23 de maio de 2024

A Paixão - Padre Júlio Maria

3. - A FLAGELAÇÃO

Livore ejus sanati sumus

As Suas feridas são os nossos remédios.
Jesus flagelado! Para o século uma vergonha, um opróbrio, uma ignomínia. Para a razão iluminada pela fé, a glorificação da matéria, a apoteose da castidade feita pelos próprios verdugos a quem Deus encarregou a inconsciente missão de nos membros flagelados de Jesus Cristo gravarem em inapagáveis caracteres de sangue a honra do corpo, a dignidade da carne!
A Flagelação é, sem dúvida, um dos mais horrorosos e o mais humilhante de todos os episódios da Paixão, porque aos sofrimentos indizíveis da vítima juntaram-se os opróbrios de Seu pudor ofendido!
Ao julgamento de Nosso Senhor não precederam as solenidades de um tribunal. Ele foi entregue aos mais vis satélites da justiça criminal, que não Lhe dispensou sequer o aparato judiciário de uma execução.
Os instrumentos de Seu martírio eram horríveis; a forma e a variedade dignas da crueldade de Seus carrascos, que com os olhos cheios de ameaças, os lábios cerrados, e os braços armados, fazem-nO experimentar toda a força muscular e brutal de que são capazes.
Repugna-nos contemplar esta cena tão hedionda e infame; e, entretanto, o mistério da Flagelação é cheio de encantos. Como o da Agonia, a efusão de sangue na coluna não era ainda a destinada nos desígnios de Deus a resgatar o mundo, que devia sê-lo pela efusão do Calvário.
Era, portanto, mais uma magnificência, uma prodigalidade, uma exuberância do amor de Jesus Cristo, que tinha, entretanto, dado em espetáculo a cidade e ao povo desígnio especial.
A humilhação tem lugar, e do modo mais completo; mas não sem que Jesus Cristo a faça proceder de uma prova inequívoca da voluntariedade com que a aceita, e da onipotência com que a podia impedir.
Quando infame tropa de soldados O vai prender, antes que se aproximem, Ele sai-lhes ao encontro. Eles aparecem, de mão armada, com Judas, que os conduz; e não O conhecem! É preciso que Jesus Cristo lhes diga: “sou eu Aquele que procurais!” E só com dizer: “Eu sou” eles caem por terra.
Beija o discípulo traidor; sara a orelha de Malcos; incita os miseráveis satélites da justiça romana a cumprirem a sua missão; só então eles têm a coragem de fazê-lo.
Estava mais uma vez revelada a Sua onipotência; agora era mister uma nova revelação do Seu amor.
Deixa prender-Se para que executem nEle todas as crueldades. Tratam-nO brutalmente; dão-Lhe empurrões e pancadas; atam-Lhe as mãos; levam-nO aos juízes; esbofeteiam-nO; vestem-nO de branco como a louco; atam-nO, enfim, a uma coluna, e mandam açoitá-lO!
Ei-lO na coluna! Os verdugos descarregam sobre Ele com toda desumanidade os seus azorragues; todos os Seus membros são horrorosamente flagelados; cada um dos Seus sentidos sofre especial tormento; o sangue cobre toda a superfície de Seu corpo e alaga o chão.
Que significado pode ter este mistério, como ensino e exemplo proveitoso à nossa salvação?
Pois a carne de Jesus Cristo não é pura, imaculada, santa? Perfeitamente submetida ao espírito? Pois o corpo de Jesus Cristo não é perfeito instrumento da Sua alma, exatamente como Deus o imaginou?
Sim; mas a nossa carne é uma carne de pecado, impura, desregrada, rebelde ao espírito, corrompida e fonte de toda a corrupção. É dessa carne que derivam todas as obras que São Paulo chama - obras carnais, e pelas quais devia o nosso corpo ser castigado, afligido, flagelado.
Que fez o nosso Redentor? Colocou-Se na situação em que deviamos estar; pôs em lugar da nossa a Sua carne imaculada; revestiu-Se de todas as nossas sensualidades, luxúrias, impurezas, imaginações torpes, complacências, impurezas, lascivas, de todos os nossos desejos impudicos.
Na Agonia do Jardim vimo-lO revestido de todas as iniqüidades de todos os povos, em todos os gêneros de pecado. Hoje, na Flagelação, vemo-lO como que de um modo especial revestido dos pecados da sensualidade, vingando a honra de nosso corpo, firmando a dignidade de nossa carne.
Eis a grande significação do mistério que, pois, não é senão uma substituição.
