7/21- VINTE E DUAS LUAS
Naquela tarde de domingo, março de 1854,
Dom Bosco reuniu todos os seus meninos do Oratório para narrar-lhes um sonho
muito importante.
"Parecia-me estar com vocês no
pátio - começou a dizer em meio a profundo silêncio - e gozava no meu coração
por ver que todos estavam alegres e contentes. Quem saltava, quem gritava, quem
corria. De repente vi um de vocês sair por uma porta e se pôr a passear no meio
dos companheiros com uma espécie de turbante na cabeça. Era um turbante
esquisito, todo iluminado por dentro, com uma grande lua desenhada, bem no meio
da qual estava escrito o número 22. Admirado, aproximei-me dele para convidá-lo
a tirar aquele enfeite carnavalesco. Na mesma hora, porém, escurece e, como se
o sino tivesse tocado, o pátio se esvazia e vejo todos os meninos em fila, sob
os pórticos. Pareciam amedrontados; dez ou doze tinham o resto estranhamente
pálido. Entre estes, mais pálido ainda, avisto aquele do turbante. Enquanto
olhava admirado para ele, percebi que alguma coisa lhe pendia os ombros: um véu
fúnebre. Ia ao seu encontro para indagar o que significava tudo aquilo, quando
uma mão me reteve. Vi em desconhecido de feições nobres e graves , que me
disse: "Ouça-me, antes de aproximá-lo; ele tem ainda 22 luas de tempo e,
antes que tenham passado, morrerá. Não o perca de vista e prepare-o!".
Queria pedir-lhe ainda alguma explicação, mas não mais pude vê-lo. Queridos
filhos, aquele jovem está no meio de vocês e eu o conheço…".
Um silencioso arrepio perpassou pela
assembléia: era a primeira vez que Dom Bosco anunciava em público - e com
estranha solenidade - a morte de algum deles. Dom Bosco percebe-o e quis
diminuir a violenta impressão: " Sim eu o conheço - prosseguiu - está
entre vocês aquele da lua. Mas não se assustem! É um sonho, com já disse, e nem
sempre se deve acreditar em sonhos… em todo o caso, foi Nosso Senhor que disse:
'Fiquem sempre preparados porque a morte vem de surpresa , como um ladrão', não
acham?'
Muitos meninos, abalados mudaram de
vida. Muitas vezes a interrogação se levantava diante deles: "E se fosse
eu?", deixando-os ansiosos. Os meninos tinham, entendido que cada lua
significava um mês e iam contando, com um misto de curiosidade e apreensão: -
Faltam quinze… treze… onze…
O ano de 1854 passou; veio o de 1855 e
chegou o mês de outubro: os meninos contavam: - É a vigésima lua… - Faltavam só
dois meses para o encontro marcado para a morte. Um jovem clérigo, Cagliero, no
qual Dom Bosco depositava toda confiança, estava encarregado de assistir três
dormitórios onde dormiam alguns dos seus companheiros, na antiga Casa Pinardi.
Entre eles havia certo Secondo Gurgo, natural de Biella, de 17 anos, um
rapagão. Tocava piano e órgão muito bem, estudava música afinco e ganhava um
bom dinheiro dando lições de piano e órgão na cidade.
Foi justamente em outubro que Dom Bosco
mandou chamar Cagliero:
- Onde está dormindo?
- No último quarto; de lá assisto os
outros dois.
- Não seria melhor que levasse sua cama
para o do meio?
- Como o senhor quiser. Apenas lhe faço
notar que do lugar onde estou agora posso muito bem assistir todos os meninos
dos três dormitórios.
- Sei - replicou Dom Bosco - mas prefiro
que passe para este quarto.
Cagliero pegou o seu colchão e trocou de
lugar. Mas não gostou do novo ambiente e voltou à carga, pedindo a Dom Bosco
para voltar ao quarto antigo. Dom Bosco ouviu-o mas não deixou e ainda lhe
disse:
- Fique quietinho onde está agora.
Passaram-se alguns dias e Cagliero foi
novamente chamado por Dom Bosco:
- Quantos são no novo quarto?
