26 de maio de 2024

A Paixão - Padre Júlio Maria

Continuação...

Os Judeus, pois, supondo confundir a Jesus Cristo, não fizeram senão dar-Lhe as insígnias que convinham à Sua realeza.
Era triste então o estado da nação judaica; profunda a sua decadência política, civil e religiosa; e tão obliterados os sentimentos que, supondo aspirar a liberdade, de que o despotismo romano a tinha despojado, de fato não queria senão a escravidão.
Como todos os povos corrompidos, e que não vêm nas calamidades e misérias o justo castigo de seus pecados, o povo judeu volve-se para todos os lados a procura da salvação; mas não atina com o verdadeiro caminho por onde deve seguir.
Se tivesse correspondido a sua vocação divina, seria o povo arauto da humanidade; repudiou-a, porém, e a sua vida nacional não se torna mais que uma humilhação.
O espírito público enfraqueceu-se; as classes sociais desmoralizaram-se; o lar prostituiu-se; o próprio sacerdócio, aviltado, deixou corromper-se a religião, e profanarem-se os templos.
Então, despojado de sua autonomia, perdida a sua grandeza nacional, oprimido pela tutela romana, ele suspira por um libertador.
Mas que libertador? Um general forte e poderoso, acompanhado de exércitos, e que com a espada desembainhada, ganhando batalhas, devastando cidades, subjugando todos os outros povos, lhe restitua com a liberdade política a perdida prosperidade.
Não é esta a sorte de todos os povos que apostatam a fé e repudiam a Deus?! Não é sempre, por um justo castigo, que eles apelam para a espada; e não é sempre a espada que vinga os crimes e as iniqüidades dos povos sem Deus?!
Como, pois, os Judeus haviam de compreender a verdadeira realeza de Jesus Cristo, Rei manso, pacifico, cheio de doçura e de humildade?!
Como poderiam eles tolerar que dentre os seus compatriotas um tão obscuro tivesse a pretensão de salvar a sua pátria sem nenhum dos meios humanos: a força, a riqueza, as armas e o poder?!
Não: não podiam compreender essa realeza; por zombaria dão ao Rei verdadeiro as insígnias mais irrisórias; Deus, porém, da cegueira e maldade do povo infiel, tira a glória de Jesus Cristo, fazendo que essas insígnias sejam justamente as que melhor significam a qualidade da Sua soberania e a natureza do Seu Reino.
O libertador que eles desejavam apareceu; foi recusado pela Sua pátria; mas operou, em maior escala, em todo o universo, e por meios mais prodigiosos do que os que ela imaginava a maior de todas as revoluções da humanidade. Com uma coroa de espinhos, um cetro de cana e uma púrpura esfarrapada, Jesus Cristo tomou posse do mundo, libertou o mundo, fez-Se adorar pelo mundo. Dizei-me agora: a esse Rei deviam dar-se a coroa, o cetro e a púrpura que se dão aos outros reis?!
Não era preciso que as Suas insígnias fossem diferentes, e mesmo tão humilhantes, quanto o triunfo tinha de ser universal e assombroso?!
Não contemples, portanto, simplesmente com os olhos carnais este mistério de Jesus Cristo coroado de espinhos: contemplai antes com inefável júbilo a sua beleza e o esplendor da sua glória: videte Regem... in die laetitiae.
Extrai também deste mistério o seu profundo ensino; tirai da cabeça de Jesus Cristo, coroada de espinhos, todo o proveito para a vossa salvação.
Dizei que sois cristãos. Pois bem; sois súditos de Jesus Cristo.
Mas, se sois súditos de Jesus Cristo, o sois de um Rei coroado de espinhos; e, se o vosso Rei é assim coroado, como quereis, pergunta São Bernardo, vos coroar de rosas efêmeras, isto é, pensamentos vãos, imaginações pueris, ambições loucas, avarezas e vaidades?!
O Reino do vosso Rei nada tem de terrestre e mundano; é o Reino da humildade do espírito, da renunciação das glórias e riquezas, da paz, do amor, da caridade.
