18 de março de 2009

Do excesso de altivez, e de como os orgulhosos muitas vezes chegam às mais profunda humilhação




Certa vez reinava o poderoso Imperador Joviniano; estando ele deitado na sua cama, o coração lhe inchou inacreditavelmente de orgulho, e ele disse para si mesmo: "Haverá outro Deus além de mim?"
Enquanto ainda pensava nisso, o sono o dominou, e quando se ergueu cedo pela manhã, reuniu seus guerreiros, dizendo-lhes:
- Meus caros, será bom comermos alguma coisa. pois hoje tenho vontade de ir à caça. Estavam dispostos a cumprir sua vontade, comeram e partiram para caçar. Contudo, enquanto o imperador cavalgava, assaltou-o um calor intolerável, pareceu-lhe que morreria, se não pudesse banhar-se em água fria. Por isso olhou em torno e viu a distância um grande lago. Falou então aos seus soldados:
- Fiquem aqui, até que eu tenha me refrescado.

Depois esporeou seu cavalo e galopou até à água, saltou do cavalo, tirou todas as roupas, entrou na água e ficou ali até estar totalmente refrescado. Mas enquanto estava na água chegou certo homem, que era parecido com ele em rosto e postura, vestiu sua roupa, montou seu cavalo, e dirigiu-se até os guerreiros do imperador. Foi recebido por todos como o imperador em pessoa, e quando a caça terminara dirigiu-se com eles ao castelo. Depois Joviniano saiu depressa da água, não encontrando seu cavalo nem sua roupa. Admirou-se muito com isso, e ficou muito triste; porém estando nu e não vendo ninguém, pensou: "Que farei agora? Fui miseravelmennte logrado". Por fim voltou a si e disse: "Aqui perto mora um soldado a quem promovi de posto; irei até ele e arranjaarei cavalo e roupas, depois cavalgarei até meu castelo e verei como e por quem fui confundido dessa maneira." Joviniano andou pois inteiramente nu até à moradia daquele soldado e bateu no portão. O porteiro, porém, perguntou pela razão de estar batendo, e Joviniano disse:
- Abre a porta e verás quem sou.
O porteiro abriu a porta e depois de vê-lo, espantou-se e indagou:
- Mas quem és? O outro respondeu:
- Sou o Imperador Joviniano; vai até teu senhor e diz-lhe que me empreste roupas; pois perdi meu cavalo e minhas vestes.
O outro, porém, respondeu:
- Estás mentindo, miserável ladrão, pois antes de ti o senhor Imperador Joviniano passou por aqui a caminho do castelo, com seus guerreiros; meu senhor o acompanhou, já voltou e está sentado à mesa. Mas vou anunciar-lhe que te fazes passar pelo imperador. O porteiro apresentou-se logo ao seu senhor e contou-lhe o que o outro dissera. Assim que escutou tudo, o soldado mandou que lhe trouxessem aquele homem; e contemplanndo-o, o guerreiro não o reconheceu, mas o imperador o reconhecia bem. Então o guerreiro disse:
- Diz-me quem és e como te chamas. O outro respondeu:
- Sou o Imperador Joviniano, e nesse e nesse tempo te promovi a um posto superior.
O outro retrucou:
- Oh, miserável ladrão, com que atrevimento te chamas de imperador? Pois há pouco o meu senhor, o imperador, cavalgou por aqui em direção do castelo. Eu o segui por algum tempo e estou de volta. Mas não escaparás sem castigo por te haveres denominado imperador. E mandou que lhe dessem uma boa surra, e o expulsassem da sua propriedade. Quando Joviniano fora surrado e escorraçado, chorou amargamente e disse: "O meu Deus, como é possível que o guerreiro a quem recentemente promovi não me conheça mais e me tenha mandado surrar tão cruelmente?" Nisso lhe ocorrreu: "Aqui perto mora um dos meus conselheiros,um duque; vou até ele, comunicar-lhe minha aflição. Dele receberei roupas e poderei voltar ao meu castelo." Quando chegou ao portão da moradia do duque, bateu, e o porteiro, escutanndo as pancadas, abriu o portão, e vendo um homem despido, admirou-se e disse:
- Meu caro, quem és e por que chegaste aqui assim nu? O outro porém respondeu:
- Sou o imperador, e por acaso perdi meu cavalo e minhas roupas, por isso venho ver o duque para que ele me ajude na minha aflição; por isso peço que apresentes meu pedido ao teu senhor. Quando o porteiro escutou isso admirou-se, voltou à casa do seu senhor e contou-lhe tudo. O duque, porém, disse:
