Baseado no livro “Ejercicios anuales – para uso de sacerdotes, religiosos y seglares selectos, Pe. Pedro Pallas, S.J., Editorial Sal Terrae, Santander, 1961, pp. 434-444″.
Enumeramos e comentamos aqui brevemente uma série de ilusões e confusões na vida espiritual. Umas são mais próprias de principiantes; outras, dos mais adiantados. Umas tocam pontos mais doutrinários, ou de princípios; outras, pontos práticos ou de método. Esses erros e desorientações podem acabar servindo como ocasiões de esclarecimentos úteis para as almas que os têm, e a Providência acaba se aproveitando deles para completar a formação ascética delas.
  1. Querer imitar em tudo aos santos.  O principiante lê, se entusiasma e quer imitar tudo o que lhe pareceu extraordinário na hagiografia; com isto, se sobrecarrega com pesos insuportáveis. Assim aconteceu com Santo Inácio em Manresa, desejando fazer o que São Francisco, São Domingos e todos os santos fizeram. É o erro de colocar a santidade nas práticas exteriores, mais do que na perfeição dos desejos e na retidão das intenções, e na aquisição da graça. É, também, confundir as diversas santidades às quais Deus chama os diversos santos, com a santidade à qual Deus chama a todos.
  2. Confundir a virtude com os bons desejos. ― Um pouco de oração fervorosa, alguns propósitos ardentes, algumas fortes compreensões sobre a brevidade da vida, a ilusão dos prazeres, etc., algumas frases admiráveis que lhe vieram em mente na oração, alguns planos de vida estabelecidos com precisão jurídica baseados em notas espirituais, tudo isso faz o iniciante crer que levantou vôo definitivo até as alturas, de onde não sairá jamais. Está sonhando. Para conseguir de verdade esses ideais que se forjou tão facilmente, terá que lutar muito, e se vencer muitas vezes. Cairá. Deus queira que se levante.
  3. Querer santificar-se com ímpeto.  O principiante concebe um bom desejo e gostaria de chegar até a perfeição com um só lance, ainda que seja às custas de grande esforço e violência. Tem impaciência para subir, e não concebe uma ascensão lenta e constante. Estas pessoas esquecem que a santificação é uma obra de toda a vida, que a meta final é a santidade infinita de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nós procuramos imitar; e ignoram que, para a santidade, faz falta conseguir hábitos estáveis, que supõe a prática de muitos atos, e isso supõe tempo e ocasiões.
  4. Alarmar-se diante das tentações.  Assim como se enganou crendo que era santo somente com bons desejos, também se engana agora crendo-se muito pecador, por causa das coisas espantosas que passam por sua cabeça, coisas que talvez nunca tinham passado antes dele começar a levar uma vida espiritual. Julga essencial o que é secundário. Crê que para ser santo é necessário fazer com que essas coisas jamais venham a passar por sua mente. Não vê que, com a mais perfeita das vontades, é possível ter horríveis tentações, que não tiram nem acrescentam nada de mérito ou culpa, contanto que a vontade não as aceite.
  5. Desanimar-se diante das desolações.  A pessoa que se converteu, ou até mesmo que já pratica a religião há algum tempo, erroneamente concebeu a ilusão de que o entusiasmo inicial nunca mais a deixaria. E, agora, desanima ao sentir desinteresse pela virtude, pensando que tudo está perdido e não há nada mais que possa ser feito. Confunde a devoção sensível com a virtude; não se dá conta de que a vontade deve seguir sempre firme e sem medo pelo caminho do bem, pouco importa para que lado o vento do sentimento sopre. Não se dá conta de que Deus está começando a tratá-lo como a um adulto na vida espiritual, e não como a uma criança com mimos melosos. E isso, mais do que indicar retrocesso na santidade, indica que se inicia uma etapa mais madura e construtiva.
  6. Devoções, mais do que virtudes.  Se sobrecarrega com terços, devoções, novenas, medalhas, largas horas na igreja, hábitos… e mede com isso seu progresso na santidade; enquanto isso, talvez, é incapaz de sofrer com paciência algum incômodo causado pelo próximo, se entrega à falar mal dos outros, fomenta a vaidade, não sabe o que é abnegação, e se deixa levar pelo egoísmo sem qualquer escrúpulo. Têm vícios cobertos com um verniz piedoso, para que sejam menos visíveis e possam ser mais dificilmente corrigidos. Este estado é propriamente o de uma desorientação ascética fundamental.