Não pode o homem ser súdito desse Rei, nem viver no Seu reino, senão renunciando-se a si próprio no que tem de grosseiro e imperfeito.
Quereis ser súditos de Jesus Cristo? Eu aplaudo deveras a nobreza de vossa aspiração; porque esse reino é de todos o mais formoso.
A humanidade só conhecia três reinos: o da material, sujeito às leis físicas, o reino animal, entregue aos simples instintos, o reino humano, apenas iluminado pela fraca luz da nossa razão.
A estes três reinos Jesus Cristo acrescentou um quarto: o reino de Deus, concebido, realizado, dirigido e perpetuamente sustentado pelo próprio Deus. Todos os homens são chamados a este Reino; mas nele nenhum homem entra senão renunciando-se a si próprio, e sacrificando ao espírito de Deus essas paixões inferiores que não o deixam compreender este profundo mistério da Coroação de espinhos, sempre, mas nunca tão oportuno como na época atual.
Qual é a grande característica da nossa época? O orgulho.
O mundo está cheio de profetas novos; todos se pretendem iluminados. Todo o espírito quer ser um Messias; e todo o livro pretende ser o berço de uma nova revolução da humanidade.
Que digo? Todo o livro?! Não há jornal de aldeia que não pretenda ser um Evangelho; e os chamados apóstolos da Idéia pupulam por toda a parte, pretendendo salvar o mundo e felicitar a humanidade, nome que, em todas as burlescas liturgias das modernas religiões sociológicas, aparece freqüentemente como o símbolo do dogma que elas criaram e único que admitem: o dogma da soberania do homem.
Todos esses novos cultos do que eles chamam Idéia não são mais que uma idolatria humanitária - o culto do eu, a apoteose do homem pelo homem; porque de fato o Deus que eles adoram é a espécie eternamente progressiva e da qual, dizem eles, cada passo é uma vitória sobre a natureza. De sorte que o Cristo, não foi criador da nova humanidade; esta tem ainda de sair do cérebro escaldado dos novos Messias!
Todos esses sistemas que se propõem à razão são irrisórios, sem dúvida: mas, donde todos eles procedem? Do orgulho da inteligência, a qual nunca foi tão fútil nem tão presunçosa como na nossa época, em que todos os países têm os seus Messias, cada cidade os seus profetas, e cada aldeia os seus apóstolos da Idéia, que eles proclamam a nova, a única, a redentora.
Quereis avaliar, devidamente toda a parvoíce desse orgulho? Vede. Sessenta séculos a humanidade tem vivido na terra acreditando no casamento, na propriedade, em Deus, no céu, no inferno, no purgatório, em tudo aquilo que por assim dizer constitui o patrimônio das suas crenças.
Pois da noite para o dia levanta-se nas colunas de qualquer jornal, ou na tribuna de qualquer esquina, um mancebo, ainda imberbe, e diz “a propriedade é um roubo; o socialismo o verdadeiro direito. O casamento não é uma instituição divina nem um sacramento; é um simples contrato sexual. Deus é uma chimera; o mundo foi feito pela matéria e a força. O céu, o inferno, o purgatório são superstições da religião. Jesus Cristo não é o homem-Deus, o redentor da humanidade, o salvador dos povos. Só há uma religião verdadeira: a ciência.”
A conclusão é lógica: a humanidade inteira durante sessenta séculos viveu nas trevas; todos os espíritos, ainda os mais transcendentes de todos os séculos, foram vítimas do erro; e o tal mancebo é que possuí a verdade. Não foi Jesus Cristo o verdadeiro Messias; quem é Ele então? Sem dúvida, o tal mancebo, que não o diz por acanhamento; mas indubitavelmente nasceu para reformar os princípios, as idéias, as crenças, as leis, o direito, as instituições e a religião de sessenta séculos.
Torno a perguntar: de onde vem tudo isso? Do orgulho. E este orgulho do mancebo, aliás, resultado dos livros e jornais em que a pobre vítima se tem nutrido, e que lhe tem proporcionado os ridículos Messias dos outros países, denota algum vislumbre de inteligência?