É a carne inocente de Jesus Cristo pagando os pecados da nossa carne culpada. E basta que por uma sincera penitência apliquemos a nós próprios os méritos dessa expiação, para que satisfaçamos a Justiça Divina, que em Jesus Cristo viu a responsabilidade da pena, mas não a malícia da falta; pelo que os sofrimentos de Jesus Cristo não nos eximem da penitência, mas dão aos nossos atos de mortificação valor infinito.
Eis o ensino, a lição e o exemplo que convinham a todos os tempos; mas se há um século em que o mistério de Flagelação tenha alta significação, é o nosso, em que devemos estudá-lo, meditá-lo e admirá-lo, não simplesmente de um modo estético, como fonte de ternura, compaixão e lágrimas para o nosso coração; não lamentá-lo simplesmente como um atentado inaudito da justiça romana, uma prevaricação descomunal do Direito, um excesso brutal da crueldade judaica; mas adorá-lo como um mistério de salvação.
Foi porque Ele viu, em toda a série dos séculos, as misérias da nossa concupiscência, que deixou correr para nós, como uma fonte de vida, o sangue de Sua Flagelação; e é para que nos aproveitemos dela que o Evangelho para todo o sempre imortalizou o mistério e a Igreja perpetuamente no-lo mostra reproduzido.
Se em todas as épocas a humanidade, tão inclinada pela prevaricação adâmica aos furores da impureza e as orgias da concupiscência, teve necessidade desse remédio, hoje, mais do que nunca.
Uma das principais características do século 19 é - o pecado da carne. Uma de suas mais caluniosas acusações contra o cristianismo é a de ter atrofiado a aberrações místicas da alma as legítimas necessidades da sua natureza física.
“É tempo, diz o século 19, do homem ser adorado, não só na alma, mas também no corpo.
É tempo de cessar esse longo divórcio entre a alma e os sentidos. Que quer dizer essa moral de sacristia só própria para os hipócritas, os tartufos e os imbecis?!
Que quer dizer disciplinar a carne, reprimir as paixões, imolar o corpo?! Que valor tem a castidade, a virgindade, o celibato, a abstinência e o jejum?! Tudo isso não passa de violação desta grande lei - tudo é bom na natureza.
Tudo é bom na natureza! Portanto, satisfaçamos todas as paixões, libertemos o corpo dessa longa escravidão, desse jejum de tantos séculos! Portanto, inauguremos a era do amor livre!
Gozar é a lei: aspiremos, portanto, a vida por todos os poros.
Inventem-se, se é possível, novos prazeres, novos gozos, novas volúpias. O corpo tem direito de satisfazer os seus apetites. Desenvolver a sensação é obra tão santa como enriquecer o pensamento; e o homem que descobrisse uma volúpia nova, um gozo desconhecido, um novo gênero de luxuria - seria mais glorioso do que Newton descobrindo mundos no espaço!
Eia, liberte-se a humanidade; desoprima-se o corpo do homem das superstições cegas, dos ascetismos extravagantes, das mortificações insensatas, de toda essa escravidão com que a Igreja há longos séculos o traz cativo.
Transfigure-se o mundo; proclamemos um novo catolicismo - o catolicismo da carne; celebremos uma nova Páscoa - a páscoa do gozo universal.”Eis o hino que o século 19 põe nos lábios deste novo gigante que se chama - o homem moderno.
Gigante sim, dizia-o tristemente uma das maiores figuras científicas do nosso tempo, Moigno, quando, contemplando os esplendores da moderna civilização, que, aliás, ele tanto tinha impulsionado com as obras primas de seu engenho, exclamava: mas tudo isto não tem elevado o ideal da inteligência; antes tem servido para exclusivo conforto do corpo e para encher de orgulho a besta humana, que se reputa um gigante, e já não olha para o céu!
Gigantes! Mas já os houve, e a história deles pode-se tornar as nossa.
Acharam belas as filhas da terra; um amor louco depravou os seus corações; a sua razão obscureceu-se; e o espírito deles identificou-se com a carne!
Sempre; sempre que o gênio do homem concentra toda a sua atividade na matéria, torna-se um gigante; mas também na embriaguez do seu triunfo julga-se Deus.
E começa uma reação medonha: a matéria absorve, escraviza, subjuga a alma; e, embrutecido o homem, o espírito perde os seus vôos, a ciência extingue-se, a indústria morre, a barbaria recomeça!
