31 de janeiro de 2012

O Amor das Almas, S. Afonso de Ligório. CAPÍTULO IX.

Da Coroação de Espinhos

1. Continuando ainda os soldados a flagelar cruelmente o inocente Cordeiro, narra-se que se adiantou um dos assistentes, e, tomando ânimo, disse-lhes: “Vós não tendes ordem de matar este homem, como pretendeis fazer”. E com isso, cortou as cordas que ligavam o Senhor. Isso foi revelado a S. Brígida: Tunc unus concitato in se spiritu quaesivit: Numquid interficietis eum sic iniudicatum? Et statim secuit vincula eius (Lib. I, Rev. c. 10) [1]. Mas, tão logo terminou a flagelação, aqueles bárbaros ministros, instigados e corrompidos com dinheiro pelos judeus, como afirma S. Jo. Crisóstomo, fazem o Redentor sofrer uma nova espécie de tormento [2]. Tunc milites praesidis suscipientes Iesum in praetorium, congregaverunt... universam cohortem, et exuentes eum, chlamydem coccineam circumdederunt ei, et plectentes coronam de spinis, posuerunt super caput eius et arundinem in dextera eius (Matth. XXVII, 27, 28, 29). Eis como os soldados o despojam novamente, e, tratando-o como rei de burla, põem-lhe uma veste vermelha, que não era outra coisa que um retalho de manto usado pelos soldados romanos e chamado clâmide; põem-lhe na mão uma cana em sinal de cetro e um feixe de espinhos na cabeça em sinal de coroa.
Ah meu Jesus, mas não sois vós o verdadeiro rei do universo? E como vos tornastes agora rei de dor e de vitupério? Eis aonde vos conduziu o amor. - Ó meu Deus amabilíssimo, quando será aquele dia quando me unirei a vós de tal forma que nada possa separar-me de vós, e eu não possa mais deixar de amar-vos? Ah Senhor, enquanto eu vivo nesta terra, estou sempre em perigo de voltar-vos as costas e negar-vos o meu amor, como, infeliz, fiz no passado. Meu Jesus, se vedes que eu, vivendo, havesse de padecer esta suma desgraça, fazei-me morrer agora mesmo, que espero estar na vossa graça! Rogo-vos pela vossa Paixão, não me abandoneis àquele grande mal. Eu o mereceria pelos meus pecados, mas não o mereceis vós; estipulai qualquer castigo para mim, mas não este. Não, meu Jesus, meu Jesus, não quero jamais me ver separado de vós.
2. Et plectentes coronam de spinis, posuerunt super caput eius (Matth., loc. cit.). Bem refletiu o devoto Laspérgio, que este tormento dos espinhos foi dolorosíssimo, enquanto eles perfuraram toda a sagrada cabeça do Senhor, parte sensibilíssima, porque da cabeça emanam todos os nervos e as sensações do corpo; e foi ainda o tormento mais longo da sua Paixão, posto que Jesus sofreu os espinhos até a morte, ficando os mesmos fixos dentro da cabeça. Toda vez que eram tocados os espinhos ou a cabeça, sempre se lhe renovava o espasmo [3]. Segundo, pois, o sentimento comum dos escritores, com S. Vicente Ferrer, a coroa foi entrelaçada de vários ramos de espinhos, e feita fechada à maneira de capacete ou chapéu [4], de modo que perfurava toda a cabeça e descia até a metade da fronte segundo a revelação feita a S. Brígida: Corona spinea capiti eius arctissime posita fuit, quae ad medium frontis descendebat (Lib. IV, Rev. c. 70) [5].
E como diz S. Lourenço Justiniano com S. Pedro Damião, eram os espinhos tão longos que chegaram a penetrar o cérebro: Spinae cerebrum perforantes (D. Laur. Iust. de triumph. Chr. c. 14). E o manso Cordeiro deixava-se atormentar à sua vontade sem dizer palavra, sem gritar, mas, fechando os olhos por causa do espasmo, dava muitos amargos suspiros como um atormentado que está perto da morte, conforme foi revelado à B. Ágata da Cruz: Saepius oculos clausit, et acuta edidit suspira quasi morituri [8]. Tanta era a quantidade de sangue que escorria das feridas da sagrada cabeça, que na sua face não se via outra cor além da de sangue, segundo a revelação de S. Brígida: Plurimis rivis sanguinis decurrentis per faciem eius, et crines, et oculos, et barbam replentibus, nihil nisi sanguis totum videbatur (Lib. IV, Rev. c. 70) [9]. E S. Boaventura acrescenta que não aparecia mais a bela face do Senhor, mas parecia a cabeça de um homem esfolado: Non amplius facies Domini Iesu, sed hominis excoriati videretur [10].
