8 de março de 2024

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo Piedosas e edificantes meditações sobre os sofrimentos de Jesus

OPÚSCULO III

REFLEXÕES SOBRE A PAIXÃO DE JESUS CRISTO, EXPOSTA COM A SIMPLICIDADE COM QUE A DESCREVEM OS SANTOS EVANGELISTAS

Aviso ao Leitor

Eu te prometi, benévolo leitor, no meu livro das Glórias de Maria, um outro livro sobre o Amor a Jesus Cristo. Em razão de minhas enfermidades, meu diretor não me permitiu escrevê-lo. Foi-me apenas concedida a licença de publicar estas sucintas reflexões sobre a paixão, nas quais, contudo, eu compendiei o que de mais belo tinha encontrado sobre essa matéria: excetuando algumas coisas referentes à encarnação e nascimento do Senhor, que eu pretendo, se me for permitido, publicar num livrinho para a novena de Natal. Espero, não obstante, que esta minha obrinha te agrade, especialmente por teres debaixo dos olhos, relatados com ordem, os passos da Sagrada Escritura a respeito do amor que Jesus Cristo nos demonstrou na sua morte, pois não há coisa que possa mover mais um cristão ao amor divino do que a própria palavra de Deus, que possuímos nas Santas Escrituras. Amemos, pois, bastante a Jesus Cristo, em quem encontramos o nosso Salvador, o nosso Deus e todo o nosso bem. Peço-te, pois, que todos os dias medites um pouco sobre a sua paixão, na qual encontrarás todos os motivos de esperar a vida eterna e de amar a Deus, no que consiste toda a nossa salvação. Todos os santos se mostraram enamorados de Jesus Cristo e de sua paixão e por este meio único se santificaram. O Pe. Baltasar Álvarez, como se lê na sua vida, diz que ninguém julgue ter feito alguma coisa, se não tiver chegado a possuir Jesus crucificado sempre no coração, e por isso sua oração consistia em pôr-se ao pé do crucifixo e, meditando e três coisas: na pobreza, no desprezo e nas dores do crucificado, aprender a lição que Jesus lhe dava da cruz. Também tu podes esperar santificar-te, se de modo semelhante perseverares na consideração do que Jesus fez e padeceu por ti. Suplica-lhe sempre que te conceda o seu amor. Pede-o sempre igualmente à tua senhora, a Maria, que se chama a Mãe do belo amor. E quando lhes implorares este grande dom, implora-o também para mim, que tive em vista fazer de ti um santo com este meu pequeno trabalho. De minha parte prometo fazer o mesmo por ti, para que um dia possamos no paraíso nos abraçar em santa caridade e nos dar por amantes desta amabilíssimo Senhor e, aí, como companheiros escolhidos para todo o sempre, amar face a face e eternamente nosso Salvador e amor, Jesus. Amém.