- Somos três: eu, Gurgo e Gavoraglia.
Contando como piano, somos quatro…
- Muito bem , os três são apaixonados
por música e Gurgo poderá dar-lhes lições de piano. Quanto a você, veja de
assisti-lo bem.
Olhou-o intensamente , fixando-o nos
olhos, e nada mais acrescentou. Cagliero ficou cismado e fez a Dom Bosco
algumas perguntas sobre a 20ª lua. Mas Dom Bosco corou logo a conversa,
dizendo-lhe:
- O porquê, você saberá no momento
oportuno.
Nos primeiros dias de dezembro não havia
ninguém doente no Oratório. Uma noite, depois das orações, Dom Bosco anunciou
que um dos presentes morreria antes da festa do Natal. Aproximava-se o fim
das 22 luas e a nova predição vinha apenas confirmar e precedente, feita a
cerca de dois anos antes.
Dom Bosco chamou novamente Cagliero.
Perguntou-lhe se Gurgo se comportava bem, se voltava logo para a casa quando
terminava suas lições na cidade Cagliero
assegurou-lhe que tudo ia otimamente.
- Muito bem - disse Dom Bosco - continue
a vigiar e, se acontecer algo, avise-me logo. - Não acrescentou mais nada.
Chegou-se assim ao dia 15 de dezembro,
quando Gurgo foi acometido por violentas cólicas. A crise foi tão forte que o
médico considerou-o em perigo de vida. Foram administrados os últimos
sacramentos e foi chamado com urgência o pai. Os cuidados do médico,
entretanto, depois de oito dias de real perigo, conseguiram arrancar o jovem à
morte. Gurgo melhorou, pôde até levantar-se; entrou em convalescença. O mal
fora conjurado e o médico dizia o jovem que tinha escapado de uma boa. Todavia
o pai pediu a Dom Bosco para levar o filho para casa, a fim de se restabelecer
mais depressa. Era Domingo, 23 de dezembro, e no dia seguinte Gurgo deveria
partir do Oratório.
Entre os meninos a expectativa era
enorme: dentro de dois dias era Natal… E a profecia de Dom Bosco?
Na tarde daquele Domingo Gurgo quis
comer carne. O pai, querendo satisfazer o filho, foi logo comprá-la. A que
encontrou estava mal assada, mas o menino comeu-a assim mesmo.
Chegou a noite. O pai havia se retirado.
No quarto do convalescente estavam o enfermeiro e Cagliero.
Improvisamente o jovem despertou com
fortíssimas dores no ventre. O mal tinha voltado com extrema violência. Gurgo
chamou seu assistente:
- Cagliero, Cagliero! Acabou-se… Não vou
mais poder dar lições de piano a você…
- Coragem, Gurgo - retrucou Cagliero -
isso também vai passar.
- Não, desta vez, acabou-se… Já não vou
mais para casa… Reze por mim… Se soubesse que dores… reze a Nossa Senhora…
Entretanto o enfermeiro tinha ido chamar
Dom Bosco que dormia num quarto vizinho. Este apressou-se em ir junto do jovem,
presa de violentos espasmos. Poucos instantes depois, Gurgo morreria.
Uma profunda tristeza desceu sobre a
casa naquela vigília de Natal. As duas predições de Dom Bosco ocupavam todas as
conversas dos meninos.
Poucas horas antes que tivesse início a
missa do galo, Dom Bosco subiu os degraus da cátedra e passeou os olhos
entristecidos pelo ambiente, como se quisesse enfaixar com seu amor de pai a
ferida aberta no coração dos filhos. Começou a falar baixo, acalorado:
- É o primeiro jovem - disse - que morre
no Oratório. Fez bem o que tinha de fazer e esperamos que esteja no céu… Mas
recomendo a todos vocês, queridos filhos, que estejam sempre preparados…
Um soluço cortou-lhe a palavra nos
lábios. Nada mais pôde dizer. Desceu da cátedra no meio do silêncio que sobre todos
pesava.
De longe chegavam, rompendo a neblina,
os sons festivos da noite de Natal.
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