- Manda-o entrar!
Quando entrou, porém, ninguém o reconheceu, e o duque lhe disse:
- Afinal, quem és? O outro respondeu:
- Sou o imperador, e fiz com que tivesses fortuna e honrarias, fiz de ti um duque, e meu conselheiro.
O duque, porém, disse:
- Miserável demente! pouco antes da tua chegada cavalguei com o imperador, meu senhor, até o seu castelo, e acabo de voltar de lá; mas não vai escapar sem castigo por teres querido apoderar-te de tal honra.
Mandou que o encerrasse numa prisão, a pão e água, depois tiraram-no de lá, deram-lhe uma boa surra, e expulsaram-no dos domínios do duque. Quando estava assim exilado, Joviniano emitiu mais suspiros e lamentações do que se poderia acreditar, e disse de si para si: "Ai de mim, que farei, agora que me tornei objeto de insulto e vergonha do povo? Será melhor ir ao meu castelo, pois os meus certamente me reconhecerão, e se não for assim, ao menos minha mulher me reconhecerá por certos sinais."
Depois disso foi sozinho ao seu palácio, bateu no portão, e quando o porteiro escutou as pancadas abriu. Vendo-o, disse-lhe:
- Mas quem és?
o outro respondeu:
- Admira-me que não me reconheças, pois estás comigo há tanto tempo.
O outro, porém, disse:
- Estás mentindo! Estou há muito tempo com o Immperador, meu senhor.
E o outro retrucou:
- Pois eu sou o imperador, e se acreditas nas minhas palavras, peço por amor de Deus que vás procurar a imperatriz e lhe diga que através desses sinais ela providencie meus trajes imperiais, pois por acaso perdi todos os meus; os sinais que vou te dar ninguém na terra conhece além de nós dois.
E o porteiro disse:
- Não duvido de que estejas louco, pois o meu senhor, o imperador, neste momento está à mesa, e ao lado dele a imperatriz.
Mas vou anunciar a ela que disseste que és o imperador, e estou certo que será severamente punido.
O porteiro foi pois ter com a imperatriz e lhe disse tudo o que ouvira. Ela ficou muito perturbada, virou-se paara o seu marido e disse:
- Senhor, sabeis que seguidamente aconteceram entre nós, em segredo, coisas singulares. Agora um sujeito devasso que está no portão manda-me dizer pelo porteiro que é o imperador.
Quando o falso imperador ouvira isso, mandou que o outro entrasse na presença de todos; quando foi introduzido assim nu, um cão que sempre o amara muito saltou para morder seu pescoço. A criadagem impediu o cão de matar o homem, que não sofreu mais nenhum dano. Também havia um falcão num poleiro, que, assim que o avistou, rebentou sua corrente e fugiu voando da sala.
Nisso o imperador disse a todos que estavam sentados na sala:
- Meus caros, ouçam minhas palavras, que direi a este vagabundo. Quem és, e por que vieste?
O outro porém respondeu:
- Oh, senhor, que pergunta singular. Eu sou o imperador e dono deste lugar.
Então o imperador disse a todos os que estavam sentados à mesa ou postados ao redor dela:
- Dizei-me pelo juramento que me prestastes, quem é quem é vosso imperador e senhor?
E eles responderam:
- Oh, senhor, pelo juramento que vos prestamos, a resposta é simples: nunca vimos aquele ladrão, mas vós sais nosso senhor e imperador, a quem conhecemos desde a juventude, por isso vos pedimos unanimemente que aquele ali seja castigado, para que todos tirem um exemplo dele, e nunnca mais se tente uma tal insolência.
Diante disso o imperador virou-se para a imperatriz e disse:
- Diz-me, minha senhora, pela fidelidade que me dás: conheces aquele homem que se diz imperador e teu senhor?
Mas ela respondeu:
- Oh, caro senhor, porque me perguntas isso? Não estou contigo há mais de trinta anos, e não te dei três filhos? Uma coisa porém me admira, é como esse patife chegou a saber de fatos secretos entre nós dois. E o imperador disse então ao que fora introduzido na sala:
- Meu caro, como ousaste fazer-te passar por um immperador? Decretamos que sejas hoje amarrado à cauda de um cavalo, e se tiveres a ousadia de dizeres isso mais uma vez, vou te condenar à morte mais vergonhosa.
Depois disso chamou seus guardas e disse:
- Ide e amarrai este homem à cauda dum cavalo, mas não o mateis.
