8 de abril de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

I

Esta contemplação dos sofrimentos de Jesus é deveras fecunda. Estou convencido que, fora dos sacramentos e dos atos litúrgicos, não há prática mais útil para as nossas almas do que a Via Sacra feita com devoção. A sua eficácia sobrenatural é enorme. E porquê?
 Primeiro, porque a Paixão de Jesus é a Sua obra por excelência; quase todos os seus pormenores foram preditos; não há mistério de Jesus cujas circunstâncias fossem anunciadas com tanto cuidado pelo Salmista e pelos Profetas. E quando lemos no Evangelho a narrativa da Paixão, ficamos impressionados com o cuidado que Jesus Cristo tem em "realizar» o que d'Ele foi anunciado. Se
permite a presença do traidor na Ceia, é "para que se verifique a palavra da Escritura». Aos judeus que vinham para O prender, diz que se entrega "para que se cumpra a Escritura»: Ut adimplerentur Scripturae. Na cruz «ia ser tudo consumado», diz S. João, quando o Salvador se lembra de que o salmista predissera: «Morto de sede, dar-me-ão a beber vinagre». Então, para que esta profecia -apenas de pormenor - se cumprisse também, Jesus exclamou! «Tenho sede»: Postea, sciens Jesus quia omnia consummata sunt, UT consumaretur Sriptura, dixit: Sitio. Nisto, nada há de menos importância, pois, todas estas particularidades marcam os gestos dum Homem Deus.
Todas estas ações de Jesus são objeto das complacências do Pai. O Pai contempla o Filho com amor, não só no Tabor, quando Jesus Cristo está revestido do esplendor da Sua glória, mas também quando Pilatos O apresenta à multidão, coroado de espinhos, feito refugo da humanidade. O Pai envolve o Filho em olhares de infinita complacência, tanto nas ignomínias da Paixão, como nos esplendores da Transfiguração: Hic est Filius meus dilectus, in quo mihi bene complacui. E qual o motivo?
 É que Jesus, durante a Paixão, louva e glorifica o Pai numa medida infinita, não só porque é o Filho de Deus, mas também porque se abandona a tudo o que a justiça e o amor do Pai reclamam d'Ele. Se, no decurso da Sua vida pública, pode dizer que "fazia tudo o que era agradável ao Pai» - Quae placita sunt ei fado semper -, isso é sobretudo verdade naquelas horas em que, para reconhecer os direitos da majestade divina ultrajada pelo pecado e salvar o mundo, se entregou à morte, e morte de cruz: Ut cognoscat mundus quia diligo  Parem. "O Pai ama-O com amor ilimitado, porque dá a vida pelas Suas ovelhas e porque, pelos Seus sofrimentos e satisfações, merece para nós todas as graças que nos dão a amizade do Pai": PROPTEREA me diligit Pater, QUlA ego pono animan meam.
 Devemos ainda meditar a Paixão com amor, porque é nela também que Jesus Cristo faz brilhar as Suas virtudes. Possui em Sua alma todas as virtudes, mas a ocasião de as manifestar é sobretudo a Paixão. O amor imenso para com o Pai, a caridade para com os homens, o ódio ao pecado, o perdão das injúrias, a paciência, a mansidão, a fortaleza, a obediência à autoridade legítima, a compaixão, todas estas virtudes brilham dum modo heroico nesses dias dolorosos.
Quando contemplamos a Jesus na Sua Paixão, vemos o exemplar da nossa vida, o modelo admirável e ao mesmo tempo acessível, das virtudes de compunção, abnegação, paciência, resignação, abandono, caridade, mansidão, que devemos praticar para nos tornarmos semelhantes ao nosso divino Chefe: Si quis vult post me venire, abneget semetipsum, et tollat crucem suam, et sequatur me.
 Há um terceiro aspecto que muitas vezes esquecemos e que no entanto é de enorme importância. Quando contemplamos os sofrimentos de Jesus, Ele dá-nos, na medida da nossa fé, a graça de praticar as virtudes que revelou durante aquelas horas santas. Como assim?
Quando Jesus vivia neste mundo, «da Sua pessoa divina emanava uma força omnipotente que curava os corpos», iluminava as inteligências e vivificava as almas: Virtus de illo exibat, et sanabat omnes.  Algo de análogo se dá, quando nos pomos em contacto com Jesus pela fé. Aqueles que O seguiam com amor a caminho do Calvário ou assistiam à Sua imolação foram certamente concedidas por Jesus Cristo graças especiais. Este poder conserva-o ainda hoje; e, quando, em espírito de fé, a fim de nos unirmos aos Seus sofrimentos e O imitarmos, O seguimos do Pretório até ao Calvário e ali ficamos ao pé da cruz, concede-nos estas mesmas graças, faz-nos participar destes mesmos favores. Nunca esqueçais que Jesus Cristo não é um modelo morto e inerte; pelo contrário, sempre vivo, produz sobrenaturalmente em quem d'Ele se aproxima nas devidas disposições a perfeição que contemplam na Sua pessoa.
Em cada estação, o nosso Divino Salvador apresenta-se a nós com um duplo carácter: de Mediador que nos salva pelos Seus merecimentos; de perfeito modelo de virtudes sublimes; de causa eficiente capaz de produzir em nossas almas, pela Sua omnipotência divina, as virtudes de que nos dá o exemplo.
 Dir-me-eis que todos estes caracteres se encontram em todos os mistérios de Jesus Cristo. É verdade; mas com maior plenitude na Paixão, que é, por excelência, o mistério de Jesus!
 E assim, se todos os dias, durante alguns instantes, suspendendo os vossos trabalhos, abandonando as vossas preocupações, fazendo cessar em vossos corações o ruído das criaturas, acompanhardes o Homem Deus no caminho do Calvário, com fé, humildade e amor, com sincero desejo de imitar as virtudes que manifesta na Sua Paixão, tende a certeza de que as vossas almas receberão graças especialíssimas que as transformarão, pouco a pouco, na imagem de Jesus, e de Jesus crucificado. E não é nesta imagem que S. Paulo resume toda a santidade? Para colher os frutos preciosos desta prática, bem como para ganhar as inúmeras indulgências com que a Igreja a enriqueceu, basta parar em cada estação e meditar a Paixão do Salvador. Nenhuma fórmula especial de oração é necessária, nenhuma forma de meditação nos é imposta, nem sequer a do assunto evocado na «estação.». Cada qual pode à vontade seguir o seu gosto e a inspiração do Espirito Santo.

