10 de fevereiro de 2012

O Amor das Almas, S. Afonso de Ligório. CAPÍTULO XV.

Do amor do Eterno Pai em ter-nos dado o seu Filho

1. Sic Deus dilexit mundum, ut Filium suum unigenitum daret (Io. III, 16). A tal ponto, disse Jesus Cristo, Deus amou o mundo, que lhe deu o seu próprio e único Filho. Três coisas devemos considerar neste dom: quem é aquele que dá, o que dá e com que amor o dá. Já se sabe que, quanto mais nobre é o doador, tanto mais estimável é o dom. Se alguém recebe uma flor de um monarca, estimá-la-á mais do que a um tesouro. Ora, quanto devemos nós estimar este dom, que nos vem das mãos de um Deus? E o que nos deu? O seu próprio Filho. O amor deste Deus não se contentou em nos ter dado tantos bens nesta terra, senão quando chegou a dar-se todo na pessoa do Verbo encarnado: Non servum, non angelum, sed Filium suum donavit, diz S. Jo. Crisóstomo [1]. Por isso exclama a santa Igreja: O mira circa nos tuae pietatis dignatio! O inaestimabilis dilectio caritatis! Ut servum redimeres, Filium tradidisti (Exult. in sabb. s.) [2].
Ó Deus infinito, como pudestes dignar-vos a usar conosco uma piedade tão admirável? Quem poderá entender tamanho excesso, que vós, para resgatar o escravo, tenhais querido dar-nos o vosso único Filho? Ah, meu benigníssimo Senhor, já que me destes o melhor que tendes, é razoável que eu vos dê o mais que eu posso. Vós desejais de mim o meu amor: eu não desejo de vós outra coisa senão o vosso amor. Eis o meu mísero coração, todo o consagro a amar-vos. Saí vós, criaturas, do meu coração, dai lugar ao meu Deus, que merece e quer possuí-lo todo, e sem companhia. Amo-vos, ó Deus de amor, amo-vos sobre todas as coisas; e só a vós quero amar, meu Criador, meu tesouro, meu tudo.
2. Deus nos deu o Filho, e por quê? Só por amor. Pilatos, por temor humano, deu Jesus aos judeus: Tradidit voluntati eorum (Luc. XXIII, 25). Mas o Eterno Pai nos deu o seu Filho pelo amor que nos teve: Pro nobis omnibus tradidit illum (Rom. VIII, 32). Diz S. Tomás, que Amor habet rationem primi doni (p. III, q. 38, a. 2) [3]. Quando se nos faz um dom, o primeiro dom que recebemos é do amor que o doador nos oferece naquela coisa que doa; porque, reflete o Angélico, a única razão de todo dom gratuito é o amor [4]; de outro modo, quando se dá por outro fim que o de puro afeto, o dom perde a razão de verdadeiro dom. O dom que nos fez o Eterno Pai do seu Filho foi verdadeiro dom, todo gratuito e sem nenhum mérito nosso; por isso se diz que a Encarnação do Verbo foi feita por obra do Espírito Santo, isto é, só por amor, como fala o mesmo santo Doutor: Ex maximo Dei amore provenit, ut Filius Dei carnem sibi assumeret (III p. q. 32, a. 1) [5].
Mas não apenas por puro amor Deus nos deu este seu Filho, mas no-lo deu com amor imenso. Isso mesmo é o que quer dizer Jesus, falando: Sic Deus dilexit mundum. A palavra sic, diz S. Jo. Crisóstomo, significa a grandeza do amor com que Deus nos fez este grande dom: Verbum sic significat amoris vehementiam [6]. E que amor maior podia um Deus demonstrar-nos, do que condenando à morte o seu Filho inocente para salvar-nos a nós, miseráveis pecadores? Qui proprio Filio suo non pepercit, sed pro nobis omnibus tradidit illum (Rom. VIII, 32). Se o Eterno Pai fosse capaz de padecer, que pena teria provado, quando se viu induzido pela sua justiça a condenar aquele Filho, tão amado quanto si mesmo, a morrer de uma morte tão cruel, entre tantas ignomínias? Et Dominus voluit conterere eum in infirmitate (Is. LIII, 10): Ele quis fazê-lo morrer consumido por tormentos e dores, disse Isaías.
