fossem oferecidos sacrifícios de expiação para os soldados mortos na guerra. E a Sagrada Escritura louva esta ação com aquele famoso epifonema: "É santo e saudável rezar pelos defuntos para que sejam perdoados de seus pecados"(2 Mac 12, 46). Tanto dinheiro que se joga na jogatina, na gula, na vaidade se se aplicasse em tantas Missas, em tantas esmolas para alívio das almas do Purgatório, oh! quanto se tiraria daquelas angústias, a quantas se diminuiria suas penas! S. Gregório, no quarto livro do supracitado Diálogo, narra como tendo ele ordenado por trinta dias contínuos uma missa ao dia por alma do monge Justo falecido no seu mosteiro de S. André, foi depois revelado ao irmão do mesmo monge no trigésimo dia, justamente terminada a última Missa, ter sido sua alma, livre de toda pena, voado ao céu. E S. Bernardo refere de S. Malaquias que celebrando este por sua irmã cada vez diminuíam as penas, até que, finda toda a dívida foi admitida à glória.
7. - Sufrágios
O que, pois, nos pedem de pesado estes mortos, se nos pedem algumas missas, algumas esmolas? Na maioria das vezes não nos pedem nada de nosso, exigem somente os seus próprios. A solução daqueles legados piedosos confiados à nossa fé nos testamentos. Pedem às vezes pequena parte daquele muito que com tantos esforços conseguiram, e com tanta diligência conservaram para nós.
Dirá talvez alguém ser totalmente pobre? Nas quem te proíbe, irmão, de rezar pelos defuntos? A oração é a chave para abrir aquelas felizes portas do Paraíso não só a ti, mas também ao teu próximo. Reza, pois, suplica, esconjura pelo teu próximo, sofrendo no purgatório. Não se exige muito sacrifício, para rezar. Pode-se fazer em qualquer lugar, em qualquer hora, em qualquer circunstância. Não nos custará muito aplicar àquelas almas uma boa obra, uma comunhão, uma indulgência, recitar
algum Salmo, algum terço, elevar para eles de quando em quando, o nosso espírito a Deus. Quanta coisa boa tiraremos para nós mesmos!
8. - Vantagens espirituais em sufragar as almas
A própria ação que fazeis rezando pelos defuntos não vos merece imediatamente um aumento de graça e acréscimo de glória se sois justos? Este é de fato um ato de caridade e de misericórdia o mais excelente. Ouvi S. Agostinho: Um dos mais santos exercícios e um dos cuidados mais piedosos em que se pode o homem exercitar nesta vida, é oferecer sacrifícios, esmolas, e rezar pelos defuntos que estão no Purgatório, dos quais somos irmãos. Discorramos, se vos agradar, por cada uma das obras de misericórdia, coisa boa é alimentar os famintos, dar de beber aos sedentos, vestir os nus. Não será
maior merecimento alimentar aquelas almas justas famintas e em jejum, do pão dos  Anjos? Abrir-lhes com nossas orações a fonte de água viva da qual têm sede? Vesti-las e coroá-las de glória imortal? Grande merecimento hospedar os peregrinos, visitar os encarcerados, consolar os enfermos. Não será merecimento muito maior conduzir estas almas todas alegres e felizes para a casa do Senhor? Tirá-las de uma prisão de fogo? Confortar as aflitas e lânguidas de amor divino, mostrando-lhes a desejada face do seu Dileto. Se é assim também tão meritório sepultar os mortos; de quão mais excelso merecimento não será tirar aquelas almas daquela profunda fossa de cruéis tormentos e colocá-las em paz para repousar no seio de Deus? Devo dizer ainda mais: somente o pensamento que se forma em nossa mente de libertar, como movido ou seguido de uma piedosa vontade, é de um merecimento singular: "santo e salutar pensamento" diz de fato o próprio Espírito Santo. Julgai vós pois qual seja o lucro que faz aquele homem, aquela mulher de bem, que com suas, orações, com seus sacrifícios, com suas esmolas chega ao efeito de livrar mesmo uma só daquelas nobres prisioneiras. Ajuntai ao merecimento da ação a recompensa que renderão aquelas santas almas, ao seu benfeitor,
quando chegarem ao céu. ."Fazei o bem para o justo, e disso terás grande recompensa", diz o Espírito Santo (Eclo 13, 2). Que orações fervorosas não elevarão ao seu Altíssimo Senhor pela salvação daquele que acelerou-lhe a posse daquela glória! De quantos perigos não será ele preservado! De quantos eficazes auxílios e suaves confortos fornecido! Na hora da sua morte, naquela grande
jornada campal e decisiva, como será defendido! Naquela amarga agonia, como será consolado! Naquele tremendo juízo, como será patrocinado! Nem certamente permitirão que demore muito naquele fogo de purgação aquele por cujo intermédio foram elas mesmas tiradas antes do tempo. Mas lhe sairão ao encontro porfiando em apresentar-lhe suas mãos, e introduzi-lo e acolhê -lo nos eternos tabernáculos. Mas onde deixo a recompensa suma que conseguirão do próprio Deus os libertadores misericordiosos das suas filhas mais queridas? Deus de fato - que pela sua infinita justiça atormenta aquelas almas para purificá-las - pela sua infinita misericórdia porém as ama; procura subtraí-las de todo modo de sua vara de correção, e nada mais deseja que encontrar mediadores, intermediários que satisfaçam, que rezem, que esconjurem por elas. Não se pode mais impelir aquele coração de Pai tão amoroso, que acelerando a tantos exilados seus filhos a entrada em sua casa. Com que olhares de predileção, de amor, de complacência, não deve ele contemplar todos aqueles que se esforçam para cumprir os desejos mais ardentes de sua caridade!
9. - Vantagens temporais em sufragar as almas
Quereis agora que vos fale da utilidade temporal? Parece-me de fato supérfluo descer em pormenores aos menores e simples favores que se devem esperar da beneficentíssima mão do supremo Patrão, aqueles que empenharam o seu amoroso coração. Tenham certeza de não serem jamais abandonados em suas necessidades, esquecidos nas suas súplicas, não ouvidos nos seus desejos, aqueles homens piedosos e misericordiosos que com esta caridade usada com seus irmãos falecidos se foram afortunadamente tornando credores do seu Deus. "O que fizerdes a um dos meus mais pequeninos, a mim o fizestes" (Mt, 15, 40).
10. - Propósitos
Eia, pois, conclua cada um de nós com as palavras de São Bernardo: "levantarei em auxílio deles"; "sim, levantarei em auxílio daquelas almas; interpelarei com gemidos, implorarei com suspiros, intercederei com orações, satisfarei com o sacrifício singular, se assim me acontecer - como eu espero - de mover o coração de Deus e olhar suas aflições e a julgar propício em seu favor; a fim de que transforme o trabalho em repouso, a miséria em glória, os flagelos em coroa. De fato com estes
e semelhantes ofícios se pode aliviar sua miséria, terminar seu trabalho, tirar as penas". Assim seja.

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