28 de janeiro de 2012

O Amor das Almas, S. Afonso de Ligório. CAPÍTULO VI.

Do suor de sangue e agonia padecida por Jesus no horto.

1. Eis como o nosso amorosíssimo Salvador, chegando ao horto de Getsêmani, quis, por si mesmo, dar início à sua amarga Paixão, dando liberdade às paixões do temor, do tédio e da tristeza que viessem a afligi-lo com todos os seus tormentos: Coepit pavere, taedere et mestus esse (Ex Marc. XIV, 33 et Matth. XXVI, 37) [1]. Começou, então, primeiro a sentir um grande temor daquela morte e daquelas penas que devia em breve sofrer: Coepit pavere. Mas como? Não era ele aquele que espontaneamente se oferecera a tais padecimentos? Oblatus est quia ipse voluit (Is. LII, 7). Não era ele aquele que tinha tanto desejado este tempo da sua Paixão, tendo pouco antes dito: Desiderio desideravi hoc pascha manducare vobiscum? (Luc. XXII, 15). E, então, como tomou tanto temor de sua morte, que chegou a rezar a seu Pai para que o liberasse dela: Pater mi, si possibile est, transeat a me calix iste? (Matth. XXVI, 39). Responde o V. Beda e diz: Orat transire calicem, ut ostendat quod vere homo erat [2]. Ele, o amante Senhor, bem queria morrer por nós para demonstrar-nos com a sua morte o amor que nos tinha; mas, afim de que os homens não tivessem pensado que ele tivesse tomado um corpo fantástico - como blasfemaram alguns hereges - ou que, por virtude da sua divindade, morresse sem provar pena alguma; por isso ele fez aquela oração ao Pai, não já para ser atendido, mas para dar a entender a nós que ele morria como homem, e morria aflito por um grande temor da morte e das dores que deviam acompanhar a sua morte.
Ó Jesus amabilíssimo, vós quisestes tomar para vós a nossa timidez para dar-nos a vossa coragem no sofrer os trabalhos desta vida. Sede sempre bendito por tanta piedade e amor. Amem-vos todos os nossos corações tanto quanto vós o desejais e quanto o mereceis.
2. Coepit taedere. Começou também a sentir um grande tédio das penas que se lhe aproximava. Quando há tédio, até as delícias tornam-se penosas. Quais angústias unidas ao tédio deveu, então, dar a Jesus o horrível aparato que então se lhe representou à mente, de todos os tormentos externos e internos que naquele resto de vida deviam duramente torturar o seu corpo e a sua alma bendita? Então se lhe apresentaram distintamente todas as dores que devia sofrer, todos os desprezos que receberia dos judeus e dos romanos: todas as injustiças que lhe deviam fazer os juízes da sua causa: e especialmente se lhe apresentou aquela morte desolada por que devia passar, abandonado por todos, pelos homens e por Deus, num mar de dores e de desprezos. E foi isso que lhe causou um tédio tão amargo que o obrigou a pedir conforto ao seu Eterno Pai. Ah, meu Jesus, compadeço-me de vós, agradeço-vos e amo-vos.
3. Apparuit autem... angelus... confortans eum (Luc. XXII, 43). Veio o conforto, mas este, diz Beda, mais lhe agravou que diminuiu a pena: Confortatio dolorem non minuit sed anxit [3]. Sim, porque o anjo o confortou para padecer mais por amor do homem e para a glória do seu Pai. - Ó, quanto afã vos trouxe, meu amado Senhor, este primeiro combate! No progresso de vossa Paixão, os flagelos, os espinhos, os pregos vieram individualmente atormentar-vos, mas, no horto, as dores de toda a vossa Paixão vos assaltaram para afligir-vos todas juntas. E vós tudo aceitastes por meu amor e para o meu bem. Ah, meu Deus, quanto me pesa de não vos ter amado no passado e de ter posposto a vossa vontade aos meus malditos gostos! Detesto-os sobre todo mal, e me arrependo deles com todo o coração. Meu Jesus, perdoai-me.
4. Coepit contristari et maestus esse. Com o temor e com o tédio, começou Jesus a sentir também uma grande melancolia e aflição de alma. Mas, meu Senhor, vós não sois aquele que aos vossos mártires destes tanta alegria em padecer, que chegavam a desprezar os tormentos e a morte? De S. Vicente, diz S. Agostinho que falava com tanta alegria no seu martírio, que parecia fosse um que padecesse e outro que falasse [4]. De S. Lourenço, narra-se que, queimando sobre a grelha, era tanta a consolação de que gozava na alma, que insultava o tirano, dizendo-lhe: Versa et manduca [5]. E como, então, vós mesmo, ó meu Jesus, que destes uma alegria assim tão grande aos vossos servos no morrer, escolhestes morrer em tanta tristeza?
5. Ó alegria do paraíso, vós com o vosso gáudio alegrais o céu e a terra, e, então, porque vos vejo tão aflito e triste? E vos ouço dizer que a tristeza que vos aflige é capaz de dar-vos a morte? Tristis est anima mea usque ad mortem (Marc. XIV, 34). Meu Redentor, e por quê? Ah, já vos entendo! Não, que não tanto foram as dores da vossa Paixão, quanto os pecados dos homens, e, entre estes, os meus pecados, que então vos trouxeram aquela grande pena de morte.
