29 de março de 2024

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo Piedosas e edificantes meditações sobre os sofrimentos de Jesus

CAPÍTULO III

Reflexões sobre a flagelação, a coroação de espinhos e crucifixão de Jesus Cristo
Sobre a flagelação.
1. Escreve S. Paulo a respeito de Jesus Cristo: “Aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de escravo” (Fl 2,7). S. Bernardo acrescenta o seguinte a esse texto: “Não só a tomou a forma e escravo, para viver sujeito, mas a de mau escravo para ser açoitado”. É certo que a flagelação foi o tormento mais cruel que abreviou a vida de nosso Redentor, porque a grande efusão de sangue (já por ele predita, quando disse: Este é o meu sangue do Novo Testamento, que será derramado por muitos (Mt 26,2), foi a causa principal de sua morte. É verdade que esse sangue foi derramado primeiramente no horto, na coroação de espinhos, na crucifixão, em maior abundância, porém, na flagelação. Ela foi para Jesus Cristo sumamente vergonhosa e oprobriosa, pois era o castigo reservado aos escravos, como se deduz do L. Servorum f. f. de Poenis. Os tiranos, depois de haver condenado à morte os santos mártires, mandavam que fossem antes flagelados e depois trucidados. Nosso Senhor, porém, foi flagelado antes de ser condenado à morte. Ele mesmo havia anunciado a seus discípulos de modo particular essa flagelação: “Será entregue aos gentios, encarnecido e açoitado” (Lc 18,32), querendo significar-lhe as grandes dores que lhe traria esse tormento.
2. Foi revelado a S. Brígida que um dos algozes mandou que Jesus se despojasse por si mesmo de suas vestes; ele obedeceu e abraçou em seguida a coluna à qual foi amarrado e então flagelado tão cruelmente que seu corpo ficou todo dilacerado. Diz a revelação que os açoites não só feriam como também rasgavam suas carnes sacrossantas (Revel. 1.4 c. 70). E foi de tal maneira dilacerado, que se viam no peito as costelas descobertas. Quadra com isso o que escreve S. Jerônimo: “Os açoites retalharam o sacratíssimo corpo de Deus” (In Mt) e S. Pedro Damião, afirmando que os algozes tanto se
fatigaram na flagelação que chegaram a perder as forças. Tudo isso há havia predito Isaías, quando dizia: “Ele foi quebrantado por nossos crimes” (53,5). Quebrantado significa o mesmo que moído, pisado. Ó meu Jesus, sou eu um dos vossos mais cruéis carrascos, que vos flagelei com os meus pecados; tende, porém, piedade de mim. Ó meu amável Salvador, é muito pouco um coração para vos amar. Não quero viver mais para mim mesmo, mas viver só para vós, meu amor, meu tudo. Digo-vos, pois, com S. Catarina de Gênova: “Ó amor, ó amor, não mais pecados”. Basta quanto vos ofendi; espero agora ser vosso e com vossa graça quero ser sempre vosso por toda a eternidade.

Sobre a coroação de espinhos.
1. A Santíssima Virgem revelou a S. Brígida que a coroa de espinhos cingia toda a sagrada cabeça de seu Filho até ao meio da fronte e que os espinhos foram enterrados com tanta violência que o sangue escorria em torrentes pela face, de modo que o rosto de Jesus parecia todo coberto de sangue (Revel. c. 70). Escreve Orígenes que essa coroa de espinhos não foi retirada da cabeça do Senhor senão depois de haver ele expirado na cruz. Sendo a veste interior de Jesus não costurada, mas tecida por inteiro, não foi dividida entre soldados, como as outras vestes exteriores, mas posta a sorte, segundo S. João (19,20 e 24). Ora, devendo tirar-se essa veste pela cabeça ao ser Jesus dela despojado, segundo a opinião de vários autores, foi-lhe tirada a coroa e novamente reposta antes de ser cravado na cruz.
2. Está escrito no Gênesis: “Amaldiçoada será a terra na tua obra... ela te produzirá espinhos e abrolhos” (Gn 3,17-18). Esta maldição foi fulminada por Deus contra Adão e contra toda a sua descendência. Sob a expressão terra entende-se aí não somente a terra material, mas também a carne humana que, infeccionada pelo pecado de Adão, não gera senão espinhos de culpas. Para remediar justamente esta infecção, diz Tertuliano (Lb. cont. Hebr.), era necessário que Jesus Cristo oferecesse a Deus em sacrifício esse grande tormento da coroação de espinhos. Esse tormento de espinhos, além de ser extremamente doloroso, foi acompanhado de bofetadas, de escarros e dos sarcasmos dos soldados, como escrevem S. Mateus e S. João. “E tecendo uma coroa de espinhos, puseram-lha sobre a cabeça e uma cana em sua direita e ajoelhando-se perante ele o escarneciam dizendo: Ave, rei dos judeus, e cuspindo-lhe no rosto tomavam-lhe a cana e batiam-lhe na sua cabeça” (Mt 27,29 e 30). E o envolveram com uma veste purpúrea e chegando-se a ele diziam-lhe: Ave, rei dos judeus, e davam-lhe bofetadas (Jo 19,2). Ah, meu Jesus, quantos espinhos eu ajuntei a essa coroa com meus pensamentos a que dei consentimento! Desejaria morrer de dor; perdoai-me pelos méritos daquelas dores que suportastes justamente para me perdoardes. Ah, meu Senhor tão dilacerado e vilipendiado, vós vos sobrecarregais com tantas dores e desprezos para mover-me e compadecer-me de vós e para que vos ame ao menos por compaixão e não vos cause mais desgosto: Basta, meu Jesus, não insistais em padecer mais: já estou persuadido do amor que me tendes e eu vos amo com toda a minha alma. Vejo, porém, que para vós não é bastante, não estais saciado de penas, o que se dará só depois de vos ver morto de dores na cruz. Ó bondade, ó caridade infinita, infeliz o coração que vos não ama.