7 de abril de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

XIV

 SEGUINDO OS PASSOS DE JESUS, DO PRETÓRIO AO CALVÁRIO 

 A PAIXÃO constitui o «santo dos santos» dos mistérios de Jesus. É o termo da Sua vida pública, a culminância da Sua missão neste mundo, obra para a qual todas as outras convergem ou da qual tiram o seu valor e eficácia.
 Todos os anos, na Semana Santa, a Igreja comemora passo a passo as suas diversas fases: todos os dias, no Santo Sacrifício da Missa, renova a sua memória e realidade para nos aplicar os seus frutos. Com este ato capital da Liturgia relaciona-se uma prática de piedade que, sem fazer parte do culto público oficial, organizado pela Esposa de Jesus Cristo, se tornou, em virtude da abundância de graças de que é fonte, muito querida das almas piedosas. É a devoção à Paixão de Jesus, sob a forma muito conhecida da Via Sacra. 
A preparação imediata, feita pelo Salvador para a Sua oblação de Pontífice no Calvário, foi levar a cruz do Pretório até ao Gólgota, vergado ao peso de sofrimentos e opróbrios.
 Com certeza que a Virgem Maria e os primeiros cristãos percorreram piedosamente mais de uma vez este mesmo itinerário, regando de lágrimas os lugares santificados pelos sofrimentos do Homem  Deus.
 Sabeis com que entusiasmo e devoção os fiéis do Oriente, na Idade Média, empreendiam a longa e penosa romagem aos Lugares Santos para venerarem as pegadas ensanguentadas do Salvador; a sua piedade alimentava-se numa fonte fecunda de graças de inestimável valor. De regresso às suas terras, esforçavam-se por conservar carinhosamente a lembrança dos dias passados em Jerusalém na oração. Veio-se assim, sobretudo desde o século XV, a reproduzir mais ou menos por toda a parte os santuários e «estações» da cidade santa. Deste modo, a devoção dos fiéis satisfazia-se com uma peregrinação espiritual, que podia repetir à vontade. Mais tarde, em época relativamente recente, a Igreja enriqueceu esta prática com as mesmas indulgências que ganham aqueles que percorrem as «estações» em Jerusalém. 

6 de abril de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

V

 Mas há mais. Tendo-nos obtido a graça de com Ele levarmos a nossa, cruz, Jesus Cristo far-nos-á  igualmente participar da Sua glória, depois de termos sido associados aos seus sofrimentos: Si tamem compatimur, ut et conglorificemur. Para nós, como para Ele, esta glória será medida pela nossa «paixão». A glória de Jesus é infinita, porque, na Sua Paixão, sendo Deus, desceu aos abismos do sofrimento e da humilhação. E «porque se aniquilou tão profundamente, é que Deus Lhe conferiu tal glória»: Propter quod et Deus exaltavit illum.
 Na verdade, a Paixão de Jesus, por mais capital que seja na Sua vida, por mais necessária que seja à nossa salvação e santificação, não encerra o ciclo dos Seus mistérios. 
Deveis ter notado, ao ler o Evangelho, que, quando Nosso Senhor fala aos Apóstolos na Sua Paixão, acrescenta sempre que «ressuscitará ao terceiro dia": Et tertia die resurget. Estes dois mistérios encadeiam-se igualmente no pensamento de S. Paulo, quer fale só em Jesus Cristo, quer faça alusão ao Seu corpo mistico. Ora a ressurreição marca para Jesus a aurora da Sua vida gloriosa.
 Por isso, a Igreja, ao comemorar solenemente os sofrimentos do seu Esposo, une aos sentimentos de compaixão exclamações de triunfo. Os paramentos de cor preta ou roxa, desnudação dos altares, as «lamentações» de Jeremias, o silêncio dos sinos, tudo atesta a amarga desolação do seu coração de Esposa, nestes dias aniversários do grande drama. E qual é o hino que faz então ouvir? Um cântico de triunfo e de glória: Vexilla Regis prodeunt. «Ergue-se o estandarte do Rei, eis que brilha o mistério da cruz ... És bela, és refulgente, árvore enfeitada com a púrpura real ... Feliz de ti por teres tido suspenso em teus braços Aquele que foi o penhor do mundo ! ... Dai-nos, ó Deus, a vitória pela cruz; dignai-Vos salvar-nos, reger-nos para sempre»! "Exalta, ó minha língua, os louros dum feito glorioso!  Sobre os troféus da cruz proclama o grande triunfo; Cristo, Redentor do mundo, sai vencedor do combate, entregando-se à morte». «Cristo vence pela cruz»: Regnavit a ligno Deus. A cruz representa as humilhações de Cristo; mas, desde o dia em que Jesus nela foi cravado, passou a ocupar o lugar de honra nas nossas igrejas. Instrumento da nossa salvação a cruz tornou-se para Cristo penhor da Sua glória: Nonne haec oportuit pati Christum, et ita intrare in gloriam suam? 
 O mesmo se dá connosco. O sofrimento não é a última palavra na vida cristã. Depois de termos participado da Paixão do Salvador, teremos também parte na Sua glória. 
Na véspera da morte, Jesus dizia aos Seus discípulos: Vos estis qui permansistis mecum in
 tentationibus meis: «Conservastes-vos ao meu lado nas minhas provações. E logo acrescenta: "E eu, em paga, preparo-vos um reino, assim como meu Pai mo preparou»: Et ego dispono vobis sicut disposuit mihi Pater meus regnum. Esta promessa divina diz-nos igualmente respeito a nós. Se nos tivermos «conservado com Jesus nas Suas provações», se tivermos muitas vezes contemplado com fé e amor os Seus sofrimentos, Jesus Cristo virá buscar-nos, quando soar a nossa hora derradeira, para nos levar ao Reino do Seu Pai.
 Dia virá, mais cedo do que pensamos, em que a morte estará próxima; estaremos deitados no leito, sem movimento; os que nos rodeiam fitar-nos-ão em silêncio, na impossibilidade de nos ajudarem; deixaremos de ter contato vital com o mundo exterior, a alma estará a sós com Jesus. Saberemos então o que é ter "estado com Ele em Suas provações»; ouvi-Lo-e-mos dizer, nesta agonia que é agora a nossa, suprema e decisiva: «Não me deixaste na minha agonia, acompanhaste-me quando eu ia para o Calvário, para morrer por ti; aqui estou eu agora; estou ao teu lado para te ajudar, para te levar comigo; não temas, tem confiança; sou eu»! Ego sum, nolite timere! Poderemos então repetir com confiança a palavra do salmista: Etsi ambulavero in medio umbrae mortis, non timebo mala; quoniam tu mecum es: «Senhor, agora, que me vejo rodeado das sombras da morte, nada temo, pois Vós estais comigo» ! 


