26 de agosto de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

O CORAÇÃO DE JESUS

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«Devoção» deriva da palavra latina devovere, "dedicar-se", consagrar-se a uma pessoa amada. A devoção para com Deus é a mais alta expressão do amor. "Amarás a Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu espírito, com todas as tuas forças»: Diliges Dominum Deum tuum ex TOTO corde tuo, et ex TOTA anima tua, et ex TOTA mente tua. Este - totus - marca a devoção. Amar a Deus com todo o seu ser, sem nada reservar para si, sem nunca parar, amá-Lo a ponto de a criatura se dedicar ao Seu serviço pronta e livremente, tal é a devoção em geral; e, assim entendida, a devoção constitui a perfeição, visto ser a flor da caridade.
A devoção a Jesus Cristo é a dedicação de todo o nosso ser e de toda a nossa atividade à pessoa do Verbo Incarnado, abstraindo deste ou daquele estado particular da pessoa de Jesus, deste ou daquele mistério especial da Sua vida. Por esta devoção a Jesus Cristo procuramos conhecer, honrar, servir o Filho de Deus, que se nos manifesta pela Sua santa Humanidade.
Uma devoção particular é ou a « dedicação» a Deus considerado especialmente num dos Seus atributos ou perfeições - como a santidade, a misericórdia - ou ainda a uma das pessoas divinas ou a «dedicação" a Jesus Cristo contemplado num dos Seus mistérios, num ou noutro dos Seus estados.
Como vimos no decurso destas conferências, é sempre o mesmo Jesus Cristo que honramos, é sempre à Sua pessoa adorável que se dirigem as nossas homenagens: consideramos, porém, a Sua pessoa sob um aspecto particular ou como manifestando-se num mistério especial. Assim, a devoção à santa Infância é a devoção à própria pessoa de Cristo, contemplado especialmente nos mistérios da Natividade e da vida de adolescente em Nazaré. A devoção às Cinco Chagas é a devoção à pessoa do Verbo Incarnado, considerado nos Seus sofrimentos, sofrimentos estes simbolizados nas mesmas Cinco Chagas, cujas gloriosas cicatrizes Jesus Cristo conserva depois da Ressurreição. A devoção pode ter um objeto especial, próprio, imediato, mas termina sempre na pessoa em si mesma.
Compreendeis agora o que se deve entender por devoção ao Sagrado Coração. É, dum modo geral, a dedicação à pessoa de Jesus, enquanto manifesta o Seu amor por nós e nos mostra o Seu Coração como símbolo deste amor. A quem honramos nesta devoção? A Jesus Cristo em pessoa. Mas qual o objeto imediato, especial, próprio desta devoção? O Coração de carne de Jesus, o Coração que por nós pulsava no peito do Homem-­Deus; porém, não o veneramos separado da natureza humana de Jesus nem da pessoa do Verbo eterno a que esta natureza humana se uniu na Incarnação. E devemos ainda acrescentar o seguinte: veneramos este Coração como símbolo do amor de Jesus para conosco.
A devoção ao Sagrado Coração reduz-se, pois, ao culto do Verbo Incarnado, enquanto nos manifesta o Seu amor e nos mostra o Seu Coração como símbolo desse amor.
Não é preciso justificar perante vós esta devoção, que vos é familiar; não será, todavia, inútil, dizer-vos alguma coisa sobre o assunto.
Sabeis que, no pensar de alguns protestantes, a Igreja é como um corpo sem vida; teria recebido toda a sua perfeição logo no princípio e assim devia ficar; tudo o que veio depois, ou seja em matéria dogmática ou seja no domínio da piedade, não é outra coisa, segundo eles, senão superfluidade e corrupção.
