XIX - A PUREZA
1. Eminência desta virtude
Todas as virtudes são belas; mas porém desta virtude de que falamos atribui-se por excelência o decoro e a beleza, como já escreveu S. Tomás . Eu vos apresento em primeiro lugar a consideração da eminência desta qualidade. Observai. O homem é um composto de duas substâncias, corpórea uma, a
outra espiritual. Está quase no meio dos Anjos, dos quais participa da inteligência, e entre os animais, com os quais tem em comum a vida animal, se o homem se eleva para operar com sua mente, é quase um Anjo; e se se abaixa para obedecer a concupiscência, que milita em seus membros, é quase uma fera. Por isso a Escritura falando do homem que abandona o sublime lugar a que tinha sido elevado vivendo segundo a razão e o espírito, para condescender com sua carne, assim se exprime: "O homem que não reconhece o estado de honra em que estava, foi comparado com os jumentos insensatos e torna-se quase um deles" (Sl 158,21).
2. Feiúra do vício contrário
Eis a luz diante das trevas. A luz faz quase mais tenebrosa as trevas, e as trevas mais luminosa a luz; porque melhor se conhece uma coisa pelo seu contrário. De fato jamais se conhecerá melhor, nem com maior evidência, a bela disposição do corpo humano, que depois de haver com hipóteses caprichosas revirado a ordem e derrubado a simetria. Se um homem colocasse a cabeça
embaixo dos pés, e os pés enxertasse no pescoço: que monstro horrível! Que deforme espetáculo seria ver uma coisa dessas! O homem dissoluto exibe justamente isto e ainda pior, não já em imaginação, mas na verdade. Pois ele tira a razão daquele lugar superior onde Deus há havia colocado para reger e dominar, e a atira debaixo dos pés fazendo-a servir às paixões; estas, pois, que nasceram para receber leis e freios, as substitui no lugar da cabeça para comandar e prevalecer. Que pode ser mais impróprio? E estas são as deformidades que caindo debaixo dos olhos a toda hora ocasionam riscos, zombarias e escárnio do vulgo ignorante, e ocasionam, nos mais sensatos, náuseas,
horror, despeito. Se se encontra sem em um espelho justo e verídico certos homens e certas mulheres que usam como objeto de pompa as suas confusões, e de glória suas ignomínias, sei bem eu que espantariam em reconhecer sua monstruosa aparência; e se mudariam em objeto de alta abominação o motivo de seus loucos delírios e vaidades.
3. - A pureza faz os homens semelhantes aos Anjos
Quanto mais bela é esta virtude que conserva a ordem e a dignidade do homem! Esta é que faz reconhecer altamente respeitosa a sua excelência, da qual falou já em sentido tão elevado o salmista voltado para Deus: "Senhor, vós fizeste o homem um pouco inferior aos Anjos". Esta é que lhe mantém aquela soberania sublime com que foi por Deus constituído sobre todas as criaturas visíveis. Próprio dele é - aquele augusto esplendor que, quase como glorioso diadema, distingue o seu principado, do qual: continua dizendo o mesmo salmista: "de glória e de honra o coroastes. Deste-lhes poder sobre as obras de vossas mãos. Vós lhe submetestes todo o universo" (Sl 8, 6, 8).
4. - A pureza faz que o homem seja templo de Deus
Dela vem que se reconheça a nobre imagem da Divindade impressa no
homem, podendo-se dizer: "Fazei brilhar sobre nós, Senhor, a luz de vossa face" (Sl 4, 7).
Por obra da pureza no coração do homem se edifica um templo vivo do Espírito santo; antes o próprio corpo do homem se torna instrumento de glória de Deus e mais ainda sua moradia e seu escabelo, segundo quer indicar S. Paulo, quando disse: "o vosso corpo é tempo do Espírito Santo, que habita em vós... Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo" (1Cor 6, 19-20).