Imaginai, pois, o Eterno Pai com Jesus morto nos braços, dizendo-nos: Homens, este é o meu amado Filho, no qual encontro todas as minhas complacências: Hic est Filius meus dilectus, in quo mihi bene complacui (Matth. XVII, 5). Eis como o quis ver maltratado pelos vossos crimes: Propter scelus populi mei percussi eum (Is. LIII, 8). Eis como o condenei à morte sobre esta cruz, aflito, abandonado até por mim, que tanto o amo. Isto eu fiz a fim de que vós me ameis.
Ó bondade infinita! Ó misericórdia infinita! Ó amor infinito! Ó Deus da minha alma, já que quisestes que morresse por mim o objeto mais caro do vosso coração, eu vos ofereço por mim o grande sacrifício que vos fez de si mesmo este vosso Filho; e, pelos seus méritos, peço-vos que me deis o perdão dos pecados, o vosso amor, o vosso paraíso. Grandes são estas graças que vos peço, mais maior é a grande oferta que vos apresento. Pelo amor de Jesus Cristo, meu Pai, perdoai-me e salvai-me. Se vos ofendi no passado, arrependo-me disso sobre todos os males. Agora eu vos estimo e amo sobre todos os bens.
3. Ah, quem, senão um Deus de infinito amor, poderia amar-nos até este ponto? Escreve S. Paulo: Deus autem, qui dives est in misericordia, propter nimiam caritatem qua dilexit nos, cum essemus mortui peccatis, convivificavit nos in Christo (Eph. II, 4, 5). Muito é esse amor, diz o Apóstolo, que nos demonstrou Deus, dando aos homens, por meio da morte do Filho, a vida da graça, por esses perdida pelos seus pecados. Mas esse amor não foi excessivo para Deus, que é o próprio amor: Deus caritas est (I Io. IV, 16). Diz S. João que, assim, quis ele fazer-nos ver onde chegava a grandeza do amor de um Deus para conosco, mandando o seu Filho ao mundo para obter-nos com a sua morte o perdão e a vida eterna: In hoc apparuit caritas Dei in nobis, quoniam Filium suum unigenitum misit Deus in mundum, ut vivamus per eum (Ibid., 9).
Estávamos mortos, pela culpa, para a vida da graça, e Jesus, com a sua morte, nos deu de novo a vida. Éramos miseráveis, deformados e abomináveis; mas Deus, por meio de Jesus Cristo, tornou-nos graciosos e caros aos seus divinos olhos: Gratificavit nos, escreveu o Apóstolo, in dilecto Filio suo (Eph. I, 6). Gratificavit, isto é, gratiosos nos fecit, diz o texto grego. Por isso, S. Jo. Crisóstomo ajunta que, se houvesse um pobre leproso todo lacerado e deformado, e alguém lhe curasse o corpo da lepra, e, além disso, o tornasse belo e roço, que obrigação ele não conservaria a este seu benfeitor? [7] Ora, quanto mais somos nós obrigados a Deus, pois que, sendo as nossas almas deformes e odiosas pelas culpas cometidas, ele, por meio de Jesus Cristo, não só as livrou dos pecados, mas ainda as tornou belas e amáveis? Benedixit nos, in omni benedictione spirituali in caelestibus in Christo (Eph. I, 3). Comenta Cornélio de Lápide: Benefecit nobis omni dono spirituali [8]. Abençoar, para Deus, é fazer o bem; o Eterno Pai, portanto, dando-nos Jesus Cristo, nos cumulou de todos os dons, não já terrenos no corpo, mas espirituais na alma. In caelestibus, dando-nos, com o Filho, uma vida celestial neste mundo, e uma celestial glória no outro.
