CAPÍTULO V
Eu não creio em nada
– Eu não creio em nada, dizia-me duma feita um desses doutores da impiedade, com empáfia.
– Como? Vós não credes em nada? repliquei. Então não credes na existência da América, da Oceania…
– Oh! Certamente que sim; queria dizer, não creio em nenhuma coisa sobrenatural.
– Mas, porque credes na existência da América e da Oceania, que nunca vistes?
– Tem graça! Creio porque o afirmam os geógrafos e muitas pessoas que perscrutaram essas regiões.
– E se credes na existência de coisas que nunca vistes, só porque o
dizem os homens, porque não credes na existência do inferno, do juízo,
revelada pela palavra infalível de Deus, confirmada pela razão e
proclamada pela voz de todos os povos?
O livre pensador deu de ombros e não soube responder; mas, nem por isso
se converteu. Custava-lhe tanto deixar sua vida desregrada e praticar a
virtude!
Como são dignos de compaixão esses libertinos! Pretendem destruir o
inferno, negando-lhe a existência; mas, quem nega uma coisa não consegue
eliminá-la. Se eu negasse a existência da América ou da África, não
conseguiria riscá-las da face do globo, mas subsistiriam, não obstante
minha negação. Negai, negai quanto quiserdes a existência do inferno,
que apesar disso o inferno continuará a existir e a queimar as suas
vítimas, e um dia se abrirá para vós e vos sepultará naquelas chamas, se
vos não corrigirdes de vossas desordens. A vossa fanfarrice e a vossa
negação estulta não apagarão certamente aqueles ardores sempiternos, ao
contrário, servirão para os aumentar e fazer-vos afundar mais naquele
abismo. Quanto mais vos obstinardes na infidelidade e na negação do
inferno, tanto mais acumulareis pecados e culpas para expiar na eterna
prisão.
*
* *
Uma ocasião, um infeliz, a quem se meteu na cabeça que não havia mais
cárcere, nem tribunal, começou a roubar e praticar iniquidades. Avisado
várias vezes pelos parentes e amigos, e ameaçado de prisão, replicava
sempre que não havia mais cárcere nem tribunal.
Sabeis o que aconteceu? o que já se esperava: dois policiais o prendem; é processado e condenado às galés por toda a vida.
Eis aí a história de todos os ímpios; abandonam-se aos vícios, acariciam
as paixões, cometem pecados e mais pecados, dizendo que tudo acaba com a
morte e, no entanto, caem no eterno abismo. E Santa Tereza viu que
caíam em grande número, como flocos de neve em dias de inverno!
*
* *
Monsenhor Ségur conta um fato bastante curioso, acontecido na escola militar de S. Ciro, nos últimos anos da Restauração.
O Padre Rigolot, capelão do estabelecimento, pregava um retiro
espiritual aos alunos, que se reuniam por isso todas as tardes na
capela, antes de subir ao dormitório. Uma das tardes, em que o bom padre
falara do inferno, terminada a função, tomou a lanterna e se retirou
para o seu aposento; e quando abria a porta do quarto, percebeu que o
chamava alguém que o seguia pela escada. Era um velho capitão de bigode
grisalho e de maneiras pouco gentis.
– Desculpe, sr. Padre, lhe falou com ar de zombaria; V. R. fez-nos agora
pouco um magnífico discurso sobre o inferno. Mas se esqueceu de nos
dizer se lá nós seremos cozidos, assados ou fritos. Poderia dizer-me?
O capelão, percebendo que se tratava de um zoilo, fitou-o seriamente, e
depois enfiando-lhe sob o nariz a lanterna que trazia, respondeu com
toda a calma:
– Haveis de ver, sr. capitão.
Dito isto, fechou a porta; sem poder refrear o riso pela figura ridícula daquele estroina.
Não pensou mais nisso, mas daí por diante notou que o capitão fugia dele.
Entretanto, veio a revolução de julho e extintas as capelanias
militares, o Arcebispo de Paris nomeou o Padre Rigolot para outro cargo,
não menos importante.
Passados quase vinte anos, o venerando sacerdote entretinha-se com os
amigos numa tertúlia, quando um velho de bigode, branco, fazendo-se
encontradiço, cumprimentou-o e perguntou se era o Padre Rigolot,
ex-capelão da escola de S. Ciro. Obtida resposta afirmativa:
– Oh! senhor padre, diz-lhe comovido o velho militar, permita-me que lhe
aperte a mão e que exprima o meu reconhecimento; o senhor me salvou.
– Eu?! de que modo?
– Oh! não me conhece mais? Não se lembra do ocorrido naquela noite, que
um capitão, instrutor da escola, a propósito de seu discurso sobre o
inferno, lhe fez uma pergunta estúpida e V. R., pondo-lhe a lanterna sob
o nariz respondeu: – “Haveis de ver, capitão?”
Aquele capitão sou eu; sabia que desde aquela ocasião suas palavras não
me saíram mais da mente, como não me abandonou mais o pensamento que eu
devia ir para o inferno. Lutei contra mim mesmo por dez anos; ao cabo
dos quais, rendi-me a Deus, confessei-me e agora tornei-me cristão e
cristão à militar, isto é, franco, sem respeito humano. A V. R. sou
devedor de tanta ventura e folgo muito de poder encontrá-lo para
manifestar-lhe o meu reconhecimento.
*
* *
O Padre Bach, na vida de S. Francisco de Jerônimo, narra a triste sorte
duma mulher incrédula que zombava do inferno e dos novíssimos. O fato
não deixa nenhuma dúvida, pois foi juridicamente provado no processo de canonização do santo, e atestado com juramento por muitas testemunhas oculares.
No ano de 1707, S. Francisco de Jerônimo pregava, como de costume, nos
arrabaldes de Nápoles, falando sobre o inferno e os terríveis castigos
reservados aos pecadores obstinados. Uma mulher insolente, morava na
redondeza, aborrecida com aqueles sermões, que lhe acordavam no coração
amargos remorsos, procurou molestá-lo com chascos e gritos, desde a
janela de sua casa; uma vez, o santo lhe disse: – Ai de ti, filha, se
resistes à graça! não passarão oito dias, sem que Deus te castigue.
A desaforada mulher não se perturbou por aquela ameaça e continuou com
suas más intenções. Passaram-se oito dias, e o santo foi pregar de novo
perto daquela casa, mas desta vez as janelas estavam fachadas e ninguém o
importunava. Os vizinhos que ouviam consternados lhe disseram que
Catarina (tal era o nome daquela péssima mulher) tinha morrido de
improviso, pouco antes.
– Morreu? disse o servo de Deus; pois bem, agora nos diga de que valeu zombar do inferno; vamos perguntar-lhe.
Os ouvintes sentiram que essas palavras o santo as pronunciara com
inspiração, e por isso todos esperaram um milagre. Acompanhado da
multidão subiu à sala, convertida em câmara ardente, e após breve
oração, descobriu o rosto da morta e:
– Catarina, gritou, diz-nos onde estás!
A esta ordem, a defunta ergue a cabeça, abre os olhos, toma cor o seu
rosto, e em atitude de horrível desespero, profere com voz lúgubre estas
palavras:
– No inferno! eu estou no inferno!
Imediatamente cai e volta ao estado de frio cadáver.
Eu estava presente ao fato, afirma uma das testemunhas que depuseram no
tribunal apostólico, mas não saberia explicar a impressão que causou em
mim e nos circunstantes; ainda hoje, passando perto daquela casa e
olhando a tal janela, fico muito impressionado. Quando vejo aquela
funesta moradia, parece-me ouvir a lúgubre voz: – No inferno! eu estou
no inferno!
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