CAPÍTULO III
Testemunhas de Além-túmulo.
Em sua infinita misericórdia, Deus, depois de haver revelado o dogma do
inferno, tem permitido, de onde em onde, que alguma alma venha da
eternidade para confirmar-nos a existência daquele lugar de penas. Tais
aparições são mais frequentes do que comumente se crê; e quando são
atestadas por pessoas idôneas e fidedignas, tornam-se fatos inegáveis,
que se admitem como todos os outros fatos da história. Apresso-me,
porém, a declarar que não entendo trazer esses fatos como argumento
principal e básico com que se demonstre e se estabeleça o dogma do
inferno, porque este nos é demonstrado pela palavra infalível de Deus;
narro tais aparições somente para confirmar e elucidar essa verdade, e
como argumento de salutar meditação.
Monsenhor Ségur, no seu áureo opúsculo sobre o inferno narra três fatos,
cada qual mais autêntico, acontecidos não faz muito tempo.
*
* *
O primeiro, diz ele, sucedeu quase em minha família, pouco antes da
terrível campanha de 1812, na Rússia. Meu avô materno, o Conde
Rostopkine, governador militar de Moscou, era intimamente relacionado
com o general Conde Orloff, tão valoroso quanto ímpio.
Um dia, após a ceia, o conde Orloff e um seu amigo, o general V…,
volteriano como ele, puseram-se a ridicularizar a religião e sobretudo o
inferno:
– Mas…, disse Orloff, e se houvesse alguma coisa além do túmulo?
– Neste caso…, diz o general V…, o primeiro que morrer virá avisar o outro; de acordo?
– Pois não, responde Orloff.
E ambos prometeram seriamente não faltar à palavra.
Algumas semanas após, desencadeou-se um daquelas guerras que Napoleão
sabia suscitar; o exército russo foi chamado às armas, e o general V…
recebeu ordem de partir incontinente para um posto de comando.
Duas ou três semanas depois da partida de Moscou, quando meu avô se
levantara, bem cedo, viu abrir-se bruscamente a porto do quarto e entrar
o conde Orloff, com roupa de dormir, de chinelos, cabelo em desalinho,
olhos esbugalhados, pálido como cera.
– Oh! Orloff vós aqui a esta hora? Neste traje? Que aconteceu?
– Meu caro, responde Orloff, eu perco a cabeça; vi o general V…
– Oh! Ele já voltou?
– Não, continua Orloff, atirando-se a um divã, não, não voltou, e é isto que me espanta.
Meu avô nada compreendia e procurava acalmá-lo.
– Contai-me, então, lhe disse, o que aconteceu e o que significa tudo isto.
Fazendo grande esforço para se acalmar, o conde Orloff contou o seguinte:
– Meu caro Rostopckine, não faz muito, o general V… e eu, juramos que o
primeiro que morresse, viria avisar o outro se há de fato alguma coisa
além do túmulo. Ora, pela madrugada, enquanto estava tranqüilo na cama,
acordado, sem pensar no amigo nem no juramento, abre-se de repente o
cortinado do meu leito e vejo, a dois passos de mim, o general V… de pé,
desfigurado, com a mão direita no peito, e me fala: “Existe um inferno,
e eu lá estou…” e desapareceu. Na mesma hora corri até cá; eu perco a
cabeça! Que coisa estranha! não sei o que pensar!
Meu avô tranquilizou-o como pôde: falou-lhe de alucinação, fantasia… que
ele talvez estivesse dormindo… que às vezes dão-se casos
extraordinários, inexplicáveis… E procurava persuadi-lo com outros meios
termos, que apesar de nada valerem, servem para consolar os céticos.
Mandou preparar o coche e acompanhou o conde à sua casa.
Dez ou doze dias depois deste estranho acontecimento, um estafeta do
exército comunicava ao meu avô, entre outras coisas, a morte do general
V…
Naquela madrugada em que o conde Orloff o tinha visto e ouvido, o
infeliz general, saindo a estudar a posição do inimigo, foi varado por
uma bala e caiu morto.
“Existe um inferno, e eu lá estou…”
Eis as palavras de um que veio do outro mundo!
*
* *
O segundo fato é referido pelo mesmo autor, que o tem por indubitável,
como o precedente, pois o ouviu da boca de um repeitabilissimo
eclesiástico, superior de importante comunidade, o qual por sua vez,
soube os pormenores mediante um parente da senhora, com a qual se deu
tal fato. Naquele tempo, isto é, por ocasião do Natal de 1859, ela ainda
vivia e contava pouco mais de quarenta anos.