Seriam pueris os temores de Moigno?
Não; o que vemos em nosso século os justifica. Um imenso desequilíbrio entre a alma escravizada e o corpo na plena soberania das suas paixões não deixa duvidar que já estamos no pleno reinado do pecado da carne.
Expressões deste pecado - a política, a literatura, a arte. Que é a política moderna senão a arte de animalizar as nações, proporcionando-lhes a maior soma de gozos animais?!
Qual a ambição exclusiva dos governos?
Aumentar a indústria! Qual a sua preocupação constante? O bem estar, o conforto, o cuidado exclusivo da vida material.
Qual o seu ideal moral e religioso? Nenhum! Deus foi completamente banido da política.
Que é a arte moderna? O requinte da volúpia nas variadas produções da música, da pintura, da escultura. Nos próprios lares já os ídolos pagãos substituem os símbolos cristãos. As grandes composições já não podem rivalizar com as imundas partituras e óperas concebidas para inflamar as paixões sensuais.
Os quadros e as gravuras quase que não têm outro fim senão escandalizar o pudor do homem e a moral pública.
Que é a literatura moderna? O realismo, isto é, a mais torpe de todas as expressões literárias da luxúria; tão torpe e vergonhosa para a história da humanidade que dele diz o ilustre historiador que acaba de baixar ao túmulo, Cantú: - o realismo é verdadeiramente uma orgia literária, em que a literatura perdeu de vista a consciência de suas aberrações, dando a liberdade da inspiração pessoal as mais extraordinárias fantasias, os mais incompreensíveis desmandos. Perdido o hábito da serenidade da arte, do nobre esmero do pensamento, da escolha das coisas levantadas, as extravagâncias julgam-se originalidades, e os desregramentos vôos de gênio. Procura-se o horrível, o extraordinário. Não se faz psicologia; mas patologia. O que é simples e delicado parece insípido. Pululam como cogumelos, as obras literárias que descrevem o mundo como um hospital e um lupanar.
Fazem-se descrições sem naturalidade; pintam-se caracteres excepcionais; urdem-se planos sem elevações nem engenho; favorece-se com lubricidades e escândalos o pendor do homem para as baixezas; lisonjeiam-se seus maus instintos; deprime-se a mulher na sua dignidade e no seu pudor; enfim, glorifica-se o pecado da carne!
Eis a literatura realista, da qual diz também Julio Simon: é um veneno que se infiltra cada dia em milhões de almas. É uma escola de grosseria, uma literatura depravada, artificial, falsa, porque para que a imaginação nos amenize a vida é mister que nos mostre o seu lado bom; e o pintor que não nos mostra senão as verrugas do seu modelo faz uma caricatura, mas não um retrato. O erro da moderna literatura é não mostrar da natureza humana senão o lado feio; é não descrever nunca o homem são, mas só o doente.
Era a mesma ponderação de Cantú: O real é o modelo do artista; mas a realidade no mundo social não é só o mal. Há tanta falta de verdade no romantismo, que só descrevia nos campos flores e nunca urzes, nas almas heroísmos e nunca baixezas; como no realismo, que nunca vê, através das nuvens, o sol no céu! O romantismo era uma mentira; o realismo é uma calúnia. Aliás, a arte não é obrigada a aceitar para as suas criações todas as realidades; porque muitas há que postergam o pudor e a moralidade, e devem por isso ser excluídas do seu domínio. À arte cumpre educar, melhorar, não somente copiar, e menos caluniar: o que faz desconhecendo a virtude, a abnegação, os triunfos da alma sobre as paixões, coisas ainda reais na vida, porque o mal, posto tenha um lugar vastíssimo no mundo, não o absorve.
Eis verdades puras, mas desconhecidas do nosso século, que, dominado pelo pecado da carne, acusa a Igreja de afligi-la no homem com os preceitos da castidade, virgindade, celibato, abstinência e jejum; desconhecendo que esses preceitos não são mais do que uma justa expressão do respeito que devemos professar pelo nosso corpo.
Quem já o glorificou mais do que a Igreja?
Continua...

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