5 de abril de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

IV

A morte de Jesus é a fonte da nossa confiança. Mas para que ela seja plenamente eficaz, devemos nós mesmos participar da Sua Paixão. Na cruz, Jesus Cristo representava-nos a todos; mas, se sofreu por todos nós, não nos aplica os frutos da Sua imolação, se não nos associarmos ao Seu sacrifício. 
Como havemos de participar da Paixão de Jesus? De vários modos.
 Em primeiro lugar, contemplando com fé e amor a Jesus nos diferentes passos da via dolorosa. 
Todos os anos, na Semana Santa, a Igreja revive com Jesus, dia a dia, hora a hora, as diversas fases do sangrento mistério do Seu divino Esposo. Coloca todos os seus filhos diante desses sofrimentos que salvaram a humanidade. Noutros tempos, eram proibidos os trabalhos servis durante estes santos dias; adiavam-se os processos, suspendiam-se os negócios e não eram permitidas as audiências no foro. O pensamento dum Homem  Deus a remir o mundo pelas Suas dores ocupava todos os espíritos, tocava todos os corações. Hoje tantas almas na indiferença! Sejamos, quanto em nós couber, fiéis em contemplar, em união com a Igreja, os diversos episódios deste santo mistério. Nesta contemplação, encontraremos uma fonte inapreciável de graças! 
A Paixão de Jesus ocupa um lugar tal na Sua vida, é de tal modo a Sua obra, ligou-lhe tal importância, que quis fosse recordada no meio de nós, não só uma vez por ano, durante as solenidades da Semana Santa, mas todos os dias. Ele próprio instituiu um sacrifício para perpetuar através dos séculos a memória e os frutos da Sua oblação no Calvário. É o Sacrifício da Missa: Hoc facite in meam commemorationem.
 Assistir ao Santo Sacrifício ou oferecê-lo com Cristo constitui uma participação íntima e muito eficaz na Paixão de Jesus.
 De fato, no altar, como sabeis, reproduz-se o mesmo sacrifício que no Calvário. É o mesmo o Pontífice, Jesus Cristo, que Se oferece ao Pai pelas mãos do sacerdote. É a mesma a Vítima. Difere apenas a maneira de oferecer. Dizemos às vezes: «Oh! quem me dera ter estado no Gólgota com a Virgem, S. João, Madalena! » Ora a fé coloca-nos diante de Jesus, que se imola sobre o altar, onde renova, dum modo mistico, o Seu sacrifício, para nos fazer participar dos Seus méritos e satisfações. Não O vemos com os olhos do corpo, mas a fé diz-nos que está ali, para os mesmos fins para que se oferecia na cruz. Se tivermos uma fé viva, ela nos lançará aos pés de Jesus que se imola, unir-nos-á a Ele, aos Seus sentimentos de amor para com o Pai e para com os homens, aos Seus sentimentos de ódio ao pecado; far-nos-á dizer com Ele: «Pai, eis-me aqui para fazer a Vossa vontade»: Ecce venio, ut faciam, Deus, voluntatem tuam.
 Imbuir-nos-emos destes sentimentos principalmente se, depois de nos termos oferecido com Jesus, nos unir-­mos a Ele pela Comunhão sacramental. Cristo então dá-se a nós, como Aquele que vem satisfazer e destruir em nós o pecado. Na cruz, fez-nos morrer consigo para o pecado: «Fui, diz S. Paulo, crucificado com Jesus Cristo». Naqueles instantes supremos, Jesus Cristo não nos separou de Si; deu-nos o meio de destruir em nós o reino do mal, causa da Sua morte, para que fizéssemos parte da «assembleia santa e irrepreensível dos eleitos»: Sine ruga, sine macula. 
Finalmente, podemos ainda associar-nos a este mistério suportando, por amor de Jesus Cristo, os sofrímentos e adversidades que, nos desígnios da Sua Providência, nos envia. 
Quando Jesus se dirigia para o Calvário, sucumbiu vergado sob o peso da cruz. Aquele a quem a Escritura chama «a Força de Deus» - Virtus Dei - vê-mo-Lo humilhado, fraco, prostrado por terra. Não tem forças para levar a cruz. É uma homenagem que a Sua humanidade rende ao poder de Deus. Se quisesse, Jesus podia, apesar da Sua fraqueza, levar a cruz atê ao Calvário. Mas, neste momento, a Divindade quer, para nossa salvação, que a Humanidade sinta a sua fraqueza a fim de nos merecer a força de suportarmos os nossos sofrimentos. 
A cada um de nós dá Deus também uma cruz para levar, e cada qual pensa que a sua é a mais pesada. Devemos aceitá-la sem discutir, sem dizer: «Deus podia mudar tal ou tal circunstância da minha vida". Nosso Senhor diz-nos: "Se alguém quer ser meu discípulo, tome a sua cruz e siga-me".
