Quia tepidus es, et nec frigidus nec calidus, incipiam te evomere ex ore meo – “Porque és morno, e nem frio nem quente, começarei a vomitar-te da minha boca” (Apoc. 3, 16).
Sumário. A verdadeira tibieza consiste em que a alma cai em pecados veniais plenamente voluntários, dos quais pouco se arrepende, e que menos ainda se esforça por evitar, dizendo que são coisas de pouca monta. Temamos cair nesta tibieza, porque é semelhante à febre héctica, que não inspira muito cuidado, mas é tão maligna que não deixa quase esperança de cura. Infeliz da alma que faz as pazes com os pecados, posto que leves; a desgraçada irá de mal a pior. Sendo ela tão avarenta para com Deus, como pode pretender que o Senhor seja liberal para com ela?
I. Há duas espécies de tibieza, uma inevitável, outra evitável. A inevitável é a da qual na vida presente nem conseguem isentar-se as almas espirituais, que pela fragilidade humana não podem evitar que não caiam de vez em quando, sem vontade plenamente deliberada, em alguma falta leve. Desta espécie de culpas nenhum homem pode ficar livre sem uma graça especialíssima, que foi somente concedida à Mãe de Deus, porque a nossa natureza humana ficou corrompida pelo pecado original. – Deus permite tais manchas até mesmo nos Santos, para conservá-los humildes. Muitas vezes sentem-se estes frios, aborrecidos e desgostosos em seus exercícios de devoção, e em semelhante tempo de aridez caem facilmente em muitos defeitos, ao menos indeliberados.
Quem estiver em tal estado, não omita as suas devoções habituais, nem perca o ânimo, nem creia que já caiu na tibieza, porque isso não é propriamente tibieza. A tibieza verdadeira e deplorável é a que faz a alma cair em pecados veniais plenamente refletidos, de que quase não se arrepende e que se esforça menos ainda por evitar, sob o pretexto de que são coisas de pouca monta o ofender a Deus? Dizia Santa Teresa a suas religiosas: Minhas filhas, Deus vos livre do pecado cometido refletidamente, por leve que ele seja.
Dizem: os pecados veniais não nos privam da graça de Deus. Quem fala desta maneira, está em grande perigo de ver-se um dia cair em pecado mortal e privado da graça divina. Escreve São Gregório, que quem cai em pecados veniais deliberados e habituais sem fazer caso deles e sem pensar em emendar-se, nunca para no sítio em que caiu, mas afinal cairá no precipício: Nunquam illic anima quo cadit iacet. – As enfermidades mortais não provêm sempre de graves desordens, mas de muitas desordens leves e continuadas. Do mesmo modo a queda de certas almas em pecados graves, muitas vezes provem do hábito de pecar venialmente, pois este torna a alma tão débil, que, quando assaltada por alguma tentação mais forte, não tem força para resistir, e cai.
II. Que spernit modica, paulatim decidet (1) – “Quem despreza as coisas pequenas, de pouco a pouco cairá”. Quem não faz caso das quedas leves, facilmente se verá um dia caído num precipício. Diz o Senhor: Porque és tépido, começarei a vomitar-te de minha boca (2). Estou a vomitar-te, quer dizer, para abandonar-te, ou ao menos te privarei dos auxílios divinos especiais que são necessários para te conservar na graça. – Compreendamos bem este ponto. O Concílio de Trento condena àquele que diz que nós podemos perseverar na graça sem um auxílio especial e extraordinário de Deus; mas este auxílio especial Deus o negará com justiça àquele que comete de olhos abertos pecados veniais, sem fazer caso deles. Qui parce seminat parce et metet (3) – “Quem pouco semeia, pouco colhe”. Se nós formos avarentos para com Deus, como podemos esperar que Deus seja liberal para conosco?
Infeliz, portanto, da alma que fez as pazes com os pecados, posto que veniais; irá de mal a pior. As paixões, arraigando-se cada vez mais, facilmente obcecarão a alma, e um cego facilmente cairá num precipício, quando menos o suspeita. Temamos, pois, cair na tibieza. A tibieza voluntária é qual febre héctica, que inspira pouco cuidado, mas é tão maligna, que dificilmente dela se sara.
Senhor, tende piedade de mim. Vejo que já mereço ser vomitado por Vós por causa das muitas imperfeições com que Vos sirvo. Ai de mim! É por isso que me vejo sem amor, sem confiança, e sem desejos. Meu Jesus, não me abandoneis; estendei a vossa mão poderosa e tirai-me do abismo da tibieza em que caí. Fazei-o pelos méritos de vossa Paixão, na qual confio. – Virgem Santíssima, os vossos rogos podem levantar-me; rogai por mim (4). (II 311.)
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1. Ecclus. 19, 1.
2. Apoc. 3, 16.
3. 2 Cor. 9, 6.
4. “Posto que seja difícil um tíbio emendar-se, não faltam remédios para os que quiserem usar deles. Estes remédios são: 1. Resolver-se a sair a todo custo de tão lastimoso estado. 2. Fugir das ocasiões das quedas, sem o que não há esperança de emenda. 3. Recomendar-se freqüentemente a Deus, pedir-Lhe fervorosamente que dê forças para livrar-se de um estado tão deplorável; e não deixar de rezar, enquanto se não esteja inteiramente fora de todo o perigo.” (II 311.)
(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo II: Desde o Domingo da Páscoa até a Undécima Semana depois de Pentecostes inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 57 - 60.)
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