E eis que estamos na Sexta-feira Maior, com um antiquíssimo e belíssimo ofício chamado de Missa dos Pré-Santificados. Ofício que está dividido em três partes, como toda Missa: pré-missa, a ação do sacrifício e a comunhão; hoje encontramos uma celebração tripartida, semelhante à da Missa. Em vez da Consagração, realiza-se a Elevação e Adoração da Cruz. A primeira parte é uma pré-missa, é mesmo um venerável monumento da missa dos catecúmenos na antiga liturgia; a segunda parte é a adoração da Cruz, ponto alto do dia; a terceira parte é a comunhão do celebrante. A liturgia chama este ofício de Missa dos Pré-santificados pois que a hóstia foi consagrada no dia anterior.
O ofício começa com uma pré-missa antiga, como eram celebradas durante os primeiros quatro séculos. Não havia introito, os sacerdotes prostravam-se silenciosamente nos degraus do altar. Havia três leituras entre as quais salmos inteiros eram cantados como cânticos intermediários e a oração pelas necessidades gerais dos cristãos. A primeira parte do Ofício da Sexta-feira Maior preservou esta antiga prática. A primeira lição (do profeta Oséias) deve nos colocar nos sentimentos de tristeza e arrependimento apropriados para este dia. Ela também nos faz ouvir, já, o anúncio da festa da Páscoa: “Ele nos dará vida nova em dois dias; ao terceiro dia nos ressuscitará”.
Canta-se então um trato retirado de Habacuc: “Senhor, eu ouvi vossa mensagem e temo; Considerei vossas obras e estremeci. Vós sereis encontrado no meio de duas criaturas”. O Profeta vê com horror o espantoso espetáculo da crucificação: "o Senhor" entre dois malfeitores.
A segunda lição nos mostra o tocante símbolo do cordeiro pascal. Este símbolo é realizado hoje. O verdadeiro Cordeiro Pascal, Cristo, é morto. Não é por acaso que Jesus ofereceu seu sacrifício no próprio dia da festa da Páscoa dos judeus; às três horas, exatamente quando os cordeiros da Páscoa estavam sendo mortos no templo, o Senhor expirou. O canto salmódico que se segue descreve a traição de Judas e a Paixão de Jesus.
Agora, depois do símbolo do cordeiro Pascal, ouvimos o relato da realidade e o cumprimento deste símbolo: canta-se a Paixão. Desta vez, a Paixão nos é contada pelo discípulo predileto de Jesus, o Apóstolo São João, que junto com a Santíssima Virgem esteve junto à Cruz e foi testemunha ocular destes grandes acontecimentos. Enquanto os outros evangelistas descrevem sobretudo o lado humano da Paixão, São João mostra-nos o Salvador sofrendo como Deus, como Rei. Seu relato da Paixão tem um caráter de grandeza e poder: o Rei no trono da Cruz.
Três intérpretes se nos apresentaram até agora: o Profeta, a Lei, o Evangelista. Passamos, agora, às antigas intercessões por todos os estados da humanidade. É hoje que estas orações são particularmente apropriadas: Jesus, o Rei do Reino de Deus, foi “ressuscitado” e agora “ele atrai tudo para si”. Jesus, o segundo Adão, dorme o sono da morte, e do seu lado sai a segunda Eva, a Igreja. Nas intercessões, rezamos primeiro pela Igreja, a Esposa de Cristo; rezamos por todos os estados, mesmo por cismáticos e hereges. A cada vez, o sacerdote e o povo se ajoelham ao chamado do diácono: Flectamus genua (dobremos os joelhos). Levantamo-nos então a convite do subdiácono: Levate (Levantai-vos). A genuflexão é omitida apenas no momento da oração pelos pérfidos judeus, isto é, infiéis, porque, naquele dia, eles se ajoelharam em escárnio diante de Cristo. Eis a ordem destas orações: rezemos pela Santa Igreja, pelas Ordens eclesiásticas e pelas várias classes de cristãos leigos, pelos catecúmenos, pelas necessidades espirituais e temporais de todo o mundo, pelos cismáticos e hereges, pelos os judeus e finalmente para os gentios.
O ponto alto do ofício é a adoração da Cruz, sinal da nossa salvação. Esta cerimónia também é muito antiga e teve origem em Jerusalém, onde se honrava e beijava o madeiro da verdadeira Cruz. O sacerdote depõe seus ornamentos, coloca-se ao lado da Epístola e começamos a desvelar solenemente a cruz. Se a Cruz está velada desde o Domingo da Paixão, é para que a Igreja possa desvelá-la solenemente, hoje, numa cerimónia impressionante. O diácono descobre a imagem do Crucificado três vezes, e cada vez o sacerdote entoa em tom cada vez mais alto: "Eis o madeiro da Cruz, no qual pendeu a salvação do mundo". O canto é continuado pelo coro, e as pessoas caem de joelhos cantando: “Vinde, adoremos”.