 Nesta aceitação generosa da nossa cruz, encontraremos a união com Cristo. Porque, notai bem, levando a nossa cruz, levamos realmente uma parte da de Jesus. Considerai o que narra o Evangelho. Os judeus, vendo a sua Vítima desfalecer e receando que não chegasse ao Calvário, obrigam no caminho Simão Cireneu a ajudar o Salvador. Como disse, Jesus Cristo podia, se quisesse, tirar da Sua Divindade a força necessária; consentiu, porém, em ser ajudado. Quis mostrar-nos assim que cada um de nós deve ajudá-Lo a levar a cruz. Nosso Senhor diz-nos: «Aceitai esta parte dos meus sofrimentos que, na minha divina presciência, vos reservei no dia da minha Paixão». Como havemos de recusar aceitar, das mãos de Cristo, essa dor, essa contradição, essa provação, essa adversidade, beber algumas gotas do cálix que Ele próprio nos apresenta e que foi o primeiro a beber? Digamos pois: «Sim, divino Mestre, aceito esta parte de todo o coração, porque vem de Vós». Tomemo-la por amor d'Ele e em união com Ele. Sentiremos, por vezes, os nossos ombros vergarem com o peso. S. Paulo confessa que certas horas da sua existência eram tão cheias de tédio e de contrariedades, que «a própria vida se lhe tornava pesada»: Ut taederet nos etiam vivere. Mas, como o grande Apóstolo, contemplemos Aquele que nos amou até se entregar por nós. Nessas horas em que a ação profunda do Espírito se faz sentir em Suas operações purificadoras, unamo-nos a Cristo com mais amor ainda. Então a virtude e unção da Sua cruz comunicar-se-ão a nós e nela encontraremos, com a força, a paz e a alegria interior que sabe sorrir no meio do sofrimento: Superabundo gaudio in omni tribulatione nostra.
 São estas as graças que Nosso Senhor nos mereceu. Com efeito, quando subia ao Calvário ajudado pelo Cireneu, Jesus Cristo, Homem Deus, pensava em todos aqueles que, no correr dos séculos, aceitando a própria cruz, O ajudariam a levar a d'Ele; para eles merecia, naquele momento, graças inesgotáveis de força, de resignação, de abandono, que lhes fariam dizer como Ele: «Pai, faça-se a Vossa vontade, e não a minha»! E porquê?
 Há uma verdade capital que devemos meditar.
 O Verbo Incarnado, chefe da Igreja, tomou a Sua parte das dores, a maior: mas quis deixar à Igreja, que é o Seu corpo místico, uma parte de sofrimento. S. Paulo dá-no-lo a entender em palavras profundas, embora aparentemente estranhas: «O que falta aos sofrimentos de Jesus Cristo,
 completo-o eu na minha própria carne, pelo Seu corpo que é a Igreja". Porventura falta alguma coisa aos sofrimentos de Cristo? Evidentemente que não. Foram superabundantes, imensos, e o seu mérito infinito: Et copiosa apud eum redemptio. Então por que fala S. Paulo de «completar» esses sofrimentos? É Santo Agostinho quem nos responde: «O Cristo total, diz, é formado pela Igreja unida ao seu chefe, à sua cabeça, que é Jesus Cristo. O chefe sofreu tudo quanto devia sofrer. Só falta que os membros, se quiserem ser dignos do chefe, suportem a sua parte de dores: "lmpletae erant omnes passiones, sed in capite: restabant adhuc Christi passiones in corpore; vos autem estis corpus Christi et membra. Ternos, pois, como membros de Cristo, de nos unir aos Seus sofrimentos. Cristo
 reservou-nos uma participação na Sua Paixão; mas, ao mesmo tempo, colocou ao lado da Cruz a força necessária para a levar. É que, diz S. Paulo, Jesus Cristo, "tendo experimentado o sofrimento, tornou-se para nós um Pontífice cheio de compaixão». 

4 de abril de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

III 

O sacrifício de Jesus Cristo, iniciado na Incarnação, está consumado. Do lado de Jesus, trespassado pela lança, saem as fontes de água viva que vão purificar e  "santificar a Igreja»; Ut sanctificaret Ecclesiam... Ut sit sancta et immaculata. Tal é o fruto perfeito dessa perfeita imolação. «Por uma oblação única, Cristo levou para sempre à perfeição aqueles que no decorrer dos tempos são santificados»: Una enim oblatione, consummavit in sempiternum sanctificatos.
 De que modo santificou Jesus a Igreja pela Sua oblação?
 Como sabeis, a nossa santificação consiste essencialmente numa participação da natureza divina pela graça santificante. Esta graça torna-nos filhos de Deus, Seus amigos, justos aos Seus olhos, herdeiros da Sua graça.