Não; o orgulho da inteligência, pavoroso mal da nossa época, é a maior aberração da mesma inteligência. Toda a força da inteligência está no bom senso; e o simples bom senso ensina ao homem a humildade, que não é, como se pensa, uma virtude abjeta, mas a mais alta e elevada das percepções da razão.
“Coloque-se o homem - diz brilhante escritor - numa planície, onde se veja rodeado de seres animados e inanimados, racionais ou privados de razão. No meio das nuvens, das pérolas, das folhas e flores, que pensamento o preocupa, que sentimento o domina? Que é uma criatura. Sim; é essa idéia a que, em tais circunstâncias, assalta de todos nós.
Temos vivido tantos anos, meses e dias: ocupamos uma posição na vida. Não sabemos, porém, o que se fez antes de nós, exceto alguns fatos que a história registra; nem o que será depois, exceto alguma revelação. O homem não deu a vida a si próprio; não sabe se será feliz ou desgraçado, grande ou miserável, são ou enfermo. Por quê? Porque é uma criatura. Podia ter nascido num dia ou noite dos milhares de anos que o precederam, noutro País; mas aquele dia em que nasceu e aquele país onde surgiu à luz lhe foram dados sem audiência sua. Por quê? Porque é uma criatura. Ainda mais: a natureza bruta lhe resiste; só com muito trabalho pode cultivar a terra e fazê-la produzir. É preciso que a terra lhe forneça os minerais e os gazes; os animais - a alimentação. Por quê? Porque não é senhor dos elementos, nem mais que simples usufrutuário do globo. De fato ele sabe que não fez o planeta; e que não pode andar sobre o pó da terra sem pagar-lhe o real tributo de uma aparente dominação. Mas porque tudo isso? Porque é uma criatura.
Se é uma criatura, tem um Criador. Mas esta palavra, o Criador, como é entendida em nossa época? É um nome abstrato para significar somente que não somos eternos, é a forma masculina da expressão - criação. Nos livros de moral, ciência, filosofia, política, de certo modo fala-se no Criador; mas sem que isso importe reconhecer o Criador como um ser pessoa e vivo. Deus como pessoa é questão de que ninguém se ocupa; e até nas ciências naturais - a origem, os seus elementos moleculares, as revoluções dos corpos celestes, tudo isso é estudado e explicado numa multidão de livros com um ateísmo tão ingênuo que a palavra criatura não implica nunca a necessidade do Criador.”
Torno a perguntar: donde vem tudo isso?
Do orgulho, cujo maior castigo é este: divorciar-se completamente do bom senso; porque o mais simples bom senso, de todas as reflexões precedentes tira esta conclusão: eu sou uma criatura racional, inteligente, livre; portanto, a razão, a inteligência, vontade são também atributos do meu Criador. Eu pequenina criatura, amo ou sou capaz de amar; portanto, o meu Criador, o foco de todos os seres criados, é um oceano de amor.
O orgulho é, pois, a cegueira da inteligência; a humildade o esplendor da razão.
E não é senão para nos ensinar a humildade de espírito que a cabeça de Jesus Cristo se nos mostra hoje coroada de espinhos. Estes espinhos foram nela os castigos das nossas vaidades, das nossas vanglórias, das variadas e ridículas manifestações do nosso amor próprio, que são inumeráveis!
O orgulho é, depois do dinheiro, o maior déspota desta geração, que não tolera nenhuma superioridade intelectual, não respeita nenhuma elevação moral, não admira e aplaude senão os produtos do seu cérebro enfermo, e as obras da sua torpe imaginação.
Cada espírito sabe tudo!
Mas, se o orgulho da inteligência é a expressão da nossa época; que melhor e mais oportuno ensino que o deste Mistério? Ele é a mais formosa de todas as apoteoses da humildade.
Sois homem? Sois cristãos? Quereis verdadeiramente conquistar a liberdade do coração, a paz da alma, a sabedoria do espírito - frutos da humildade?
Contemplai aquela coroa, beijai-a; proclamai bem alto: Salve, Rei da nova humanidade!

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