2 de fevereiro de 2012

O Amor das Almas, S. Afonso de Ligório. CAPÍTULO XI.

Da condenação de Jesus Cristo e sua viagem ao Calvário.

1. Seguia Pilatos escusando-se com os judeus que não podia condenar à morte aquele inocente; mas aqueles o aterrorizaram dizendo-lhe: Si hunc dimittis, non es amicus Caesaris (Io. XIX, 12). Por isso, o miserável juiz, cegado pelo temor de perder a graça de César, depois de ter conhecido e declarado Jesus Cristo tantas vezes inocente, finalmente o condenou a morrer crucificado.
Tunc ergo tradidit eis illum, ut crucifigeretur (Io. XIX, 16).
Ó meu amado Redentor, aqui chora S. Bernardo, e qual crime cometestes, que tenhais que ser condenado à morte, e morte de cruz? Quid fecisti, innocentissime Salvator, ut sic iudicareris? Quid commisisti? Mas bem compreendo, responde o santo, a causa da vossa morte: entendo o pecado que cometestes. Peccatum tuum est amor tuus [1]: o vosso crime é o muito amor que tivestes para com os homens; é este, e não Pilatos, que vos condena à morte. Não que não vejo, ajunta S. Boaventura, outra justa razão da vossa morte, ó meu Jesus, senão o afeto excessivo que por nós tendes: Non vídeo causam mortis, nisi superabundantiam caritatis [2]. Ah, que um tal excesso de amor, replica S. Bernardo, por demais nos constrange, ó enamorado Senhor, a consagrar-vos todos os afetos dos nossos corações: Talis amor amorem nostrum omnino sibi vindicat [3].
Ó meu caro Salvador, só o entender que vós me amais deveria fazer-me viver esquecido de qualquer outra coisa, para preocupar-me somente com amar-vos e contentar-vos em tudo. Fortis... ut mors dilectio (Cant. VIII, 6). Se o amor é forte como a morte, pelos vossos méritos, meu Senhor, dai-me um tal amor a vós que me faça abominar todas as afeições terrenas! Fazei-me compreender bem que todo o meu bem consiste em agradar-vos, ó Deus todo bondade e todo amor. Maldigo aquele tempo em que não vos amei. Agradeço-vos por me dardes tempo de amar-vos. Amo-vos, meu Jesus infinitamente amável e infinitamente amante; amo-vos com tudo o que sou, e prometo-vos que quero antes mil vezes morrer que tornar a deixar de amar-vos.
2. Lê-se a iníqua sentença de morte ao condenado Jesus; ele a escuta e, humildemente, aceita-a. Não reclama da injustiça do juiz, não apela a César como fez S. Paulo: mas, todo manso e resignado, submete-se ao decreto do Eterno Pai, que o condena à cruz pelos nossos pecados. Humiliavit semetipsum, factus obediens usque ad mortem, mortem autem crucis (Philip. II, 8). E pelo amor que tem aos homens, contenta-se em morrer por nós: Dilexit nos, et tradidit semetipsum pro nobis (Eph. V, 2).
Ó meu piedoso Salvador, quanto vos agradeço! Quanto vos sou obrigado! Desejo, meu Jesus, morrer por vós, já que vós com tanto amor aceitastes a morte por mim. Mas, se não me é concedido dar-vos o meu sangue e a vida por mão de carnífice, como fizeram os mártires, aceito ao menos com resignação aquela morte que me espera; e aceito-a no modo e no tempo que a vós comprazer. Desde agora vo-la ofereço em honra da vossa majestade e em reparação dos meus pecados: e, pelos méritos da vossa morte, peço-vos me concedais a sorte de morrer amando-vos e na vossa graça.
3. Pilatos entrega o inocente Cordeiro nas mãos daqueles lobos, para fazerem o que querem: Iesum vero tradidit voluntati eorum (Luc. XXIII, 25). Os ministros o agarram com fúria, tiram-lhe aquele trapo de púrpura colocado pelos judeus, e colocam-lhe de volta as suas vestes: Exuerunt eum chlamyde, et induerunt eum vestimentis eius, et duxerunt eum, ut crucifigerent (Matth. XXVII, 31). E isso fizeram, diz S. Ambrósio, a fim de que Jesus fosse reconhecido ao menos pelas vestes, pois a sua bela face estava tão deformada pelo sangue e pelas feridas que, sem as suas vestes, dificilmente teria sido possível reconhecê-lo: Induunt eum vestibus, quo melius ab omnibus cognosceretur: quia cum facies eius esset cruentata et deformata, non poterat facile ab omnibus agnosci [4]. Então tomaram duas toras brutas e compuseram logo a cruz, com quinze pés de comprimento, como refere S. Boaventura [5] com S. Anselmo [6], e a impuseram sobre os ombros do Redentor.