 Pelo pecado, estavamos privados da graça, eramo inimigos de Deus, excluídos da beatitude do céu. 
Pelo Seu sacrifício, Jesus Cristo destruiu o pecado e restituiu-nos a graça. Segundo a expressão de S. Paulo, «Cristo, deixando-se pregar na cruz, rasgou a sentença de condenação e morte lavrada contra nós»; «reconciliou-nos para sempre com o Pai».


 Não devemos esquecer que Jesus Cristo representava toda a humanidade. Uniu-se a uma raça pecadora, embora o pecado O não tenha atingido pessoalmente: Absque peccato; mas «toma sobre Si os pecados de todos os homens»: Posuit in eo iniquítatem omnium nostrum. Representa-nos a todos, e, por isso mesmo, satisfaz por todos nós. Jesus Cristo tornou-se, por amor, solidário dos nossos pecados; nós, pela graça, tornamo-nos solidários das Suas satisfações.
Além disso, Jesus Cristo mereceu para a Sua Igreja todas as graças de que ela necessitava para formar a. sociedade que Ele quer «sem mancha nem ruga, mas santa e imaculada». Efetivamente, o valor desses merecimentos é infinito. Porquê? Porventura os Seus sofrimentos, por mais extensos e profundos que tenham sido, não tiveram limites? Claro que sim; mas Aquele que por eles mereceu para nós é um Deus; e, posto que tenha padecido apenas em Sua natureza humana, essas dores e o mérito que importa são dum Deus; eis por que o seu valor é sem limites.

 Nosso Senhor Jesus Cristo mereceu, portanto, para nós, todas as graças e todas as luzes; a Sua morte abriu-nos, de novo, as portas da vida, «transportou-nos das trevas à luz»; é «a causa da nossa salvação e da nossa santidade»: Et consummatus, factus est omnibus obtemperantibus sibi, causa salutis aeternae. Os sacramentos, que são os canais pelos quais a graça e a vida divina chegam às nossas almas, não têm valor senão pelo sacrifício de Jesus. Se estamos hoje em estado de graça, a que o devemos? Ao Batismo. E quem nos mereceu os frutos do Batismo? A morte de Jesus Cristo. Do mesmo modo no sacramento da Penitência, somos lavados no sangue do Salvador. A virtude dos sacramentos vem-lhes da cruz; só têm eficácia em continuidade com a sagrada Paixão de Jesus Cristo.
 Chefe e cabeça da Igreja, Jesus Cristo mereceu para ela a abundância das graças que a tornam «bela e gloriosa». O zelo dos Apóstolos, a força dos Mártires, a constância dos Confessores, a pureza das Virgens alimenta-se no sangue de Jesus. Todos os favores, todos os dons que alegram as almas, os próprios privilégios únicos com que foi favorecida a Virgem Maria têm por preço esse sangue precioso. E como este é dum valor infinito, não há graça que não possamos esperar, valendo-nos do nosso Pontífice e Mediador.
 De modo que em Jesus Cristo tudo possuímos; nada n'Ele falta do que precisamos para a nossa santificação: Et copiosa apud eum redemptio; o Seu sacrifício, oferecido por todos, deu-Lhe o direito de nos comunicar tudo quanto mereceu.

 Oh! Se compreendêssemos que n'Ele tudo temos! Que os Seus meritos infinitos nos pertencem! Se tivéssemos absoluta confiança nestes meritos! Durante a Sua vida mortal, dizia Jesus aos judeus (e repete-o agora a todos nós): Ego si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum. «Quando for levantado na cruz, será tão grande o meu pode, que atrairei a mim todos aqueles que em mim tiverem fê». Aqueles que, outrora, no deserto, contemplavam a serpente de bronze levantada por Moisés, ficavam curados das mordeduras com que tinham sido feridos por causa dos seus pecados; assim
também todos aqueles que me contemplam com fé e amor merecem que os atraia e os leve até ao céu. Eu, que sou Deus, consenti, por amor de vós, ser pregado na cruz,"como um maldito";  em paga desta humilhação, tenho o poder de vos atrair a mim, purificar, exornar com a minha graça e de vos elevar ao céu, onde estou presentemente. Desci do céu e para lá voltei, depois de ter oferecido o meu sacrifício; tenho o poder de vos fazer lá entrar comigo, pois nisto sou o vosso precursor; tenho o poder de vos unir a mim, de modo tão íntimo, que «pessoa alguma pode arrancar-me das mãos aqueles que meu Pai me deu» e que resgatei com o meu precioso sangue; Et ego vitam aeternam do eis; et non peribunt in aeternum, et non rapiet eas quisquam de manu mea.

"Levantado acima da terra, tudo atrairei a mim». Quando fitamos o Crucifixo, pensemos nesta promessa infalível do nosso Pontífice supremo; ela é a fonte da mais absoluta confiança. «Se morreu por nós, sendo, como éramos, Seus inimigos», que graça de perdão, de santificação, poderá recusar-nos, agora que detestamos o pecado, que procuramos desapegar-nos das criaturas e de nós mesmos para só a Ele agradar?
 Pai, atrai-me para o Filho! ... Jesus Cristo, Filho de Deus, atraí-me todo para Vós! ... 