6. Ele, o Verbo Eterno, quanto amava o seu Pai, tanto odiava o pecado, cuja malícia bem conhecia: porquanto, para tirar o pecado do mundo e para não ver mais ofendido o seu amado Pai, ele viera à terra e se fizera homem, e começara a sofrer uma Paixão e uma morte tão dolorosa. Mas, vendo então que, com todas as suas penas, mesmo assim se haveriam de cometer tantos pecados no mundo, esta dor, diz S. Tomás, superou a dor que qualquer penitente jamais sentiu pelas suas próprias culpas: Excessit omnem dolorem cuiuscumque contriit [6]; e superou qualquer pena que possa afligir um coração humano [7]. A razão disso é porque todas as penas dos homens são sempre misturadas com algum alívio, mas a dor de Jesus foi pura dor sem consolação: Purum dolorem absque ulla consolationis permixtione expertus est (Contest. II, 1. 10, diss. 4) [8]. - Ah, se eu vos amasse, se eu vos amasse, ó meu Jesus, vendo quanto vós padecestes por mim, tornar-se-me-iam doces todas as dores, todos os opróbrios e moléstias do mundo. Concedei-me vós o vosso amor, afim de que eu padeça com gosto, ou ao menos com paciência, aquele pouco que me dais a sofrer. Não me façais morrer assim ingrato a tantas finezas do vosso amor. Proponho dizer sempre nas tribulação que me ocorrerem: meu Jesus, abraço esta pena por vosso amor; quero sofrê-la para dar-vos gosto.
7. Nas histórias, lê-se que muitos penitentes, iluminados pela divina luz para verem a malícia dos seus pecados, chegaram a morrer de pura dor [9]. Que tormento devia ser, então, para o Coração de Jesus, a vista de todos os pecados do mundo, de todas as blasfêmias, sacrilégios, desonestidades e de todas as outras culpas que se haveriam de cometer pelos homens depois da sua morte, cada um das quais veio então como uma fera cruel lacerar-lhe o Coração com a sua própria malícia? Por isso dizia então o nosso aflito Senhor, agonizando no horto: Então, ó homens, é esta a recompensa que me dais ao meu imenso amor? Ah, se eu visse que vós, gratos pelo meu afeto, deixásseis de pecar, e começásseis a amar-me, ó com quanta alegria minha iria agora morrer por vós! Mas ver tantos pecados depois de tantas penas minhas, depois de tanto meu amor e tanta ingratidão, isto é o que mais me aflige, entristece-me até a morte, e faz-me suar sangue vivo. Et factus est sudor eius sicut guttae sanguinis decurrentis in terram (Luc. XXII, 44). Por isso, ao dizer do Evangelista, este suor de sangue foi tão copioso que primeiro banhou todas as vestes do Redentor, e depois escorreu abundantemente banhando a terra.
8. Ah, meu enamorado Jesus, eu não vejo neste horto nem flagelos, nem espinhos, nem pregos que vos firam; e como vos observo todo banhado de sangue, da cabeça aos pés? Então os meus pecados foram a cruel prensa, que então, a força de aflição e de tristeza, espremeram tanto sangue do vosso Coração? Então eu ainda fui um dos vossos mais cruéis carnífices, que cheguei a maiormente torturar-vos com os meus pecados? É certo que, se eu tivesse pecado menos, vós, meu Jesus, teríeis então padecido menos. Quanto, então, mais prazer eu tive em ofender-vos, tanto mais afã eu acrescentei ao vosso Coração doloroso. E como este pensamento agora não me faz morrer de dor, entendendo que eu paguei o amor que me demonstrastes no vossa Paixão, com acrescentar-vos tristeza e pena? Eu, então, atormentei aquele Coração tão amável e amoroso, que me amou tanto? Senhor, já que agora não tenho outro meio para consolar-vos senão doer-me de ter-vos ofendido, sim, meu Jesus, isso me dói, e me desagrada de todo o coração. Dai-me vós uma dor tão forte, que me faça chorar continuamente, até o último suspiro da minha vida, os desgostos que vos dei, meu Deus, meu amor, meu tudo.
9. Procidit in faciem suam (Matth. XXVI, 39). Jesus, vendo-se encarregado do peso de satisfazer por todos os pecados do mundo, lançou-se com a face por terra, rezando pelos homens, como se tivesse vergonha de levantar os olhos ao céu, vendo-se carregado de tantas manchas. - Ah, meu Redentor, eu vos vejo todo afanado e pálido pela pena! Vós estais em agonia de morte, e rezais! Factus in agonia prolixius orabat (Luc. XXII, 43). Dizei-me, por quem rezais? Ah, que então não rezais tanto por vós, quanto por mim, oferecendo ao Eterno Pai as vossas poderosas orações, unidas às vossas penas, para obter-me, ao miserável de mim, o perdão das minhas culpas! Qui in diebus carnis suae preces supplicationesque ad eum, qui possit illum salvum facere a morte, cum clamore valido et lacrimis offerens, exauditus est pro sua reverentia (Hebr. V, 7). Ah, meu Redentor, como pudestes tanto amar quem tanto vos ofendeu? Como pudestes abraçar tantas penas por mim, vendo já, desde então, a ingratidão que eu devia usar para convosco?
10. Reparti comigo, meu aflito Senhor, aquela dor que então tivestes dos meus pecados. Eu os aborreço pelo presente e uno este meu aborrecimento ao aborrecimento que vós deles tivestes no horto. Ah, meu Salvador, não olheis os meus pecados, porque não me bastaria o inferno; olhai as penas que padecestes por mim! - Ó amor do meu Jesus, vós sois o meu amor e a minha esperança. Senhor, eu vos amo com toda a minha alma e quero sempre amar-vos. Pelos méritos daquele tédio e tristeza que padecestes no horto, dai-me fervor e coragem nas obras da vossa glória. Pelos méritos da vossa agonia, dai-me conforto para resistir a todas as tentações da carne e do inferno. Dai-me a graça de sempre encomendar-me a vós e de sempre replicar-vos com Jesus Cristo: Non quod ego volo, sed quod tu (Marc. XIV, 36). Não se faça a minha, mas sempre a vossa divina vontade. Amém.