Esta virtude é enfim que torna o homem gracioso diante de Deus, amigo - pela semelhança que se encontram aí - daqueles espíritos imateriais e celestes, querido aos homens, honrado e temido até mesmo pelos seus inimigos.
5. - A tranqüilidade e a paz de um corpo puro
Mas adiantemo-nos ainda mais para descobrir a íntima excelência de uma tão nobre virtude. Pois que a glória, o decoro, a beleza resulta quase externamente pela ordem que ela introduz no homem; mas a tranqüilidade, a paz, a alegria - que é também filha da mesma ordem - está assim no ânimo, que sem sair muito para fora, toda intimamente e por si só a goza. Para tornar patente uma alegria assim pura
mas oculta, não deve ser descuidado o confronto com seu doloroso contrário; enquanto, como bem reflete S. Agostinho, provado - ao menos por palavra - o mal da doença, se torna ainda mais evidente a alegria da saúde".
6. A desordem de um coração impuro
Dai-me um homem possuído pelo desregulado amor, e vereis a quantas fadigas, a quantas angústias, a quantas turbulências esteja sujeito o seu coração. O seu interior é quase como uma cidade em que tudo seja desordem, revolução, tumulto. As paixões, quase como uma facção sediciosa e turbulenta,
assaltam com ímpeto cego e furibundo a razão é a apertam de toda parte para usurparem um indébito violento principado. O espírito geme entre as correntes do seu mísero cativeiro, e a generosa índole da sua nativa grandeza o excita a reparar suas perdas e a voltar ao seu soberano estado. Acorrem logo todas as virtudes do ânimo para defender sua honra ultrajada; de outro lado as paixões rebeldes, tornadas mas ousadas pela vantagem que conseguiram nos primeiros embates, quase assalariando um infinito povo de afetos licenciosos e de desejos desenfreados, se preparam de modo sempre
tumultuado para sustentar-se. Acende-se já sobre o campo do coração uma luta cruel, tanto mais funesta quando mais pessoal e interior; tanto mais obstinada quanto duas potências externas ajudam com suas forças as partes adversárias. Deus com suas ilustrações não cessa de chamar a vontade a uma guerra animosa para colocar a boa ordem, e promete ainda socorros abundantes. Do outro lado o demônio emprega todas as suas artes para aumentar o fogo da divisão e manter a desordem. Combate-se de dia e de noite; tudo é confusão; tudo horror, tudo insídias, ansiedades, frêmitos de
raiva, clamores de ferocidade, gritos de desespero. Aquelas nobres virtudes que asseguravam o repouso do espírito, caem extintas ou moribundas ao feroz assalto do vício já predominante. Ó Deus que carnificina! Que devastação! O templo de Deus feito trono do pecado; daqui este tirano exercita seu prepotente domínio. Ele espolia o espírito das suas armas para tirar-lhe toda confiança de jamais liberar-se. Estas armas segundo o Apóstolo são a "luz" (Rm 13, 12); eis a alma cega por uma
escuridão espantosa, infernal, que lhe fecha todo caminho de onde possa esperar socorro. Eis a vontade lacerada por cruel remorso no braço de uma desesperada desolação.