Abençoai-me, pois, e fazei-me bem, ó amantíssimo Deus, e o benefício seja atrair-me todo ao vosso amor: Trahe me vinculis amoris tui [9]. Fazei que o amor que me tivestes me enamore da vossa bondade. Vós mereceis um amor infinito; eu vos amo com o amor que posso, amo-vos sobre todas as coisas, amo-vos mais do que a mim mesmo. Dou-vos toda a minha vontade; e esta é a graça que vos peço: fazei-me, de hoje em diante, viver e operar tudo segundo a vossa divina vontade, com a qual vós não quereis outra coisa além do meu bem e da minha eterna salvação.
4. Introduxit me rex in cellam vinariam, ordinavit in me caritatem (Cant. II, 4). O meu Senhor, diz a sagrada Esposa, me introduziu na cela do vinho, isto é, pôs-me ante os olhos todos os benefícios que me fez para induzir-me a amá-lo: Ordinavit in me caritatem. Diz um autor que Deus, afim de conquistar para si o nosso amor, mandou contra nós, por assim dizer, um exército de graças e de amor: Instruxit contra me caritatem tamquam exercitum (Gasp. Sanchez) [10]. Mas dar-nos Jesus Cristo, diz o cardeal Hugon, foi a seta reservada predita por Isaías: Posuit me sicut sagittam electam, in pharetra sua abscondit me (Is. XLIX, 2). Assim como o caçador, diz Hugon, reserva a melhor seta para o último golpe para matar a fera, assim Deus, entre todos os seus benefícios, reservou Jesus, até que veio o tempo da graça, e então o mandou, como último golpe, a ferir de amor os corações dos homens: Sagitta electa reservatur; ita Christus reservatus est in sinu Patris, donec veniret plenitudo temporis, et tunc missus est ad vulneranda corda fidelium [11]. Ferido por esta seta, diz S. Jo. Crisóstomo (Hom. de Turt.), dizia S. Pedro ao seu Mestre: Senhor, vós bem sabeis que eu vos amo: Domine, tu scis quia amo te (Io. XXI, 15) [12].
Ah, meu Deus, eu me vejo cercado de todas as partes pelas finezas do vosso amor. Também eu vos amo, e, se vos amo, sei que também vós me amais. Mas quem me poderá privar do vosso amor? Só o pecado. Mas, deste monstro do inferno, vós, pela vossa misericórdia, me haveis de livrar. Eu me contento com todo mal, com a morte mais cruel, e até com ser destruído antes que ofender-vos com o pecado mortal. Mas vós já conheceis as minhas quedas passadas, conheceis a minha fraqueza; ajudai-me, meu Deus, por amor de Jesus Cristo. Opus manuum tuarum ne despicias (Ps. CXXXVII, 8) [13]: Sou obra das vossas mãos, vós me criastes, não me desprezeis. Se mereço ser abandonado pelas minhas culpas, mereço, porém, que tenhais misericórdia de mim por amor de Jesus Cristo, que vos sacrificou a vida pela minha salvação. Eu vos ofereço os seus méritos, que são todos meus; e, por eles, peço-vos e espero de vós a santa perseverança com uma boa morte, e, até lá, a graça de viver a vida que me resta toda para a vossa glória. Basta o quanto vos ofendi; agora me arrependo de todo o coração, e quero amar-vos o quanto posso. Não quero mais resistir ao vosso amor: todo a vós me rendo. Dai-me a vossa graça e o vosso amor, e fazei de mim o que quiserdes. Meu Deus, eu vos amo, e quero e peço que eu sempre vos ame. Atendei-me pelos méritos de Jesus Cristo.
Minha Mãe Maria, rogai a Deus por mim. Amém, assim seja.