Ó amor divino, exclama Salviano, eu não sei como chamar-te, doce ou cruel; pois pareces ter sido ao mesmo tempo doce e cruel: Amor, quid te appellem nescio ducem an asperum? Utrumque esse videaris (Ep. I) [11]. Ah meu Jesus, o amor bem vos torna doce para conosco, descobrindo-vos ser um amante tão apaixonado das nossas almas: mas vos torna desapiedado convosco mesmo, fazendo-vos padecer tormentos tão acerbos. Quisestes ser coroado de espinhos para obter-nos a coroa de glória no céu: Coronatus est spinis, ut nos coronemur corona danda electis in patria (B. Dion. Cart.) [12]. Meu dulcíssimo Salvador, espero ser a vossa coroa no Paraíso, salvando-me pelos méritos das vossas dores; aí louvarei para sempre o vosso amor e as vossas misericórdias. Misericordias Domini in aeternum cantabo, in aeternum cantabo (Ps. LXXXVIII, 2).
3. Ai espinhos cruéis, ingratas criaturas, por que atormentais assim o vosso Criador? Mas de que adianta, diz S. Agostinho, censurar os espinhos? Eles foram inocentes instrumentos: os nossos pecados, os nossos maus pensamentos foram os malvados espinhos que afligiram a cabeça de Jesus Cristo: Spinae quid, nisi pecactores? [13]
Aparecendo um dia a S. Teresa Jesus coroado de espinhos, a santa se pôs a compadecer-se dele; mas o Senhor disse: “Teresa, não tenhas compaixão de mim pelas feridas que me fizeram os espinhos dos judeus; tem piedade de mim pelas chagas que me fazem os pecados dos cristãos” [14].
Minha alma, tu também, portanto, atormentaste então a veneranda cabeça do teu Redentor com os vossos tantos maus consentimentos. Scito et vide, quia malum et amarum est reliquisse te Dominum Deum tuum! (Ier. II, 19). Abre agora os olhos, e vê e chora amargamente em toda a tua vida o mal que fizeste voltando as costas com tanta ingratidão ao teu Senhor e Deus. - Ah meu Jesus, não merecíeis ser tratado por mim como vos tratei. Fiz mal, errei; desagrada-me de todo o coração; perdoai-me e dai-me uma dor que me faça chorar toda a vida os erros que vos fiz. Meu Jesus, meu Jesus, perdoai-me, que eu quero sempre vos amar.
4. Et genu flexo ante eum illudebant ei, dicentes: Ave rex Iudaeorum; et exspuentes in eum, acceperunt arundinem, et percutiebant caput eius (Matth. XXVII, 29, 30). Ajunta S. João: Et dabant ei alapas (Io. XIX, 3). Depois que aqueles bárbaros puseram sobre a cabeça de Jesus aquela tormentosa coroa, não lhes bastou apertá-la com toda a força com as mãos, mas tomaram a cana para fazer o ofício de martelo, para fazer entrar mais para dentro os espinhos. Então começaram a rir-se dele como rei de zombaria, primeiro saudando-o, ajoelhados, rei dos judeus; e depois, levantando-se, cuspiam-lhe na face, e mofavam dele com gritos e risadas de desprezo. Ah meu Jesus, aonde fostes reduzido! Qualquer um que tivesse, então, passado por acaso naquele lugar e tivesse visto Jesus Cristo tão dessangrado, coberto daquele trapo vermelho, com aquele cetro na mão, com aquela coroa na cabeça, e tão desprezado e maltradado por aquela gentalha, considerá-lo-ia o que, se não o homem mais vil e perverso do mundo? Eis o Filho de Deus tornado o vitupério de Jerusalém! Ó homens, exclama aqui o B. Dionísio Cartuxo, se não queremos amar a Jesus Cristo porque é bom e porque é Deus, amemo-lo ao menos por tantas penas que sofreu por nós: Si non amamus eum, quia bonus, quia Deus, saltem amemus, quoniam tanta pro nostra salute perpessus est (In c. XXVII Matth.) [15].
Ah, meu caro Redentor, recebeu um servo rebelde que vos deixou, mas que agora, arrependido, a vós retorna. Quando eu fugia de vós e desprezava o vosso amor, vós não deixastes de vir atrás de mim para atrair-me a vós; por isso não posso temer que me expulsaríeis, agora que eu vos procuro, vos estimo e vos amo sobre todas as coisas. Fazei-me conhecer aquilo que eu devo fazer para dar-vos gosto, que eu quero fazer tudo aquilo. Ó Deus amabilíssimo, eu vos quero amar de verdade e não quero dar-vos desgosto nunca mais. Ajudai-me com a vossa graça, não permitais jamais que eu vos deixe.
Maria, minha esperança, rogai a Jesus por mim. Amém.