7. - Felizes aqueles cuja vida é pura (Sl 118, 1)
De tão tétrica imagem voltemos o nosso pensamento horrorizado, para consolar-se na alegria de um ânimo casto e temperado. Aqui se vê a verificação daquela palavra do Salmo, que "o Senhor pôs a paz nos seus limites" (Sl 147, 3). De fato todos os sentidos mesmo exteriores, com sua modesta e virtuosa compostura, explicam fora e quase no ingresso deste reino interior, a tranqüilidade,
a segurança que aí mora. Assenta-se ali a vontade razoável quase como rainha, respeitável no aspecto, mas doce, à qual fazem corte amorosa mil afetos de cândida inocência e de ingênua
simplicidade. Vede ali em baixo as paixões que obsequiosas às suas leis, e ordenadas e dirigidas de baixo de forte custódia das virtudes, acrescem bem a glória de quem com tanta sabedoria as refreia e governa. Uma harmonia agradável e alegre, de todas as potências enche tudo de suavidade, de alegria, de júbilo. Não há inimigo que aqui se apresente para perturbar a calma, porque de longe é debelado e repelido. Uma luz muito fúlgida e serena - de que sempre reluz o céu superior da alma - a torna impenetrável às fraudes maliciosas e às obscuras traições. A segurança e o testemunho fiel da boa consciência, enriquecem os atos de glória e preparam um perpétuo banquete de sólida alegria ao coração; e a esperança certificada pela experiência de abundantes consolações que Deus fez chover como conforto, quase lhe abre a feliz porta do céu, para que possas ver lá colocada a sua coroa e como lugar de sua posse; e lhe atrai uma larga veia daquela imutável felicidade sobre a terra perfumosa e fecunda desta alma imaculada; segundo o que a tais almas o Salmista já disse caber a bem-aventurança ao menos principiada, mesmo em estado de caminho: "Felizes aquele cuja vida é pura."
8. - Exemplo de S. Luiz Gonzaga
O retrato desta virtude vós tendes diante dos olhos, quase vivo no original, em S. Luiz Gonzaga. Não é talvez verdade que o semblante deste angélico jovem é o próprio semblante da pureza?
Já me parece vê-lo este anjinho em carne mostrar-vos o seu belo semblante de Paraíso excessivamente alegre e sereno, e estendendo suas puras e virginais mãos, chamar-vos com doce convite a segui-lo. Se eu - parece que ele diz - entre as delícias mais lisonjeiras das cortes mais liberais e entre mais manifestos, soube conservar intacto o seu lírio; porque não podeis vós manter-vos puros, protegidos quase à sombra de uma condição privada? Eu era cingido da mesma carne que vós sois; escorria fervente o sangue nas minhas veias, e ao doce abril de meus dias floresciam frescos e vivazes meus membros; se eu conservando sempre uma castidade virginal sobrepujei a própria
natureza, porque vós não conservareis a castidade que exige o vosso estado particular? E se meus olhos se abstiveram sempre de boa vontade de olhar mesmo só de passagem belezas terrenas embora castas e inocentes, como não aceitarão vossos olhares um freio discreto que os suspenda, e as retire de fixar-se com muito livre malícia? E se o meu delicado corpo acolheu de tão bom grado um tormento tão rígido de penitências protetoras; como não agüentará o vosso corpo de boa vontade
as privações das crápulas glutonarias e das depravadas bebedeiras? Olhai esta tão numerosa multidão que me circunda de jovenzinhos inocentes, de virgens donzelas. Estes pois e estas puderam tão de perto, e podem ainda pisar os árduos rastos dos meus passos; e vós não podeis, ao menos de longe, seguir o agradável perfume, dos meus exemplos que se expande e se difunde tão amplo em
todo lugar? Assim vos fala, irmãos, este protótipo de inocência; e vós me respondeis aos seus convites? Talvez alguém dirá: Será verdade que São Luiz, e muitos outros que dele se aproximam com a imitação, puderam executar mesmo os mais árduos conselhos; quanto a mim, é impossível observar mesmo os simples preceitos. A proposição é muito absoluta; como tal já mereceu der reprovada pela Igreja com manifesta censura de heresia. É preciso limitá -la. Se me for melhor dito com o Sábio "que ninguém pode ser continente se Deus não o ajuda" (Sb 8, 21), eu o concedo; mas acrescento com as autorizadas palavras do Concílio de Trento, que "o homem deve fazer aquilo que pode e pedir o que não pode" (4). Nem mesmo os Santos puderam com suas forças, mas com o conforto da graça; a qual Deus "não nega a quem a pede retamente com a oração". Ele está sempre prontíssímo a dá-la para tornar-nos bem leve aquele peso e suave jugo da divina lei que unicamente às forças da nossa doentia natureza talvez parecesse estranho e até impossível.
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