  7. Fanatismo nas devoções.  Umas imagens famosas que visita, um número incalculável de Ave-Marias que recita mecanicamente, alguns gestos devotos e uma liturgia sui generis, devoção a algum santinho que, talvez, nem tenha valor histórico, aquela festa tradicional que respeita impecavelmente, as procissões, os santuários, as velas que acende, os quadros e santinhos de uso doméstico, e uma infinidade de práticas que recebeu dos seus antepassados, mas que ele nem sabe o que significam. Eis, aqui, o que ele considera como religiosidade. Enquanto isso, os Sacramentos, a fé, a instrução religiosa e o estudo, a vida da graça, a caridade para com o próximo, a penitência… tudo isso é esquecido como se fossem meros acidentes ascéticos. É puro fanatismo, age como os selvagens, mas com temas católicos.
  8. Credulidade em coisas discutíveis.  Mais do que os critérios expostos pelos Papas, os Santos, e os autores aprovados, o que produz efeito nele são as aparições, visões, êxtases, milagres e espetáculos religiosos, e vai sempre à caça de sensacionalismos apocalípticos. Vibra de emoção diante da primeira revelação curiosa da devoção histérica. O grande milagre que é a permanência da Igreja Católica o mundo, ao longo dos séculos, com sua perfeição moral, sua caridade, seu apostolado, tudo isso lhe valem bem pouco. Esquece como a Igreja vai bem devagar em admitir esses fenômenos extraordinários da vida mística e, mesmo quando aprovados, o quão pouco se apoia neles para a vida cristã fundamental.
  9. Atenção em reformar o próximo.  Quando se formou algumas poucas ideias sobre a vida espiritual e o apostolado, e concebeu alguns sonhos muito belos, sente o prurido de se meter a reformar o mundo, a família, as pessoas, a nação, a ordem religiosa, a diocese! Vê tudo imperfeito, e se sente iluminado para corrigir tudo radicalmente; só não vê seus defeitos próprios. Critica tudo, e gostaria de resolver tudo com uma canetada, pronunciando decretos reais. Esquece que este mundo é um vale de lágrimas, ainda quando aspiramos ao que possa haver de melhor, e que a vida do homem sobre a terra é um combate.
  10. Guiar-se por sua cabeça. ― Ignora muitas coisas, mas sobretudo ignora sua própria estreiteza de conhecimento. Uns poucos princípios práticos que ele formou à sua maneira, com maior ou menor solidez, já servem para resolver tudo. Nunca consulta ninguém; ele já sabe para onde vai e é inútil que se lhe explique, porque não o compreenderiam. Justamente, o tempo mais favorável aos disparates é quando se sabe das coisas um pouquinho; quando não se sabe de nada, então se dá confiança aos conselhos dos outros que, se sabem muito, nos fazem acertar. Mas, quando sabemos um pouco, nós não pedimos conselho aos outros e, ao mesmo tempo, ainda não temos conhecimento suficiente para acertar. Além do que, em nossos próprios assuntos, somos sempre muito maus conselheiros para nós mesmos.
  11. Amigo das novidades.  É partidário do último livro de meditações editado, sobretudo se a tipografia e a cor são atrativos. Entusiasma-se pelo mais moderno sistema ascético e de apostolado, sem olhar seu valor intrínseco. O novo pelo novo. Os livros, os diretores, os métodos melhores são aqueles que não estão ao seu alcance; aquilo que não está na sua mão, não vale nada. Sempre pensando no que poderia ter ou fazer, nunca aproveita o que tem à sua disposição. No fundo é a superficialidade de critério, é a vaidade e a extravagância.