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Notas:

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[1]: “Cumque filius meus (ait Maria) totus sanguinolentus, totus sic laceratus stabat ut in eo non inveniretur sanitas nec quid flagellaretur, tunc unus concitato in se spiritu quaesivit: “Numquid interficietis eum sic iniudicatum?” Et statim secuit vincula eius.” Revelationes S. BIRGITTAE... a Card. Turrecremata recognitae, lib. 1, cap. 10.

[2]: “Et quomodo milites haec faicebant, non mandante praetore? In Iudaeorum gratiam: siquidem initio non ab illo iussi noctu profecti sunt, sed in gratiam Iudaeorum et pecuniae causa omnia audebant.” S. Io. CRYSOSTOMUS, In Ioannem, hom. 84 (al. 83), n. 1. MG 59-456.

[3]: “Meditare... quanto cruciatu plena fuerit haec coronatio. Erat enim corona ipsa.... ex spinis longis, duris, acutis et penetrativis ita plexa, ut ex omni parte caput ambiens et pungens vulneraret, nec minus vertex, quam tempora, spinis tegeretur... Si vel una spina sano integroque capiti usquequaque incolumi infixa, tantum poenae ingerit ut nihil consolationis prae dolore libeat, quem putas cruciatum... intulerunt Christi capiti, iam plagis livido ac prorsus infirmo, tot spinae lacerantes atque secantes?... Spinea corona, ut semper tangebat, ut semper pungebat, ita numquam non cruciabat... Quoties percussum fuit Christi caput, quoties corona mota, toties dolor renovatus in eo augebatur... Haec autem poena atrocissima perseverabat a tertia hora diei usque ad horam nonam, qua Passio eius per mortem fuit consummata... Collige nunc in unam summam circumstantias omnes.... advertes quantum dolorem.. Christi caput perpessum sit. Potentia enim seu virtus sensitiva, generaliterque omnes sensus corporis, ex cerebro manant... ut non tantum ex propriis, verum etiam ex singulis... cruciatibus quorumcumque membrorum intelligamus caput Christi et cerebrum eius nobilissimum atque tenerrimum afflictum; nec solum ex poenis membroum, verum etiam per organa sensuum.” Ioan. Iustus LANSPERGIUS, Cartusianus, Beneficiorum Salvatoris.... et eorum quae.... recepit malefactorum liber unus. Theorma et concio XIX: De Iesu coronatione. Sermonuum tom. 3, p. 204, 205, 206. Coloniae Agrippinae, 1693.

[4]: “Erat (corona) ad modum pilei, ita quod undique caput tegeret et tangeret, ita quod aculei ossa penetrarent.” S. VINCENTIUS FERRERIUS, O. P., Sermo in die Parasceves.

[5]: “Mater (B. V. Maria) loquitur: “... Et tunc (cioé dopo la crocifissione, di nuovo) corona spinea capiti eius arctissime imposita fuit, quae ad medium frontis descendebat, plurimis rivis sanguinis ex aculeis infixis decurrentibus per faciem eius, et crines, oculos et barbam replentibus, ut quasi nihil nisi sanguis totum videretur, nec ipse me adstantem cruci videre potuit, nisi sanguine expresso per ciliorum compressionem.” Revelationes S. BIRGITTAE.... a Card. Turrecremata recognitae, lib. 4., cap. 70.

[6]: “Capitis delicati sensibilitatem considera, spinarum punctiones cerebrum perforantes mirare.” S. LAURENTIUS IUSTINIANUS, De triumphali Christi agone, cap. 14. Opera, Venetiis, 1721, pag. 260, col. 1.