A cruz colocada sobre uma almofada é então colocada nos degraus do altar. O celebrante e os eclesiásticos tiram os sapatos, aproximam-se da cruz depois de três genuflexões e beijam os pés de Cristo para honrar o Salvador e o sinal da nossa redenção. O povo também se aproxima e vem beijar a cruz. Meus caros, adoremos o rei ensanguentado e coloquemos toda a nossa alma em nosso ósculo. Durante a adoração da Cruz, o coro canta um cântico impressionante. Estes são os "impróprios", as queixas e reprovações de Jesus ao seu povo infiel. Em suas queixas, doces e fortes, ele lembra ao seu povo as bênçãos que ele concedeu a eles no Antigo Testamento e a ingratidão que ele recebeu em troca. Estas queixas dirigem-se também a nós e exortam-nos, perante a morte de Cristo, a uma conversão séria. Ouvimos constantemente esta queixa: “Meu povo, o que eu fiz para você, e como eu entristeci você? responda-me ". É difícil encontrar um canto mais tocante que esse, uma cena mais terrível. Há ainda outra canção muito mais antiga que celebra a divindade daquele que se encontra crucificado. É cantado em duas línguas, grego e latim: “Agios o Theos — Sanctus Deus” — Santo Deus, santo e forte, santo e imortal, tende piedade de nós. É uma magnífica homenagem a Deus, na presença do sinal triunfal da Redenção. Enfim, canta-se até um hino de alegria à Cruz e à Redenção. “A tua Cruz, Senhor, nós adoramos, louvamos e glorificamos a tua santa Ressurreição; eis que por causa do madeiro da Cruz, a alegria chegou ao mundo inteiro”.
A terceira parte da liturgia da Sexta-feira Maior é a comunhão do celebrante. O santo sacrifício foi omitido hoje desde os primeiros tempos, mas não se abre mão da presença de Cristo. Por isso, na missa de ontem uma hóstia foi consagrada e reservada para a comunhão de hoje. Esta comunhão sem sacrifício prévio — que aliás acontece com frequência entre os gregos durante a Quaresma — chama-se Missa dos pré-santificados
Em procissão solene, o cálice com a hóstia consagrada é retirado da capela onde foi carregado ontem e levado de volta ao altar-mor, cantando o "Vexilla Regis”, hino de triunfo que celebra "avanço do estandarte do Rei". Queremos assinalar hoje, cantando este hino, que carregamos o corpo imolado de Cristo, o mesmo que pendeu na Cruz. O celebrante coloca a hóstia no corporal. O diácono derrama o vinho e o subdiácono derrama a água no cálice. Este vinho, hoje, não será consagrado e será usado apenas para abluções.
Em seguida, o sacerdote incensa a hóstia e o altar, como em todas as missas solenes. Ele lava as mãos em silêncio. Ele recita a oração de oferenda pessoal (In spiritu) e o Orate fratres que não é respondido. Faz parte do Ofertório. O sacerdote imediatamente começa o Pater e recita o Libera em voz alta. Ele então levanta a hóstia com a mão direita para mostrá-la ao povo, faz a fração habitual da hóstia, recita a última das orações preparatórias para a comunhão (porque, nesta última, trata-se apenas da recepção da hóstia, o corpo) e, depois dos três “Domine, non sum dignus”, recebe a comunhão. Ele é o único a comungar pois ele, enquanto sacerdote, é outro Cristo, e assim ele se une ao sacrifício do Altar - mas a tristeza e o luto deste dia, em que Cristo é desfigurado, sofre, morre por nossos pecados e é sepultado, apartando-se de nossas vistas, levam a Igreja a restringir a comunhão dos fiéis somente ao santo viático, em caso de risco de morte. O sacerdote então bebe o vinho e purifica o cálice. Assim termina a cerimônia de comunhão.
Eis a Sexta-feira Maior: nas matinas, consideramos Cristo em sua humilhação humana, “como um verme, o desprezo dos homens”. Na Missa dos pré-santificados, ele se apresenta a nós como Redentor e como Rei no trono da Cruz. Este aspecto encontra-se nas três partes: na primeira parte, com a Paixão de São João e as intercessões; na segunda parte, com o desvelamento e adoração da Cruz; na terceira parte, com a cerimônia de comunhão onde Cristo é o Cordeiro morto, mas glorificado. Há uma progressão nestas três partes: a morte do Senhor na Cruz é representada na primeira parte da pré-missa (o Profeta, a Lei, o Evangelho); na segunda parte, pela ação e símbolo, na terceira parte pelo sacramento.
15 de abril de 2022
MEDITAÇÃO PARA SEXTA-FEIRA MAIOR
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