3 de abril de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

II

No sacrifício de Jesus tudo é perfeito: o amor que o inspira e a liberdade com que o realiza. Perfeito também no dom oferecido: Cristo oferece-se a Si mesmo: Semetipsum tradídít.
 Jesus Cristo oferece-se todo; a Sua alma e o Seu corpo são dilacerados, esmagados pelos sofrimentos; não há nenhum que Jesus não experimente. Se lerdes atentamente o Evangelho, vereis que os sofrimentos de Jesus foram dispostos por forma tal, que todos os membros do Seu sagrado corpo fossem atingidos, todas as fibras do Seu coração dilaceradas pela ingratidão da turba, pelo abandono dos Seus, pelas dores de Sua Mãe, Sua alma santa padecesse todas as afrontas e todas as humilhações que um homem pode suportar. Realizou ao pé da letra a ·profecia de Isaías: "Muitos ficaram estupefatos ao vê-Lo, tão desfigurado estava ... Já não possui forma nem beleza para atrair os nossos olhares ... Apareceu-nos como um leproso, inteiramente irreconhecível"...
 Ainda agora vos falei da agonia no Horto das Oliveiras. Jesus Cristo, que nunca exagera, revela aos Apóstolos que «a Sua alma inocente está oprimida por uma tristeza tão pungente, tão amarga, que é capaz de Lhe dar a morte: Trístis est anima mea usque ad mortem. Que abismo! Um Deus, Poder e Beatitude infinita, "acabrunhado pela tristeza, pelo pavor e pelo tédio»: Coepit pavere, et taedere et maestus  esse! O Verbo Incarnado conhecia todos os sofrimentos que iam cair sobre Ele durante as longas horas da Sua Paixão. Esta visão fazia nascer na Sua natureza sensível toda a repulsa que teria sentido uma simples criatura; na Divindade a que estava unida, a Sua alma via claramente todos os pecados dos homens, todos os ultrajes feitos à santidade e ao amor infinito de Deus.
 Tomara sobre si todas essas iniquidades, revestira-as, para assim dizer; sentia pesar sobre a Sua cabeça toda a cólera da justiça divina: Ego sum vermis, et non homo: opprobrium horminum et abjectio plebis. Previa que, para muitos homens, o Seu sangue seria derramado inutilmente, e esta visão levava ao cúmulo a amargura da Sua santa alma. Mas, como vimos, Jesus Cristo tudo aceita. Levanta-se, sai do Jardim e vai ao encontro dos Seus inimigos.
 Começa neste ponto para Nosso Senhor a série de humilhações e sofrimentos que mal podemos tentar descrever.
 Traído pelo beijo de um dos Seus apóstolos, acorrentado pela soldadesca como um malfeitor, é levado ao sumo sacerdote. Ali «cala-se» no meio das falsas acusações contra Ele proferidas: llle autem tacebat.
 Fala apenas para proclamar que é o Filho de Deus: Dixisti, ego sum. Esta confissão é a mais solene de quantas jamais foram feitas da Divindade de Cristo. Jesus, rei dos mártires, morre por haver confessado a Sua Divindade, e todos os mártires darão a vida pela mesma causa.
 Pedro, o chefe dos Apóstolos, seguira de longe o divino Mestre; tinha prometido não O abandonar. Pobre Pedro! Sabeis como, por três vezes, renegou a Jesus. Foi esse, sem dúvida, para o nosso divino Salvador um dos mais profundos sofrimentos daquela terrível noite.
 Os soldados guardam Jesus e cobrem-No de injúrias e maus tratos. Não podendo suportar aquele olhar tão meigo, vendam-Lhe os olhos. Dão-Lhe bofetadas. Têm até a ousadia de manchar com vis escarros aquela face adorável que os Anjos contemplam extasiados. 
O Evangelho mostra-nos, em seguida, como Jesus foi conduzido, logo de manhã, ao sumo sacerdote, depois arrastado de tribunal em tribunal; tratado por Herodes como louco e insensato, Ele, a Sabedoria eterna; açoutado por ordem de Pilatos; os algozes ferem sem dó a Vitima inocente, cujo corpo se torna logo uma chaga viva. E tão cruel flagelação não basta a estes homens, que já nem homens são; enterram na cabeça de Jesus uma coroa de espinhos, e cobrem-No de escárnios.
O covarde governador romano imagina que o ódio dos judeus ficará satisfeito vendo Jesus Cristo naquele triste estado; apresenta-O à multidão! Ecce homo, «Eis aqui o homem»! ... Contemplemos neste momento o divino Mestre mergulhado nesse abismo de sofrimentos e humilhações, e pensemos que o Eterno Pai também no-Lo apresenta, dizendo: "Eis aqui o meu Filho, o esplendor da minha glória, ferido por causa dos crimes do meu povo»: Propter scelus populí mei percussi eum ...
 Jesus ouve os gritos daquela populaça enfurecida que Lhe prefere um bandido e, em paga de todos os benefícios que d.Ele recebeu, reclama a Sua morte: Crucifige, crucifige eum. 
É, pois, pronunciada a sentença de morte; e Jesus Cristo, tomando em seus ombros feridos a pesada cruz, dirige-se para o Calvário. Quantas dores ainda Lhe não estavam reservadas! A vista de Sua Mãe tão ternamente amada e cuja dolorosa aflição compreende melhor do que ninguém, o despojarem-No das Suas vestes, o cravarem-Lhe as mãos e pés, a sede ardente. Depois os odiosos sarcasmos dos seus piores inimigos: «Tu que destróis o templo de Deus salva-te a ti mesmo e acreditaremos em ti... Salvou os outros e não pode salvar-se a si mesmo». Enfim, o abandono por parte do Pai, cuja santa vontade cumpriu sempre: "Pai, porque me abandonaste?». 
Bebeu realmente o cálice até às fezes; realizou até os mais pequenos pormenores tudo o que fora predito. Por isso, depois de cumprir tudo, pôde proferir o Seu Consummatum est. Sim, "tudo está consumado»; só Lhe resta entregar a alma ao Pai: Et inclinato capite, tradídit spiritum. 
Quando a Igreja, na Semana Santa, nos lê a narrativa da Paixão, interrompe-a neste ponto para adorar em silêncio. 
Prostremo-nos com ela; adoremos esse Crucificado que acaba de exalar o último suspiro: Ele é realmente o Filho de Deus: Deus verus de Deo vero. Sobretudo tomemos parte, em Sexta-feira Santa, na adoração solene da Cruz, que deve, no espírito da Igreja, reparar os inumeráveis ultrajes feitos à divina Vitima pelos Seus inimigos no Gólgota. Durante essa impressionante cerimônia, a Igreja põe nos lábios do Salvador inocente exclamações comovedoras. Aplicam-se ao pé da letra ao povo deicida. Podemos ouvi-las dando-lhes um sentido espiritual; farão nascer em nossas almas vivos sentimentos de compunção. «Ó meu povo, que te fiz Eu, e em que te contristei? Responde. Que devia fazer por ti, que não tenha feito? Plantei-te como a mais bela das minhas vinhas, e não tens para mim senão amargura. Pois, tendo Eu sede, deste-me a beber vinagre, e com uma lança atravessaste o lado do teu Salvador.... Por amor de ti, castiguei o Egito em seus primogênitos, e tu açoutaste-me ... Para te tirar do Egito, afoguei Faraó no Mar Vermelho, e tu entregaste-me ao príncipe dos sacerdotes ... Abri-te passagem pelo meio das ondas, e tu abriste-me o lado com uma lança ... Fui à tua frente numa coluna luminosa, e tu levaste-me ao pretórío de Pilatos ... Alimentei-te com o maná no deserto, e tu feriste-me com bofetadas e açoutes ... Dei-te um cetro real, e tu colocaste-me na cabeça uma coroa de espinhos ... Elevei-te entre as nações, mostrando grande poder, e tu levantaste-me no patíbulo da cruz"!  Deixemos estes queixumes dum Deus que sofre pelos homens tocar os nossos corações. Unamo-nos a essa obediência cheia de amor que O conduziu à imolação da cruz: Factus obediens usque ad mortem, mortem autem crucis. Digamos-Lhe: « Ó divino Salvador, que tanto sofrestes por amor de nós, prometo-Vos fazer o possível por não mais pecar. Fazei, pela Vossa graça, ó Mestre adorável, fazei com que morramos para tudo quanto é pecado, apego ao pecado ou à criatura, e que só vivamos para Vós».
 E que, diz S. Paulo, «o amor de que Jesus Cristo nos deu prova morrendo por nós deve fazer com que aqueles que vivem já não vivam para si, mas para Aquele que morreu por eles»: Ut et qui vivunt, jam non sibi vivant, sed ei qui pro ípsís mortuus est. 