[7]: Como acima (cap. 8, nota 3), S. Afonso citou um texto do De triumphali agone Christi, atribuindo-o a S. Pedro Damião, assim aqui cita ambos os santos: talvez houvesse algum autor, ou editor, ou tipógrafo, que atribuísse a S. Pedro Damião aquela devota obra.

[8]: “Par ces vues surnaturelles, elle était à même de se pénétrer à fond des pieux sentiments que la méditation du Rosaire fait naître, et de recueillir pleinement a grâce de chaque mystére. Cette grâce affluait et inondait son coeur comme un torrent, dans les mystére douloureux. Aucun détail de l' Agonie, de la flagellation, du couronnement d' épines, du portement de croix, du crucifiement n' échappait à l' épouse du divin Sauveur”. Vén. Agathe de la Croix, 1546-1621; Année Dominicaine, Lyon, Jevain, 1889, Avril, pag. 563. - A Vida escrita pelo Fr. Antônio dos Mártires, à qual faz referência a breve passagem da Année Dominicaine, não a encontramos.

[9]: Vide acima, nota 5.

[10]: Vide Apêndice, 2, 1°. Não encontramos esta frase em S. Boaventura.

[11]: “O amor, quid te appellem nescio, bonum an malum, dulcem an asperum, suavem an iniucundum. Ita enim utroque plenus es, ut utrumque esse videaris.” SALVIANUS, Epistola 1. ML 53-157.

[12]: “Ille coronatus est spinis, ut nos coronemur corona de lapide pretioso, danda electis in patria.” B. DIONYSIUS CARTUSIANUS, Enarratio in Evangelium secundum Ioannem, art. 45, declaratio capituli 19. - Quanto ao título de Beato, atribuído aqui e em outro lugar, por S. Afonso, a este devotíssimo autor, vide Doctoris Extatici Dionysii Opera omnia, I, Monstrolii, 1896, Praefatio, pag. VIII.

[13]: “Spinae quid significant nisi peccatores? Qui peccat quotidie, etiamsi non magna peccata, minutissimis spinis coopertus est.” S. AUGUSTINUS, Enarratio in Ps. 103, sermo 3, n. 18. ML 37-1372, 1373. - “Et ipsae spinae quoniam ad populum Dei pertinent, vis audire? Ita posita est ipsa similitudo: Sicut lilium, inquit, in medio spinarum, ita proxima mea in medio filiarum (Cant. II, 2). Numquid dixit: in medio alienarum? Non, sed in medio filiarum. Sunt ergo filiae malae, et inter illas est lilium in medio spinarum.” Enarratio in Ps. 47, n. 8. ML 36-538, 539. - “O Domine... quid est quod dicis? Sicut li ium in medio quarum spinarum? Ita proxima mea in medio quarum filiarum? quas dicis spinas, ipsas filias? Respondet: Spinae sunt propter mores suos; filiae, propter sacramenta mea.” Enarratio in Ps. 99, n. 8. ML 37-1275, 1276. “Si spinas non haberes, capiti creatoris tui coronam spineam non imponeres.” Sermo de cultura agri dominici (dubius ), cap. 2, n. 3. ML 40-688.

[14]: “Acabando de comulgar, segundo dia de Cuaresma, en San Josef de Malagòn, se me representò nuestro Senor Jesucristo en visiòn imaginaria como suele, y estando yo miràndole, vi que en la cabeza, en lugar de corona de espinas, en toda ella, que debia ser adonde hicieron llaga, tenia una corona de gran resplandor. Como yo soy devota de este paso, consoléme mucho y comencé a pensar qué gran tormento debia sre, pues habia hecho tantas heridas, y a darme pena. Dijome el Senor que “no le hubiese làstima por aquellas heridas, sino por las muchas que ahora le daban.” S. TERESA, Las Relaciones, Mercedes de Dios, IX. Obras, II, 44, 45.

[15]: “Si non amamus eum quia bonus, quia Deus et frater est noster, saltem idcirco eum amemus quoniam tanta pro nostra salute perpessus est, tantaque nobis beneficia est largitus, et maiora spopondit.” B. DIONYSIUS CARTUSIANUS, Enarratio in Evangelium secundum Matthaeum, art. 43. Expositio capitulo 27.

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