Para nós, porém, a Igreja é um organismo vivo, que, como todo o organismo vivo, se deve desenvolver e aperfeiçoar. O depósito da revelação foi selado com a morte do último Apóstolo. Desde então, ·nenhum escrito é admitido como inspirado, nem as revelações particulares dos santos entram no depósito oficial das verdades da fé. Há, todavia, muitas verdades que estão contidas na revelação oficial apenas em germe; só pouco a pouco, sob a pressão dos acontecimentos e a inspiração do Espirito Santo, vai surgindo a oportunidade de chegar a definições explicitas que fixam, em fórmulas precisas e determinadas, o que anteriormente era conhecido apenas de modo implícito.
Desde os primeiros instantes da Incarnação, Jesus Cristo possuía na Sua santa alma todos os tesouros da ciência e sabedoria divinas. Mas só a pouco e pouco é que se foram revelando. A medida que Jesus Cristo ia crescendo em idade, aquela ciência e sabedoria iam-se manifestando, iam-se vendo aparecer e florescer as virtudes cujo germe em si continha.
Algo de análogo se passa com a igreja, Corpo Místico de Cristo. Por exemplo, encontramos no depósito da fé esta magnífica revelação: «O Verbo era Deus, e o Verbo fez-se carne». Esta revelação contêm tesouros que só pouco a pouco se foram apresentando em toda a sua luz; é como uma semente que se transformou em frutos de verdade para aumentar o nosso conhecimento de Jesus Cristo. Quando surgiram as heresias, a Igreja, guiada pelo Espírito Santo, definiu que em Jesus Cristo há uma só pessoa divina, mas duas naturezas distintas e perfeitas, duas vontades, duas fontes de atividade; que a Virgem Maria é Mãe de Deus; que todas as partes da santa Humanidade de Jesus são adoráveis em virtude da Sua união com a pessoa divina do Verbo. Serão novos estes dogmas? Não. É o depósito da fé que se explica, se torna explícito, se desenvolve.
O que dizemos dos dogmas aplica-se perfeitamente às devoções. No decorrer dos séculos, surgiram devoções que a Igreja, inspirada pelo Espírito Santo, admitiu e fez suas. Não são inovações propriamente ditas; são efeitos dimanados dos dogmas estabelecidos e da atividade orgânica da Igreja.
Desde que a Igreja docente aprove uma devoção e a confirme com a sua autoridade soberana, devemos aceita-la com alegria; proceder doutro modo não seria «partilhar dos sentimentos da Igreja» - sentire cum Ecclesia - não seria compartilhar dos pensamentos de Jesus Cristo, pois Ele disse aos Apóstolos e seus sucessores: «Quem vos ouve, a mim ouve; quem vos despreza, a mim despreza».  Ora, como ir para o Pai, se não ouvirmos a Cristo?
Relativamente moderna sob a forma que reveste atualmente, a devoção ao Sagrado Coração tem as suas raízes dogmáticas no depósito da fé. Estava contida em germe nas palavras de S. João: «0 Verbo fez-se carne e habitou entre nós . . . Levou ao último extremo o amor que tinha pelos Seus». Com efeito, o que é a Incarnação? É a manifestação de Deus. «É Deus que se revela pela Humanidade de Jesus»: Nova mentis nostrae oculis lux tuae claritatis infulsit. É a revelação do amor divino ao mundo: «Deus amou o mundo a ponto de lhe dar o seu Filho único»;e «não há maior amor do que o dar a vida por seus amigos»: Majorem hac dilectionem nemo habet. Toda a devoção ao Sagrado
Coração está contida em germe nestas palavras de Jesus. E para mostrar que este amor atingiu o mais elevado grau, Jesus Cristo quis que, logo depois de exalar o último suspiro na cruz, o Seu coração fosse atravessado pela lança de um soldado.
Como vamos ver, o amor que nesta devoção é simbolizado pelo Coração é antes de mais nada o amor
criado de Jesus; mas, como Jesus Cristo é o Verbo Incarnado, os tesouros deste amor criado manifestam-nos as maravilhas do amor divino do Verbo eterno.
Estais a ver a que profundezas do depósito da fé lança esta devoção as suas raízes. Longe de ser uma
adulteração ou corrupção, é uma adaptação, ao mesmo tempo simples e magnífica, das palavras de S. João sobre o Verbo que se fez carne e se imolou por amor de nós.

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