Achava-se essa dama em Londres no inverno de 1847 e 1848; enviuvara aos
29 anos, era muito rica e muito amiga dos divertimentos mundanos. Entre
as pessoas elegantes que frequentavam a sua casa, notava-se
especialmente um moço, cujas contínuas visitas a comprometiam não pouco e
cuja vida estava longe de ser edificante.
Uma noite, a senhora lia não sei que romance para conciliar o sono.
Ouvindo bater o relógio, apagou a vela e dispunha-se para deitar, quando
percebeu, com grande assombro, que uma luz estranha e pálida vinha da
porta do salão contíguo e espalhava-se a pouco e pouco no quarto,
aumentando sempre. Não sabendo o que era, do pasmo passou ao medo; eis
senão quando, viu abrir-se lentamente a porta do salão e entrar no
quarto o jovem desregrado, o qual, antes que ela pudesse pronunciar
palavra, aproximou-se, tomando-a pelo braço esquerdo, apertando-lhe
fortemente o pulso, e com aceno desesperado, lhe falou em inglês:
– Existe o inferno!
Foi tão grande o susto que a senhora perdeu os sentidos. Voltando a si,
tocou nervosamente a campainha para chamar a criada, que a tendeu;
entrando no quarto, esta sentiu logo um cheiro de queimado e chegando-se
à ama, que com dificuldade articulava umas palavras pôde ver que tinha
ao redor do pulso uma queimadura tão profunda que a carne desaparecera e
ficava à mostra o osso. Observou além disso, que da porta do salão até o
leito e do leito à porta do salão estava impressa a pegada de um homem,
que tinha queimado o pano de parte a parte. Por ordem da ama, abriu a
porta do salão, e notou que lá terminavam as pegadas no tapete.
No dia seguinte, a desditosa senhora soube com aquele medo que bem se
compreende, que alta noite, o tal moço se embriagara com excesso, e
transportado para casa, veio a morrer pouco depois.
Ignoro, acrescenta o superior, se esta terrível lição tenha convertido a
infeliz dama; o que sei é que ela ainda vive e para esconder aos
olhares curiosos o sinal daquela sinistra queimadura, leva no pulso, à
guisa de bracelete, um largo enfeite de ouro, que não deixa nem de dia
nem de noite. Repito que os particulares eu os tive da boca de um seu
parente próximo, católico sincero, a cuja palavra presto fé. Os parentes
não falam do ocorrido e é por isso que tenho o cuidado de ocultar o
nome da família.
Apesar do véu, no qual esta aparição foi e deveu ser envolvida, não me
parece, acrescenta Monsenhor Ségur, que se possa pôr em dúvida a
formidável autenticidade.
*
* *
O terceiro fato aconteceu na Itália.
Em 1873, em Roma, alguns dias antes da Assunção, uma moça, bastante má,
machucou uma das mãos. Levaram-na para o Hospital da Consolação. Ou
porque o sangue estivesse muito deteriorado ou porque sobreviesse grave
complicação, a infeliz morreu naquela noite.
No mesmo instante uma de suas companheiras, que não sabia o que
acontecera no hospital, pôs-se a gritar desesperadamente, a tal ponto
que acordou toda a vizinhança e provocou a intervenção da polícia.
A companheira que morrera no hospital apareceu envolvida em chamas e lhe
disse: –“Estou condenada, e se não queres condenar-te também, sai deste
lugar infame e volta a Deus.”
Nada consegui acalmar a agitação da jovem, que bem cedo abandonou aquela
casa, deixando a todos atônitos, especialmente depois de divulgada a
notícia da morte da companheira, no hospital.
Aconteceu que, logo depois, a proprietária da casa, uma garibaldina
exaltada, caiu doente, mandou logo chamar um padre, dizendo que queria
receber os sacramentos. A Autoridade Eclesiástica delegou para esse fim
um digno sacerdote, Monsenhor Piroli, pároco de S. Salvador em Laura.
Munido de especiais instruções, ele se apresentou e exigiu, antes de
tudo, que a doente fizesse, perante testemunhas, plena retratação de
suas blasfêmias e insultos contra o Sumo Pontífice e declarasse que
afastaria as ocasiões de pecado. Sem a menor hesitação, a infeliz
promete e então se confessa e recebe o Sagrado Viático com grandes
sentimentos de penitência e humildade.
Pressentindo o seu fim, a pobre mulher, com lágrimas nos olhos suplicou
ao padre que não a abandonasse, amedrontada como estava por aquela
aparição. Assim, teve a grande graça de ser assistida nos últimos
momentos pelo ministro de Deus.
Toda a Roma conheceu logo os particulares desta tragédia.
Como sempre, os ímpios e os libertinos fizeram dela objeto de chacota,
abstendo-se, à aposta, de obter oportunas informações; mas, de sua
parte, os bons aproveitaram para se tornarem melhores e mais exatos no
cumprimento de seus deveres.
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