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Notas:
[1]: Coepit pavere et taedere. Marc. XIV, 33. - Coepit contristari et maestus esse. Matt. XXVI, 37.

[2]: S. BEDA VENERABILIS, In Marci Evangelium expositio, lib. 4. ML 92-276.

[3]: Também o Mansi, Bibliotheca moralis praedicabilis, tract. 60, discursus 17, n. 8, refere ex Beda in Lucam estas palavras: “Confortatus est, sed tali confortatione quae dolorem non minuit, sed magis auxit. Confortatus enim est ex fructus magnitudine, non subtracta doloris amaritudine.” Però non si ritrovano nel Commentario di S. Beda, in Luc. XXII, 43.

[4]: “Tanta poena erat in membris tanta securitas in verbis, tamquam alius torqueretur, alius loqueretur.” S. AUGUSTINUS, Sermo 275, in Natali martyris Vincentii, n. 1. ML 38-1254.

[5]: “Elevans oculos suos in Decium, dixit: Ecce, miser, assasti unam partem, regira aliam et manduca.” Acta S. Laurentii, ex Martyrologio Adonis, n. 11: inter Acta Sanctorum Bollandiana, die 10 augusti. - “Cum, illuso tyranno, impositus super craticulam exureretur: “Assum est, inquit, versa et manduca.” Ita animi virtute vincebat ignis naturam.” S. AMBROSIUS, De officiis ministrorum, lib. 1, cap. 41, n. 206. ML 16-85, 86.

[6]: “Christus non solum doluit pro amissione vitae corporalis propriae, sed etiam pro peccatis omnium aliorum. Qui dolor in Christo excessit omnem dolorem cuiuslibet contriti; tum quia ex maiori sapientia et caritate processit, ex quibus dolor contritionis augetur; tum etiam quia pro omnium peccatis simul doluit.” S. THOMAS, Sum. Theol., III, qu. 46, art, 6, ad 4.

[7]: “Dolor in Christo fuit maximus inter dolores praesentis vitae.” S. THOMAS, I. c., c.

[8]: Vincentius CONTENSON, O. P., Theologia mentis et cordis, lib. 10, dissertatio 4, cap. 1, speculatio 1, Tertius excessus.

[9]: Vários destes exemplos se podem ler nos Sermones Discipuli de tempore et de sanctis cum exemplorum promtuario, Venetiis, 1598. Muito provavelmente, S. Afonso alude os dois exemplos - 20 e 21 - que se encontram na p. 92 do Prontuário, dos quais o segundo é referido também nas Glórias de Maria.

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