23 de agosto de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

XIX

O CORAÇÃO DE JESUS
(Festa do Sagrado Coração)

Tudo o que possuímos no domínio da graça nos vem de Jesus Cristo; «é da Sua plenitude que todos
nós recebemos »: De plenitudine ejus nos omnes accepimus. Ele derrubou o muro de separação que nos impedia de chegar até Deus; com abundância infinita, mereceu para nós todas as graças; divina cabeça do Corpo Místico, tem o poder de nos comunicar o Espírito dos Seus mistérios, para nos transformar em Si.
Quando consideramos estes mistérios de Jesus, qual das Suas perfeições vemos brilhar neles de modo particular? - O amor.
O amor realizou a lncarnação: Propter nos . . . descendit de caelis . . . et incarnatus est; foi o amor que fez nascer Jesus Cristo numa carne passível e enferma, inspirou a obscuridade da Sua vida oculta, alimentou o zelo da Sua vida pública. Se Jesus se entrega por nós à morte, é porque cede ao «excesso dum amor sem medida»; se ressuscita, é « para nossa justificação»; se sobe ao céu, é «como precursor que vai preparar-nos um lugar» naquela morada de beatitude; envia «o Espírito consolador» para não «nos deixar órfãos": institui o sacramento da Eucaristia como memorial do Seu amor. Todos estes mistérios têm a sua origem no amor.
É preciso que a nossa fé neste amor de Jesus Cristo seja viva e constante. E porquê? Porque é um dos mais poderosos sustentáculos da fidelidade.
Vede S. Paulo. Jamais homem algum trabalhou e se consumiu como ele por amor de Jesus. Um dia em que os inimigos atacam a legitimidade da sua missão, é obrigado, para se defender, a fazer a narração das suas obras, trabalhos e sofrimentos. Esta descrição viva, conhecei-la muito bem; mas é sempre uma alegria para a alma reler essa página, única nos anais do apostolado: «Muitas vezes, diz o grande Apóstolo, vi a morte de perto; cinco vezes sofri o suplício de flagelação: três vezes fui vergastado, e uma vez apedrejado; três vezes naufraguei; passei um dia e uma noite no fundo do mar. E as minhas viagens inúmeras, cheias de perigos; perigos por parte dos salteadores, perigos por parte dos meus patrícios, por parte dos infiéis; perigos nas cidades, perigos nos desertos, perigos no mar; os meus trabalhos e sofrimentos, as minhas numerosas vigílias; as torturas da fome e da sede, os múltiplos jejuns, o frio, a nudez; e, sem falar de tantas outras coisas, lembrarei as minhas preocupações diárias, a solicitude de todas as igrejas que fundei». Noutro lugar aplica a si as palavras do Salmista: «Por amor de Vós, Senhor, todos os dias somos entregues à morte, somos considerados como ovelhas destinadas ao matadouro ... » Não obstante, acrescenta logo a seguir: «Mas em todos estes perigos saímos vencedores»: Sed in his omnibus superamus. E onde encontra ele o segredo desta vitória? Perguntai-lhe porque suporta tudo, até mesmo o «tédio de viver»; por que é que em todas essas provações permanece unido a Cristo, com tão inabalável firmeza que «nem a tribulação nem a angústia, nem a perseguição, nem a fome, nem a espada o podem separar de Jesus"?  Responder-vos-á: Propter eum, qui dilexit nos - « por amor d'Aquele que nos amou». O que o  sustenta, fortalece, anima, estimula, é a profunda convicção do «amor que Jesus Cristo lhe tem»: Dilexit me et tradtidit semetipsum pro me.
De fato, o sentimento que nele faz nascer esta ardente convicção é que «não quer mais viver para si",
ele que blasfemou o nome de Deus e perseguiu os cristãos, «mas quer viver para Aquele que o amou a ponto de dar a própria vida por ele». Caritas Christi urget me . . . - "É o amor de Cristo que me impele», exclama; «por isso me entregarei por Ele, de bom grado me sacrificarei sem reserva, sem conta»; esgotar-me-ei pelas almas que são conquista sua: Libentissime impendam et superimpendar. 
Esta convicção de que Jesus Cristo o ama explica realmente toda a obra do grande Apóstolo.
Não há nada que tanto incite ao amor, como o saber-se e sentir-se amado. "Todas as vezes que pensamos em Jesus Cristo, diz Santa Teresa, lembremo-nos do amor com que nos cumulou de benefícios . . . O amor chama o amor».
Mas como havemos de conhecer esse amor, que é a base de todos os estados de Jesus, que os explica e resume todos os seus motivos? Onde haurir esta ciência, tão salutar e fecunda, que S. Paulo dela fazia o objeto da sua oração pelos cristãos? Contemplando os mistérios de Jesus, se o fizermos com fé, o Espírito Santo, que é o amor infinito, descobrir-nos-á as suas profundezas e levar-nos-á ao amor em que têm a sua origem.
Há uma festa que, pelo seu objeto, nos recorda dum modo geral o amor que o Verbo Incarnado nos
mostrou: é a festa do Sagrado Coração. Em consequência das revelações de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria, a Igreja fecha, para assim dizer, com esta festa, o ciclo anual das solenidades do Salvador; como se, chegada ao termo da contemplação dos mistérios do seu Esposo, nada mais lhe restasse do que celebrar o amor que os inspirou a todos.
A exemplo da Igreja, depois de termos passado em revista os principais mistérios do nosso divino chefe, dir-vos-ei algumas palavras sobre a devoção ao Sagrado Coração, seu objeto e prática. Mais uma vez nos daremos conta desta verdade capital: para nós, tudo se resume no reconhecimento prático do mistério de Jesus.

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