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Notas:

[1]: “His enim verbis, Sic dilexit, et Deus mundum, ingens amor significatur.... Et quae postea sequuntur perinde vehementia sunt; ait enim: Ut Filium suum unigenitum daret; non servum, non angelum, non archangelum ait.” S. Io. CHRYSOSTOMUS, In Ioannem, hom. 27 (al. 26), n. 2. MG 59-159, 160.

[2]: In officio Sabbati Sancti, ad benedictionem Cerei.

[3]: “Amor habet rationem primi doni, per quod omnia dona gratuita donantur.” S. THOMAS, Summa Theol., I, qu. 38, art. 2, c.

[4]: “Donum proprie est dati irredibilis, secundum Philosophum (Topic. lib. 4, cap. 4, n. 12), id est quod non datur intentione retributionis: et sic importat gratuitam donationem. Ratio autem gratuitae donationis est amor; ideo enim damus gratis alicui aliquid, quia volumus ei bonum. Primum ergo quod damus ei, est amor quo volumus ei bonum. ” S. THOMAS, ibid.

[5]: “Conceptionem corporis Christi tota Trinitas est operata: attribuitur tamen hoc Spiritui Sancto, triplici ratione. Primo quidem quia hoc congruit causae Incarnationis quae consideratur ex parte Dei. Spiritus enim Sanctus est amor Patris et Filii... Hoc autem ex macimo Dei amore provenit, ut Filius Dei carnem sibi assumeret in utero virginali.” S. THOMAS, Sum. Theol., III, qu. 32, art. 1, c.

[6]: “Illud verbum, Sic dilexit, et illud, Deus mundum, immensam amoris significant vehementiam.” S. Io. CHRYSOSTOMUS, In Ioannem, hom. 26: Opera, III, Venetiis, 1574. - In Ioannem, hom. 27 (al. 26), n. 2. MG 59-159.

[7]: “Non dixit.... gratis donavit, sed.... gratos fecit: hoc est, non solum liberavit a peccatis, sed etiam fecit amabiles. Quemadmodum enim si quis scabiosum et peste ac morbo senioque et paupertate ac fame confectum et perditum, statim formosum fecerit iuvenem, omnes homines pulchritudine vincentem, e genis quidem splendorem valde emittentem, et micantium oculorumei aculationibus solis fulgores occultantem: deinde eum constituerit in ipso fiore aetatis, et postea eum purpura induerit et diadema imposuerit, et omni regio ornatu decorarit: ita nostram instruxit et ornavit animam, pulchramque fecit, desiderabilem et amabilem. Cupiunt enim angeli talem aspicere animam, archangeli quoque et omnes aliae Virtutes. Ita nos etiam fecit gratiosissimos, et sibi desiderabiles. Concupiscet enim, inquit, Rex speciem tuam (Ps. XLIV, 12).” S. Io. CHRYSOSTOMUS, In Epistolam ad Ephesios, hom. 1, n. 3. MG 62-14.

[8]: “Qui benedixit nos, id est, qui beneficit nobis.... omni benedictione, id est, omni bono, beneficio et dono, non terreno, ut sunt honores, opes, forma, robur, voluptates: has enim non venit ocnferre nobis Christus; sed spirituali.” CORNELIUS A LAPIDE, Commentaria in Epistolam ad Ephesios, in cap. I, 3.

[9]: Alusão a Os. XI, 4: In funiculis Adam traham eos, in vinculis caritatis.

[10]: “Et ordinavit in me caritatem. Adhuc perseverat sponsa reddere rationem cur non potuerit non amori succumbere. Nam talis sponsi officiis et blandimentis, aut eius voluntati, infiammatae pariter atque infiammanti, non obsequi, eius esset qui non officii modo curam, sed etiam humanitatem prorsus ac mentem exuisset. Id vero optime explicatur his verbis: ordinavit in me caritatem. Quod ut intelligatur magis, observandum est, omnium fere consensu hic metaphoram esse militarem: est eim, pro ordinavit, hebraice Diglo alai, id est: vexillum eius super me caritas, id est, instruxit contra me caritatem tamquam aciem. Sumitur autem hic vel pars pro toto, vel signum pro re significata, vexillum nempe pro exercitu.” Gaspar SANCHEZ, Centumputeolanus, S. I., Comment. in Canticum Canticorum (in cap. II, 4, n. 19), Lugduni, 1616, pag. 93.

[11]: “Et posuit me sicut sagittam electam: quasi sicut sagittarius optimas sagittas abscondit, donec tempus veniat extrahendi.... (Mystice de Christo: nota marginalis): Sagitta electa reservatur usquedum necesse sit; ita Christus quasi reservatus est in sinu Patris, donec venit plenitudo temporis, ut dicitur Gal. IV, 4. Et tunc missus est ad vulnerandum corda fidelium promissione bonorum et comminatione poenarum.” HUGO A SANCTO CHARO, O. P. Cardinalis primus, Postilla super Isaiam, in cap. XLIX, 2, gol. 110, col. 3. Opera, Venetiis, 1703.

[12]: “Ista sagitta vulneratus Petrus dicebat Christo: Domine, tu nosti quia diligo te.” Sermo (d' ignoto autore) de turture seu de Ecclesia. Inter Opera S. Io. Chrysostomi, MG 55-600.

[13]: Opera manuum tuarum ne despicias. Ps. CXXXVII, 8.

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