2 de abril de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.


Diz S. Paulo que «Jesus Cristo amou a Igreja».
 A Igreja, aqui, significa o reino daqueles que devem, como diz, o mesmo Apóstolo, formar o corpo mistico de Jesus. Cristo amou esta Igreja, e foi por a ter amado que se entregou por ela. Foi o amor que imperou na Paixão.
Sem dúvida, antes e acima de tudo, foi por amor ao Pai que Jesus quis sofrer a morte na cruz. Di.-lo Ele explicitamente: Ut cognoscat mundus quia diligo Patrem, sic facio  - «pata que o mundo saiba que amo o Pai. cumpro a Sua vontade, qual é entregar.-me à morte».
 Vede Jesus na agonia. Durante três horas, o tédio, a tristeza, o temor, as angústias caem sobre a Sua alma, como torrente, invadindo-a a ponto de Lhe fazer jorrar o sangue das sagradas veias. Que abismo de dores nesta agonia! E que diz ao Pai? «Pai. se é possível, afaste-se de mim este cálix.». Mas então Jesus Cristo não aceitava a vontade do Pai?  Está claro que sim. Mas esta prece é o grito da sensibilidade da pobre natureza humana torturada pelo tédio e sofrimento ; naquele momento, Jesus é sobretudo Vit sciens infirmitatem, «um homem ferido de dor». Nosso Senhor sente cair-Lhe sobre os ombros o peso horrível da agonia ; quer que o saibamos e, por isso, faz esta oração.
 Mas ouvi o que logo acrescenta: "No entanto, ó Pai. faça-se a tua vontade e não a minha». É o amor que triunfa. Porque ama o Pai, põe a vontade d'Ele acima de tudo e aceita todos os sofrimentos. Notai que o Pai podia, se assim aprouvesse aos Seus desígnios eternos, atenuar os sofrimentos de Nosso Senhor, modificar-lhe as circunstâncias da morte. Mas não quis. Na Sua justiça, exigiu que, para salvar o mundo, Jesus Cristo se entregasse a todas as dores. Esta vontade diminuiu acaso o amor de Jesus? Por certo que não. Ele não diz! "Meu Pai podia ter arranjado as coisas doutro modo» ; não; aceita inteiramente tudo o que Pai quer: Non mea voluntas, sed tua fiat, 
Irá até ao fim do sacrifício. Alguns instantes depois da agonia, no momento da prisão, quando S. Pedro quer defendê-Lo e fere com a espada um dos que vinham prender o Mestre, que lhe diz logo o Salvador? «Mete a espada na bainha; então não hei-de beber o cálix que meu Pai me deu ?» Calicem quem dedít míhí Pater, non bíbam illum?.
Portanto, é sobretudo o amor ao Pai que leva Jesus Cristo a aceitar os sofrimentos da Paixão. Mas é também o Seu amor para conosco.
 Na última Ceia, quando vai soar a hora de consumar a Sua oblação, que diz aos Apóstolos congregados em volta d'Ele? "Não há maior amor do que dar a vida pelos seus amigos»: Majorem hac dílectíonem nemo habet, ut animam suam ponat quis pro amicis suis. E este amor, que ultrapassa. todo o amor, Jesus vai-no-lo demonstrar, pois, diz S. Paulo, «foi por todos nós que Ele se entregou».  «Morreu por amor de nós, sendo como éramos Seus inimigos». Que maior prova de amor poderia dar-nos? Nenhuma.
 Por isso, o Apóstolo proclama sem cessar que «foi por nos amar que Jesus Cristo se entregou» ; «pelo amor que me tinha, entregou-se por mim». E «entregou-se», «deu-se», até que ponto? Até à morte! Semetipsum tradidit. 
O que realça infinitamente este amor é a liberdade soberana com Jesus Cristo se ofereceu: Oblatus est quía ipse voluit. Estas duas palavras dizem-nos quão es­pontâneamente Jesus aceitou a Paixão. Bem dissera Ele um dia, falando do Bom pastor que dá a vida pelas suas ovelhas. "Meu Pai ama-me, porque dou a minha vida para a retomar no dia da minha ressurreição. Ninguém me tira à força; Sou eu que a dou; tenho o poder de a dar e de a retomar».
 E vede como se realizaram estas palavras. Quando O iam prender, pergunta aos soldados que Lhe querem deitar a mão: "A quem buscaís?» - "A Jesus de Nazaré». - «Sou eu". E esta palavra prostra-os por terra. Se o pedisse, «o Paí enviaria legiões de Anjos para O libertar». "Todos os dias, acrescenta, costumava assentar-me no meio de vós, a ensinar no Templo, e não me prendestes». Podia fazer com que se desse hoje o mesmo, mas não quis, porque era chegada "a Sua hora». Vede-O diante de Pilatos. Reconhece que "o poder que, tem o governador romano de O condenar à morte não vem senão do Pai»: Non haberes potestatem adversum me ullam, nisí tibi datum esset desuper. Se quisesse libertava-se das mãos dele; mas, visto ser essa a vontade do Pai, entrega-se a um juiz iníquo ; Tradebat judicanti se injuste.
 Esta liberdade com que Jesus dá a Sua vida é abso­luta. É esta uma das mais admiráveis perfeições do Seu sacrifício, um dos aspectos que mais profundamente impressionam o nosso coração humano. «Deus amou o mundo a ponto de lhe dar o Seu Filho único». Cristo amou os seus irmãos a ponto de se entregar a si mesmo total e espontâneamente para os salvar. 