Mas não esperou Jesus, diz S. Tomás de Vilanova, que a cruz lhe fosse imposta pelo carnífice, ele mesmo estendeu as mãos, tomou-a avidamente e se a pôs sobre os ombros chagados: Non exspectavit ut imponeretur sibi a milite, sed laetus arripuit (Conc. III, de uno M.) [7]. Vem, disse então, vem, minha querida cruz; eu há trinta e três anos, suspiro por ti e venho-te procurando; eu te abraço, te aperto ao meu coração, enquanto és o altar no qual quero sacrificar a minha vida por amor das minhas ovelhinhas.
Ah, meu Senhor, como pudestes fazer tanto bem a quem vos fez tanto mal? Ó Deus, quando penso que chegastes a morrer à força de tormentos para obter-me a divina amizade, e que eu tantas vezes, depois, a perdi voluntariamente por minha culpa, queria morrer de dor! Quantas vezes vós me perdoastes e eu tornei a ofender-vos? Como poderia eu esperar perdão, se não soubesse que vós morrestes para perdoar-me? Por esta vossa morte, pois, espero o perdão e a perseverança no vosso amor. - Arrependo-me, meu Redentor, de vos ter ofendido. Pelos vossos méritos, perdoai-me, que eu vos prometo não mais vos dar desgosto. Eu estimo e amo mais a vossa amizade que todos os bens do mundo. Não permitais que eu torne a perder-vos: dai-me, ó Senhor, todo castigo antes que isso. Meu Jesus, não quero mais vos perder, não; quero antes perder a vida; quero amar-vos sempre.
4. Saem os agentes da justiça com os condenados, e entre estes vai também à morte o rei do céu, o Unigênito de Deus carregado da cruz: Et baiulans sibi crucem exivit in eum qui dicitur Calvariae locum (Io. XIX, 17). Saí também vós do paraíso, bem-aventurados serafins, e vinde acompanhar o vosso Senhor, que vai ao Calvário para ser aí condenado junto com malfeitores sobre um patíbulo infame.
Ó espetáculo horrendo! Um Deus condenado! Eis aquele Messias que poucos dias antes fora aclamado como Salvador do mundo, e recebido pelo povo com aplausos e bênçãos, gritando: Hosanna filio David, benedictus qui venit in nomine Domini (Matth. XXI, 9); e depois vê-lo ser amarrado, zombado e maldito por todos, com uma cruz nas costas, morrendo como patife! Ó excesso do amor divino! Um Deus condenado pelos homens! E se encontrará quem não ame este Deus! Ó meu eterno amante, eu tarde começo a amar-vos: fazei que, na vida que me resta, eu compense o tempo perdido. Já se que tudo o que eu fizer é pouco diante do amor que me tivestes; mas ao menos quero amar-vos com todo o meu coração. Muito vos seria injurioso se, depois de tantas finezas, o meu coração se dividisse, e desse uma parte de si a qualquer objeto fora de vós. Eu vos consagro, de hoje em diante, toda a minha vida, a minha vontade, a minha liberdade: disponde de mim como vos aprouver. Peço-vos o paraíso para amar-vos lá com todas as minhas forças. Quero amar-vos muito nesta vida, para amar-vos muito na eternidade. Socorrei-me com a vossa graça: pelos vossos méritos, peço-a e a espero.
5. Imagina, minha alma, que te encontras vendo Jesus que passa naquela dolorosa viagem. Assim como um cordeiro é levado ao matadouro, assim o amante Redentor é conduzido à morte: Sicut ovis ad occisionem ducetur (Is. LII, 7). Está ele assim tão dessangrado e cansado pelos tormentos, que mal pode ficar em pé pela fraqueza. Olha-o todo em feridas, com aquele ramo de espinhos sobre a cabeça, com aquele pesado lenho sobre as costas, e com um daqueles ministros que o puxa com uma corda. Vê-o como vai com o corpo curvado, com os joelhos vacilantes, escorrendo sangue; e caminha com tanta pena que parece que, a cada passo, expira a alma.
Pergunta-lhe: Ó Cordeiro divino, não estais ainda saciado de dores? Se pretendeis com elas conquistar o meu amor, cessai de padecer, que eu quero amar-vos como desejais!
Não, ele te diz, não estou ainda contente; estarei contente apenas quando me verei morto por teu amor. - E, então, onde vais, ó meu Jesus? - Vou, responde, morrer por ti.
Não me impeças. Só isso te peço e te ordeno: Quando me vires morto sobre a cruz por ti, lembra-te do amor que te tive; lembra dele, e ama-me.
Ó meu agonizante Senhor, quão caro vos custou fazer-me compreender o amor que tivestes por mim! Mas que lucro podia dar-vos o meu amor, que, para comprá-lo, quisestes dar o sangue e a vida? E como eu, então, preso por tanto amor, pude viver tanto tempo sem amar-vos, esquecido do vosso afeto? Agradeço-vos por me terdes agora dado luz para me fazer conhecer com quanto amor me amastes. Amo-vos, bondade infinita, sobre todo bem. Gostaria de sacrificar-vos mil vidas, se pudesse, já que quisestes sacrificar a vossa vida divina por mim. Concedei-me aqueles auxílios para amar-vos, que merecestes para mim com tantas penas! Dai-me aquele santo fogo que viestes acender na terra morrendo por nós. Lembrai-me sempre da vossa morte, a fim de que eu nunca mais me esqueça de amar-vos.