E foi o que aconteceu. Mas depois as entranhas daquele homem se moveram mais do que alguém possa imaginar, e duvidando de si mesmo disse:
- Amaldiçoado o dia em que nasci e que meus amigos me abondanaram! Minha mulher e meus filhos não me reconheceram. E enquanto falava assim pensou: "Aqui perto mora meu confessor, vou dirigir-me a ele: talvez me reconheça, pois muitas vezes ouviu minhas confissões."
Depois dirigiu-se ao eremita e bateu na janela da sua ermida. Mas o outro indagou:
- Quem está aí?
E ele respondeu:
- Sou eu, o Imperador Joviniano. Abre tua janela paara que eu possa falar contigo.
Assim que o eremita escutou a voz, abriu a janela, mas vendo o homem bateu-a com força fechando-a de novo, e disse:
- Afasta-te de mim, maldito, pois não és o imperador, e sim o diabo em forma humana! Quando o outro escutou isso caiu no chão de tanta dor, arrancando os cabelos da cabeça e da barba, e disse:
- Ai de mim, que devo fazer?
Dizendo isso lembrou-se de como recentemente, quando jazia na cama, seu coração inchara de orgulho, e que ele dissera:
- Existirá outro Deus além de mim? - Logo bateu na janela do eremita e disse:
- Ouvi, eu vos peço, por amor ao crucificado ouvi minha confissão, mesmo de janela fechada.
E o outro disse:
- Para mim está bem.
Ele então confessou entre lágrimas toda a sua vida, especialmente como se colocara acima de Deus e dissera não acreditar em nenhum outro Deus senão ele próprio. Quando a confissão e a absolvição tinham passado, o eremita abriu a janela, reconheceu-o, e disse:
- Bendito o Altíssimo, agora te reconheço; tenho aqui umas poucas peças de roupa, veste-as e vai ao teu palácio, e espero que lá te reconheçam.
Depois o imperador partiu, dirigiu-se ao seu palácio, e bateu no portão. O porteiro abriu logo e recebeu-o com o maior respeito. Mas o outro disse:
- Então me conheces?
E o porteiro retrucou:
- Ora, sim, meu senhor, e muito bem. Apenas me admiro porque estive o dia inteiro aqui parado e não vos vi sair de casa.
O outro entrou no salão de reuniões, e todos os que o viram baixaram as cabeças. Mas o outro imperador estava com sua mulher.
Porém um guerreiro que saiu do aposento real olhou para ele, voltou para o quarto e disse:
- Meu senhor, na sala está um homem diante do qual todos se curvam honrando-o, e é tão parecido em tudo connvosco, que realmente não sei qual de vós é o imperador. Quando o falso imperador escutou isso, disse à imperatriz:
- Vai até lá e vê se o conheces.
Ela porém saiu depressa e quando o viu admirou-se, voltou ligeiro aos aposentos e falou:
- Oh, senhor, anuncio-vos que há outro lá fora, mas não posso absolutamente distinguir qual de vós é o meu senhor.
O outro então disse:
- Se for assim, quero sair e trazer a verdade à luz do dia.
Mas quando entrava no salão, pegou o outro pela mão, fê-lo parar-se ao seu lado, chamou todos os guerreiros que estavam na sala, e a imperatriz, e disse:
- Pelo juramento que me prestastes, dizei-me agora qual de nós é vosso imperador. E a imperatriz respondeu primeiro:
- Meu senhor, quero responder em primeiro lugar; mas Deus nas alturas seja minha testemunha: não consigo de modo algum afirmar qual de vós é meu senhor.
E assim disseram todos os demais. E ele disse:
- Meus caros, escutai-me. Este é o vosso imperador e senhor; mas uma vez ele se ergueu contra Deus, por isso Deus o puniu, o conhecimento dos homens afastou-se dele, até que ele tivesse compensado ao seu Deus. Eu, porém, sou seu anjo da guarda e guarda da sua alma, administrei seu império enquanto ele estava fazendo penitência; agora, porém, sua penitência está cumprida, ele desagravou seus pecados, por isso obedecei-lhe, e eu vos recomendarei a Deus. Com essas palavras desapareceu diante dos olhos deles, mas o imperador agradeceu a Deus e viveu toda a sua vida em paz, dedicando-a a Deus. Que Este nos permita fazermos o mesmo.

Histórias medievais compiladas por Hermann Hesse. (Geschichten aus dem Mittelalter, hrsg. von Hermann Hesse. Ü.: Lya Luft. São Paulo: Distribuidora Record.

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