1 de abril de 2017

Dom Columba Marmion - Jesus Cristo nos seus mistérios.

XIII

JESUS CRISTO AMOU A IGREJA E ENTREGOU-SE A SI MESMO POR AMOR DELA PARA A SANTIFICAR 
(Tempo da Paixão) 

 Ao narrar a Transfiguração, S. Lucas revela-nos esta particularidade: «Moisés e Elias conversavam com Jesus acerca da Sua morte». Assim, pois, no momento em que Jesus Cristo levanta aos discípulos prediletos uma ponta do véu que oculta à multidão os esplendores da Sua Divindade,
entretem-se a falar da Sua Paixão e morte. Isto pode parecer estranho; e, no entanto, tudo tem fácil explicação.
 A Paixão marca o ponto culminante da obra que vem realizar neste mundo. Para Jesus, é a hora em que consuma o sacrifício que deve dar ao Pai glória infinita, redimir a humanidade e reabrir aos homens as fontes da vida eterna. Por isso, Nosso Senhor, que, desde o primeiro momento da Incarnação, se entregou inteiramente à vontade do Pai, deseja ardentemente ver chegar o que chama «a Sua hora», a hora por excelência. Baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor usquedum perficiatur. «Devo ser batizado com um batismo - o batismo de sangue -, e quanto anseio por o ver realizado»! Jesus está ansioso por ver chegada a hora em que poderá abismar-se no sofrimento e sofrer a morte para nos dar a vida.
 É certo que não quer adiantar-se a essa hora; submete-se plenamente à vontade do Pai. Mais duma vez nota S. João que os judeus tentam deitar-Lhe a mão e matá-Lo; Nosso Senhor escapa sempre, mesmo por milagre, «porque não é chegada a Sua hora»: Nondun venerat hora ejus. Mas, logo que chega essa hora, Jesus Cristo entrega-se com o maior ardor, apesar de conhecer de antemão todos os sofrimentos que devem despedaçar-Lhe o corpo e a alma: Desiderio desideravi hoc Pascha manducate vobiscum antequam patiar: «Desejei com o maior ardor comer esta Páscoa convosco, antes de sofrer a minha Paixão». Chegou finalmente a hora de há tanto esperada.
 Contemplemos a Jesus nessa hora. Este mistério da Paixão é inefável; tudo nele é grande, até nos mais pequenos pormenores, como tudo, aliás, é grande na vida do Homem-Deus. Aqui sobretudo estamos no limiar dum santuário onde não podemos entrar senão com fé viva e profundo respeito. Um texto da epístola de S. Paulo aos Efésios resume os pontos essenciais que devemos considerar neste mistério. «Jesus Cristo, diz, amou a Igreja, - entregou-se a Si mesmo por amor dela - para a santificar e fazer aparecer diante de Si uma sociedade gloriosa, sem mancha nem ruga nem coisa semelhante, mas toda santa e imaculada».
 Nestas palavras está indicado o próprio mistério da Paixão: "Jesus entregou-se a Si mesmo»: Seipsum tradidit. E o que é que O levou a entregar-se? O amor; é esta  a razão profunda do mistério: Dilexit Ecclesiam. E o fruto desta oblação de Si mesmo por amor é a santificação da Igreja: Ut illam sanctificaret ... ut sit sancta et immaculata.
 Cada uma destas verdades reveladas pelo Apóstolo encerra para as nossas almas tesouros de luz e frutos de vida. Contemplemo-las por alguns instantes. Veremos em seguida como devemos participar da Paixão de Jesus para aproveitarmos esses tesouros e colhermos esses frutos.