6. Factus est principatus eius super humerum eius (Is. IX, 6). A própria cruz, diz Tertuliano, foi o nobre instrumento com o qual Jesus Cristo comprou tantas almas [9]. Sim, porque, morrendo nela, pagou a pena dos nossos pecados, e assim nos resgatou do inferno e nos fez seus: Qui peccata nostra ipse pertulit in corpore suo super lignum (I Petr. II, 24). - Então, ó meu Jesus, se Deus vos carregou de todos os pecados dos homens - Posuit Dominus in eo iniquitatem omnium nostrum (Is. LIII, 6) - eu, com os meus pecados, tornei mais pesada a cruz que carregavas ao Calvário.
Ah, meu dulcíssimo Salvador, já víeis todas as injúrias que eu haveria de fazer-vos, e, apesar disso, não deixastes de amar-me e de preparar-me tantas misericórdias, que depois usastes comigo. Se, pois, a vós fui eu tão caro, eu, vilíssimo e ingrato pecador que tanto vos ofendi, é justo que também vós sejais caro a mim, vós, meu Deus, beleza e bondade infinita, que tanto me amastes. Ah, que eu não vos tivesse nunca vos dado desgosto! Agora conheço, meu Jesus, o erro que vos fiz. Ó meus malditos pecados, que fizestes? Vós me fizestes amargurar o Coração enamorado do meu Redentor, Coração que tanto me amou. Meu Jesus, perdoai-me, que eu me arrependo de ter-vos desprezado! De agora em diante, vós haveis de ser o único objeto do meu amor. Amo-vos, ó amável infinito, com todo o meu coração, e decido-me a não amar outra coisa fora de vós. Senhor, perdoai-me e dai-me o vosso amor, e nada mais vos peço: Amorem tui solum, digo com S. Inácio, cum gratia tua mihi dones, et dives sum satis [10].
7. Si quis vult post me venire, abneget semetipsum... et sequatur me (Matth. XVI, 24). Já que, ó meu Redentor, vós, inocentes, vades adiante de mim com a vossa cruz e me convidais a seguir-vos com a minha, caminhai, que eu não quero deixar-vos. Se, pelo passado, vos deixei, confesso que fiz mal: dai-me agora a cruz que quiserdes, que eu a abraço qualquer que seja ela, e com ela quero acompanhar-vos até a morte. Exeamus... extra castra improperium eius portantes (Hebr. XIII, 13). E como podemos, Senhor, não amar, por vosso amor, as dores e os opróbrios, se vós tanto os amastes pela nossa salvação?
Mas, já que nos convidais a seguir-vos, sim, queremos seguir-vos e morrer convosco, mas dai-nos fortaleza para consegui-lo; esta fortaleza vos pedimos e esperamos pelos vossos méritos. Amo-vos, meu amabilíssimo Jesus, amo-vos com toda a minha alma, e não quero mais deixar-vos. Baste-me o tempo em que andei longe de vós. Prendei-me agora na vossa cruz. Se desprezei o vosso amor, arrependo-me disso com todo o coração: agora o estimo sobre todo bem.
8. Ah meu Jesus, e quem sou eu, que me quereis como vosso seguidor, e me ordenais que vos ame? E, se não quero amar-vos, ameaçais-me com o inferno? Mas para que, dir-vos-ei com S. Agostinho, ameaçar-me com as misérias eternas? [11] Que miséria maior me pode acontecer do que não vos amar, Deus amabilíssimo, meu Criador, meu Redentor, meu paraíso, meu tudo? Vejo que, por justo castigo das ofensas que vos fiz, mereceria ser condenado a não vos poder amar; mas vós, porque ainda me amais, continuais ordenando que eu vos ame, repetindo sempre ao meu coração: Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo, et ex tota anima tua, et ex tota mente tua (Marc. XII, 30). Agradeço-vos, meu amor, por este doce preceito: e, para obedecer-vos, eu vos amo com todo o coração, com toda a alma, e com toda a minha mente. Arrependo-me de não vos ter amado no passado. No presente, prefiro toda pena antes a viver sem vos amar, e proponho sempre procurar o vosso amor. Ajudai-me, meu Jesus, a fazer sempre atos de amor a vós, e a sair desta vida com um ato de amor, a fim de que eu venha a amar-vos face a face no paraíso, onde então vos amarei sem imperfeição e sem intervalo, com todas as minhas forças, por toda a eternidade.
Ó Mãe de Deus, rogai a Jesus por mim. Amém.