  12. Reduzir tudo à boa vontade.  As tantas regras, as normas, os diversos modos de rezar, os exercícios, exames, retiros, devoções, penitências, promessas, planos… lhe parecem complicações demasiadas. E encontrou a solução na frase de Santo Agostinho: “Ama et fac quod vis ― Ama e faz o que queres”. Cumprir os mandamentos, ser boa pessoa e tudo mais como lhe convém. Mas é claro que, no fim, deixando as devoções com que se fomenta a devoção essencial, que é a caridade, acaba-se sem devoção e sem devoções; apaga-se o fogo, do qual foram tiradas as brasas que o alimentavam.
  13. Vocação de incompreendido. ― Nasceu para fazer as coisas sozinho. Foi passando de confessionário em confessionário, para encontrar no padre um homem compreensivo, e a experiência lhe disse que ninguém o pode compreender. Na verdade, não busca a direção de nenhum outro, senão daquele que põe um selo oficial nas opiniões que expõe. É o egoísmo transformado em sistema, que já não se contenta com os fatos, mas que se estende até a mentalidade.
  14. Sentir-se privilegiado. ― Algumas horas devotas de oração, umas ideias belas e fecundas que lhe inspiraram, umas instruções luminosas que percebeu que vinham do céu, e até algumas vozes claras do Senhor, produzem em si o complexo de iluminado e se sente um Enviado de Deus para transmitir uma mensagem ao mundo. As hierarquias que hão de julgar suas concepções não estão a altura disto, e não compreendem a grandeza da mensagem, pois são todos terrenos. Ninguém tem direito de discutir o que Jesus lhe disse. Na mensagem divina que recebeu não está dito expressamente que foi dispensado da obediência aos sucessores de Pedro e dos Apóstolos, mas supõe que de fato sim, e assim se faz um heresiarca.
  15. Pensar que seu sistema é único. ― Com sua experiência pessoal, foi se forjando, para si mesmo, seu sistema de vida espiritual, seu acervo de critérios, seus modos de rezar, de exames, de trabalhar, de converter, de aconselhar, de ler, de estudar, de lutar, etc… e está persuadido de que isto é o melhor. Esquece que o Espírito Santo pode levar à santidade por vários caminhos, e que cada homem, segundo sua maneira de ser, emprega melhor uns que outros sistemas. Empenha-se em fazer com que todo mundo passe por seu caminho. Isto é um impasse mental ascético e muita autossuficiência.
  16. Pessimismo apostólico. ― Seja por desenganos pelos quais passou em seus projetos, seja para justificar uma atitude preguiçosa e cômoda, exaltou tanto a intervenção da Providência que aos homens apostólicos já não resta mais nada a fazer. Não tem motivo para se cansar; Deus é bom e acerta tudo na última hora, usando de alguns recursos que sempre produzem seus efeitos. Já não se vê, segundo esta teoria, que papel a Igreja, os sacramentos, a pregação, o sacerdócio, etc., ocupam no mundo, ainda que instituídos por Cristo.
  17. Confundir zelo com nervosismo. ― Tem uma grande necessidade de mover-se, de chamar a atenção, de fundar novas obras, de desenvolver atividades, de reformar, de mandar, de intrometer-se em tudo. Chama isso de zelo, bem das almas, glória divina, propagação da fé, extensão do reino de Deus, melhoria da sociedade…, mas no fundo é nervosismo desatado, sem tom nem som, que da tiros aos ventos, sem ordem em seus trabalhos, sem plano a distância, sem hierarquia de valores. Não faz o que lhe pedem, mas tem que mover-se seja como seja, gastando o tempo em atividades efêmeras e ineficazes.
  18. Confundir humildade com timidez. ― O tímido diz que não serve para nada, que se contenta com um cantinho qualquer, que não nasceu para as alturas, que não quer subir nada, que cede seus diretos com muito gosto, que teme a petulância, que são muitas complicações para ele, que prefere um ofício mais discreto e humilde. Até com os gestos parece esquivar-se das grandezas e perigos que o espantem. Pode ser também comodidade em não buscar responsabilidades que requerem esforço e desgaste; e com tanto falar de humildade, no fundo teme os possíveis fracassos e humilhações em seus possíveis projetos.