Sobre a crucifixão.
1. A cruz começou a atormentar a Jesus Cristo antes mesmo de ser nela pregado, já que depois da condenação de Pilatos teve de levar até ao Calvário a cruz em que devia morrer e ele, sem oposição, tomou-a sobre seus ombros. “E levando sua cruz às costas, saiu para aquele lugar que se chama Calvário” (Jo 19,17). Falando desse acontecimento, escreve S. Agostinho: “Se se atender à crueldade, que usou com Jesus Cristo, fazendo-o carregar pessoalmente seu patíbulo, foi isso um grande opróbrio; mas se se olhar para o amor com que Jesus Cristo abraçou a cruz, foi um grande mistério (In Jo. trat. 117). Levando a cruz, quis o nosso capitão desfraldar a bandeira sob a qual deveriam arrolar-se e militar os seus sequazes nesta terra, para assim se tornarem depois seus companheiros no reino dos céus. S. Basílio, falando deste passo de Isaías: Nasceu-nos um menino e foi-nos dado um filho e sobre seus ombros foi posto o principado (Is 9,6), diz que os tiranos da terra agravam seus súditos com encargos injustos, para aumentar o seu poder: Jesus Cristo, pelo contrário, quer aliviar-nos o peso da cruz e levá-la morrendo nela para obter-nos a salvação. É também certo que os reis da terra colocam seu poder na força das armas e no acervo de riquezas. Jesus Cristo, porém, fundou seu principado no ludíbrio da cruz, humilhando-se e padecendo, e de boa vontade se sujeitou a levá-la nessa viagem dolorosa para, com seu exemplo, dar-nos coragem de abraçar com resignação a sua cruz e assim segui-lo. Fala a todos os seus discípulos: “Se alguém quer vir após mim, abnegue-se a si mesmo, tome sua cruz e siga-me” (Mt 16,24).
2. Vem a pêlo notar aqui as belas expressões com que S. João Crisóstomo saúda a cruz. Ele a chama: “Esperança dos desprezados”. Que esperança de salvar-se teriam os pecadores, se não fosse a cruz em que Jesus Cristo morreu para remi-los? “Guia dos navegantes”. A humilhação que nos vem da cruz (isto é, da tribulação) é a causa de obtermos nesta vida como num mar cheio de perigos, a graça de observar a lei divina e, se a transgredimos, a de nos emendar, segundo afirma o Profeta: “Para mim foi bom que me humilhaste, para que eu aprenda as tuas justificações”. (Sl 118,17). “Conselheira dos justos”. Os justos tiram da adversidade motivo e razão para unirem-se mais com Deus. “Alívio dos atribulados”. Donde tiram os aflitos maior lenitivo senão do aspecto da cruz, na qual morreu, cheio de dores por seu amor, seu Redentor e seu Deus? “Glória dos mártires”. Foi esta a glória dos santos mártires, poder unir suas penas e morte às que Jesus Cristo suportou na cruz, como diz S. Paulo: “Para mim, não há outra glória do que a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo” (Gl 6,14). “Médico dos doentes”. Oh! que grande remédio é a cruz para muitos que estão enfermos de espírito! As tribulações os esclarece e os desprendem do mundo. “Fonte para os que têm sede”. A cruz, isto é, sofrer por Jesus Cristo, é o desejo dos santos. S. Teresa dizia: Ou padecer ou morrer, e S. Maria Madalena de Pazzi ia adiante e dizia: Padecer e não morrer, como se recusasse morrer e ir gozar no céu para ficar nesta terra a padecer. Afinal, falando em geral dos justos e dos pecadores, a cada um toca a sua cruz. Os justos, apesar de gozarem da paz de consciência, têm as suas vicissitudes: ora são consolados pelas visitas de Deus, ora afligidos pelas contrariedades e enfermidades corporais e em especial pelas desolações, pelas trevas e tédio de espírito, pelos escrúpulos, pelas tentações, pelos temores da própria salvação. Muito mais pesada, porém, é a cruz dos pecadores, os remorsos de consciência que os atormentam, os temores dos castigos eternos que de quando em quando se apoderam deles, e as angústias que sofrem nas adversidades. Os santos nas contrariedades se resignam com a vontade divina e sofrem em paz. Mas como poderá resignar-se o pecador com a vontade de Deus, se ele vive em sua inimizade? As penas dos inimigos de Deus são só penas sem nenhum conforto. Por isso dizia S. Teresa que quem ama a Deus abraça a cruz e com isso não a sente, mas quem não ama a Deus abraça a cruz e com isso não a sente, mas quem não ama a Deus, arrasta a força a cruz e assim não pode deixar de sentir-lhe o peso.
Continua...

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