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Notas:

[1]: S. ANSELMUS, Orationes, Oratio 2 ML 158-861. - Vide Apêndice, 3, B.

[2]: “Non enim in te video causam mortis, nisi superabundantiam caritatis.” Stimulus amoris, pars 1, cap. 2. Inter Opera S. Bonaventurae, VII, p. 195, col. 2: Lugduni (post editiones Vaticanam et Germanicam), 1668. - Vide Apêndice, 2, 5°.

[3]: “Sed est quod me plus movet, plus urget, plus accendit. Super omnia, inquam, reddit amabilem te mihi, Iesu bone, calix quem bibisti, opus nostrae redemptionis. Hoc omnino amorem nostrum facile vindicat totum sibi.” S. BERNARDUS, In Cantica, sermo 20, n. 2. ML 183-867.

[4]: Não encontramos este texto nas obras de S. Ambrósio; Cornélio de Lápide, no seu comentário, e o Lirano na sua “Postilla” (in Matt. XXVII, 31) dão esta razão pela qual foram restituídas a Jesus Cristo as suas vestes. S. Ambrósio indica uma outra: “Pulchre ascensurus crucem regalia vestimenta deposuit; ut scias quasi hominem passum esse, non quasi Deum regem; etsi utrumque Christus, quasi hominem tamen, non quasi Deum cruci esse suffixum.” S. AMBROSIUS, Expositio Evangelii secundum Lucam, lib. 10, n. 108. ML 15-1830, 1831.

[5]: “Ut dicitur in historiis, opinio est crucem Domini quindecim pedes habuisse in altum.” Meditationes vitae Christi, cap. 77. Inter Opera S. Bonaventurae, VI, 387, Lugduni (post editiones Vaticanam et Germanicam) 1668. - Vide Apêndice, 2, 7°.

[6]: “Crux vero adeo magna erat, quod habebat quindecim pedes in longitudine.” Dialogus de Passione Domini, cap. 8. Inter Opera S. Anselmi, (opusculum insertum non genuinis), ML 159-281.

[7]: “Non enim expectavit ut imponeretur sibi (crux) a milite: sed viso salutis signo, ut fortis athleta laetus arripuit.” S. THOMAS A VILLANOVA, In festo unius martyris, concio 1, n. 4. Conciones, II, 749: Mediolani, 1760.

[8]: Esta expressão setecentesca significa que os agentes do Tribunal abrem o cortejo e se encaminham para o lugar da execução capital. - S. Afonso, em 1725-1732 foi membro da Congregação dos Brancos da Justiça: em tal ofício ele assistiu as últimas horas dos condenados à morte, junto ao machado erigido na praça do Mercado em Nápoles.

[9]: “Age nunc, si legisti penes David (Ps. XCV, 10), Dominus regnavit a ligno, exspecto quid intelligas... Cur Christus non regnasse dicatur a ligno, ex quo crucis ligno mortuus, regnum mortis exclusit?... Cuius imperium super humerum eius (Is. IX, 6). Qui omnino regum insigne potestatis suae humero praefert, et non aut capite diadema, aut manu sceptrum, aut aliquam propriae vestis notam? Sed solus novus rex novorum aevorum Christus Iesus, novae gloriae et potestatem et sublimitatem suam humero extulit, crucem scilicet, ut... exinde Dominus regnaret a ligno.” TERTULLIANUS, Adversus Marcionem lib. 3, cap. 19. ML 2-347, 348.

[10]: S. IGNATIUS LOYOLA, Exercitia spiritualia, Hebdomada 4, Contemplatio ad amorem spiritualem in nobis excitandum. - Versão literal do original espanhol (edição Roothaan, Prep. Gen. d. C. d. G.): “Da mihi amorem tui et gratiam, nam haec mihi sufficit.”

[11]: “Quid tibi sum ipse ut amari te iubeas a me, et nisi faciam irascaris mihi et mineris ingentes miserias? Parvane ipsa est, si non amem te? ” S. AUGUSTINUS, Confessiones, lib. 1, cap. 5, n. 5. ML 32-663.

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