Introdução

Diz S. Agostinho não haver coisa mais útil para conseguir a salvação eterna do que pensar todos os dias nos tormentos que Jesus sofreu por nosso amor (Ad Frat. in er. serm. 32). E já Orígenes tinha escrito que o pecado não poderia certamente imperar na alma que meditasse continuamente na morte de seu Salvador (Lib. 6 in Rm 6). Além disso, revelou o Senhor a um santo anacoreta não haver exercício mais apropriado para acender num coração o amor divino, do que meditar na paixão de nosso Redentor. Por essa razão dizia o Pe. Baltasar Álvarez que a ignorância dos tesouros que possuímos em Jesus, na sua paixão, era a ruína dos cristãos, e por isso repetia a seus penitentes que não pensassem ter feito coisa alguma se não tivessem ainda conseguido ter sempre fixo no seu coração a Jesus crucificado. As chagas de Jesus, dizia S. Boaventura (Stim. div. am. p. I, c. 1), ferem os corações mais duros e inflamam as almas mais frias. Ora, como adverte sabiamente um douto escritor (Pe. Croiset, Exerc. Mart. t. 3), não há coisa melhor para nos descobrir os tesouros recônditos na paixão de Jesus Cristo, do que a simples narração dessa mesma paixão. Basta para inflamar uma alma fiel no amor divino a narração feita pelos santos evangelhos e considerar com olhos cristãos tudo o que o Salvador sofreu nos principais teatros de sua paixão, isto é, no horto das Oliveiras, na cidade de Jerusalém e no monte Calvário. São belas e boas as muitas considerações feitas e escritas por autores piedosos sobre a paixão de Jesus; mas certamente faz maior impressão a um cristão uma só palavra das sagradas Escrituras do que cem ou mil considerações e revelações escritas ou feitas a algumas pessoas devotas, pois as criaturas nos afiançam que tudo o que elas nos referem é certo e tem uma certeza de fé divina. Para tal fim quis, em benefício e para consolação das almas que amam a Jesus Cristo, pôr em ordem e referir simplesmente (ajuntando apenas algumas breves reflexões e afetos) o que nos dizem da paixão de Jesus os sagrados evangelistas, os quais nos oferecem matéria de meditação para cem e até mil anos, capaz de inflamar ao mesmo tempo os nossos corações em amor para com nosso amantíssimo Redentor. Ó Deus, como é possível que uma alma, que tem fé e considera as dores e ignomínias que Jesus Cristo sofreu por nós, não arda de amor por ele e não tome firmes resoluções de fazer-se santa para não ser ingrata para com um Deus tão amoroso? É preciso fé; do contrário, se a fé não nos desse certeza, quem poderia aceitar o que um Deus fez em verdade por nós: “Ele se aniquilou a si mesmo, tomando a forma de escravo” (Fl 2,7). Quem poderia crer que Jesus é o mesmo ser supremo que é adorado no céu, vendo-o nascer num estábulo? quem o vê fugindo para o Egito, para livrar-se das mãos de Herodes, crerá que ele é onipotente? Quem o vê a agonizar de tristeza, no horto, o julgará felicíssimo? Vê-lo preso a uma coluna, pendente de um patíbulo e crê-lo Senhor do universo? Que espanto ver um rei que se fizesse verme, que se arrastasse pelo chão, que habitasse numa cova de barro e daí desse leis, criasse ministros e governasse o reino. Ó santa fé, revelai o que é Jesus Cristo, quem é esse homem que parece tão vil como todos os outros homens: “O Verbo se fez carne” (Jo 1,14). S. João nos atesta que ele é Verbo eterno, é o Unigênito de Deus. E qual foi a vida que passou na terra esse Homem-Deus? Ei-la, referida por Isaías: “Nós o vimos... desprezado e como o último dos homens, como o varão das dores” (Is 53,2-3). Ele quis ser o homem das dores e não houve um instante em que ele estivesse livre de dores. Foi o homem das dores e o homem dos desprezos. Desprezado e como o último dos homens, sim porque Jesus foi o mais desprezado e maltratado, como se fosse o último e o mais vil de todos os homens. Um Deus preso por esbirros como um malfeitor! Um Deus flagelado como um escravo! Um Deus tratado como rei da burla! Um Deus morre pendente num lenho infame!! Que impressões não devem causar estes prodígios, em quem tem fé? E que desejo não deverão infundir de padecer por Jesus
Cristo? Dizia S. Francisco de Sales: “As chamas do Redentor são outras tantas bocas que nos ensinam como devemos padecer por ele. Esta é a ciência dos santos, sofrer constantemente por Jesus, e assim tornaram-se depressa santos. E como não nos abrasaremos em amor, à vista das chagas que se encontram no seio do Redentor? que ventura podermos ser abrasados pelo mesmo fogo em que se abrasa o nosso Deus, e que alegria de sermos unidos a Deus pelas cadeias de amor”. Mas, por que então tantos fiéis contemplam Jesus Cristo na cruz com olhos indiferentes? Assistem até na semana santa à comemoração de sua morte, mas sem nenhum sentimento de ternura ou gratidão, como se se tratasse de uma coisa irreal ou que nada tivesse conosco? Talvez não saibam ou não creiam no que dizem os evangelhos da paixão de Jesus Cristo? Respondo e digo que muito bem o sabem e crêem, mas não refletem nisso. Pois quem o crê e nisso pensa não poderá deixar de se abrasar no amor de um Deus que tanto padeceu e morreu por seu amor. “A caridade de Cristo nos impele” (2 Cor 5,14), escreve o apóstolo. Quer dizer que na paixão do Senhor não devemos considerar tanto as dores e os desprezos que
ele padeceu, como o amor com que os suportou, pois se Jesus quis sofrer tanto, não foi unicamente para salvar-nos, já que para isso bastava uma simples oração sua, mas para nos patentear o amor que nos consagra e assim ganhar os nossos corações. E de fato, se uma alma pensa neste amor de Jesus Cristo, não poderá deixar de amá-lo: “A caridade de Cristo nos impele”, ela se sentirá presa e obrigada quase por força a dedicar-lhe todo o seu afeto. Por esta razão Jesus Cristo morreu por nós todos, para que não vivamos mais para nós, mas exclusivamente para esse amantíssimo Redentor, que por nós sacrificou sua vida divina. Oh! felizes de vós, almas amantes, diz Isaías, que meditais continuamente na paixão de Jesus: “Tirareis com alegria águas das fontes do Salvador” (Is 12,3). Vós tirareis águas perenes de amor e confiança dessas fontes felizes que são as chagas de vosso Salvador. E como poderá duvidar ainda da divina misericórdia qualquer pecador, por enorme que seja, se ele se arrepende de suas culpas, à vista de Jesus crucificado, sabendo que o Padre eterno carregou sobre esse seu Filho dileto todos os nossos pecados, para que ele satisfizesse por nós? “O Senhor carregou sobre ele a iniqüidade de todos nós” (Is 53,6). Como poderemos temer, ajunta S. Paulo, que Deus nos negue alguma graça depois de haver-nos dado seu próprio Filho? “O qual não poupou nem ainda seu próprio Filho, mas entregou-o por nós todos, como não nos deu também com ele todas as coisas? (Rm 8,32).

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