  19. Confundir sinceridade e grosseria. ― Quer ser sincero, quer falar com o peito aberto, não quer enganar ninguém, diz as coisas sem rodeios, não está disposto as comédias e ao fingimento social. Por isso, toma a liberdade de falar clara e diretamente, com fórmulas que não dão lugar a dúvida, mas que molestam sem necessidade e irritam a vontade dos que o rodeiam, os quais justamente exigem ao menos uma urbanidade elementar. Se Deus quisesse tanta claridade, teria feito nossas frontes transparentes e não opacas. Deve-se dizer a verdade, mas nem sempre toda a verdade, porque pode-se fazer mal em dizê-la; e certas pessoas, não compreendendo isso, acham que nunca se deve ficar quieto, em qualquer circunstância que seja.
  20. Confundir alegria com alvoroço. ― A superficialidade inclina ao externo, ao ruidoso, ao exaltado, ao chamativo, ignorando que existe no interior das almas profundas satisfações e alegrias, mais elevadas e duradouras que todo o alvoroço impressionista. Rir a gargalhadas não significa felicidade; o gritar estridente não pressupõe uma expansão completa do que temos em nosso interior. No meio da sensibilidade da vida familiar e retirada, e mesmo em meio a esforços e contratempos, encontramos uma alegria substancial, maciça, completa, de grande qualidade, que afeta a todas as potências do homem.
  21. Confundir organização com burocracia. ― É a ilusão de muitos apóstolos. Quando montaram um punhado de comissões, secretarias, reuniões, locais, calendários, programas, divisões, subdivisões, chefes, subalternos…, se regozijam na maravilhosa organização que montaram, pensando que chegaram ao ápice de suas obras. Não meditam, calculam, estudam, observam qual a influência efetiva de todo o aparato que construíram nas mentes e nos corações. Não conta somente o número dos assistentes, mas também o impacto que receberam; fiscaliza para ver se estão mais piedosos, mais instruídos, se vivem na graça de Deus, se fazem boas obras, se têm uma vontade educada para a luta contra as dificuldades da vida. A bem da verdade, seria conveniente que o apóstolo pensasse se, com a metade das complicações, não poderia chegar mais ao fundo da questão; e se os esforços que se põem em formalidades burocráticas não dariam mais resultados se focados a uma ação direta e mais espiritual.
  22. Confundir amor com sensualidade. ― Será o cavalo de batalha de muitos sacerdotes e religiosos. A sensualidade luta para correr solta, e encontra às vezes uma elegante solução. A caridade é a mais sublime das virtudes, o amor é a necessidade mais peremptória do mundo. Tem que se fazer tudo a todos para ganhar todos para Cristo; tem de se amar até o delírio, tem de se abrasar o mundo de amor. Deus é amor, e em nossos tempos Jesus aparece mostrando seu Coração, para dar a entender a razão de ser de toda a sua obra, e para dar diretrizes a todas as nossas obras. Quando este amor inclui a todos os homens, leprosos e sãos, feios e bonitos, ao homem fecundo e ao inútil, etc…, então é um amor sem perigo. Mas quando a doutrina sublime do amor é utilizada para justificar certas amizades egoístas, ou sensibilidades de má lei, ou abertas a sensualidades, então esta doutrina é profanada.
  23. Confundir o moderno com o modernista. ―  Existe um duplo extremo em focar as coisas novas que vão surgindo e que têm suas aplicações nas atividades da alma: um é encerrar-se numa obstinação tacanha e fanática, num tradicionalismo inflexível, num negativismo sistemático do novo; e outro é adorar a novidade e pretender implantá-la sem motivos, substituindo o antigo. Deus, por algum motivo, nos deu a faculdade de raciocinar, com a qual somos capazes de progredir. A Igreja não deve apresentar-se com um aspecto fossilizado, de peça estranha de museu histórico, mas uma face com vitalidade perenemente renovada como organismo sadio e forte. Por outro lado, não se pode rejeitar, sem mais nem menos, o que é fruto da reflexão e experiência de muitos séculos, não se deve mudar o que sempre foi feito à não ser para ganhar com a mudança.
Enfim, talvez uma ilusão muito funesta seja a de considerar-se invulnerável às ilusões. Devemos vigiar humilde e atentamente, para não sermos vítimas de nenhuma delas.