15 de junho de 2009

CATECISMO ROMANO - EUCARISTIA (PARTE 9)

I. EUCARISTIA COMO SACRAMENTO
Catecismo Romano

Agora, porém, é preciso ensinar que pessoas estão em condições de receber os incalculáveis frutos da Sagrada Eucaristia, ainda há pouco mencionados; cumpre dizer também que são várias as maneiras de comungar, para que o povo cristão aprenda a desejar “melhores dons espirituais” (I Cor XII, 31).

IX. 1. Três modos de comungar

A) Comunhão indigna

Conforme lemos no Concílio Tridentino, nossos antigos mestres distinguiam, com muito acerto, três modos de se receber este Sacramento.

Alguns cristãos só recebem o Sacramento. São os pecadores, que não hesitam em tomar os Santos Mistérios, com a boca e o coração manchados de impureza. São eles que, no dizer do Apóstolo, “comem e bebem indignamente o Corpo de Nosso Senhor” (I Cor XI, 29). Deles escreve Santo Agostinho: “Quem não permanece em Cristo, e no qual Cristo por sua vez não permanece, esse não come espiritualmente a Sua Carne, embora tenha entre os dentes, de maneira carnal e sensível, o Sacramento de Seu Corpo e Sangue”. Por conseguinte, quem nesse estado de alma recebe os Santos Mistérios, além de não auferir fruto algum, “come e bebe a sua própria condenação”, como no-lo atesta o mesmo Apóstolo.

B) Comunhão espiritual

Muitos recebem a Eucaristia só espiritualmente, como se costuma dizer. São aqueles que se nutrem deste Pão Celestial, pelo desejo e a intenção de recebê-lo, animados de uma fé viva, “que se torna operosa pela caridade” (Gl V, 6). Por essa prática, alcançam, se não todos os frutos, pelos menos grande abundância deles.

C) Comunhão digna e sacramental

Outros há, enfim, que tomam a Eucaristia, sacramental e espiritualmente. São os que se examinam antes a si mesmos, como o requer o Apóstolo, e se adornam com a veste nupcial, para então chegarem à Mesa Divina. Assim auferem da Eucaristia aqueles ubérrimos frutos, de que já fizemos menção.

Em vista de tais razões, compreendemos, claramente, como se privam, dos maiores bens sobrenaturais, as pessoas que podem preparar-se para a recepção sacramental do Corpo de Nosso Senhor, mas só se contentam de fazer a Comunhão espiritual.

IX.2. Preparação para a Comunhão Sacramental

A seguir, devemos expor quais disposições deve haver na alma dos fiéis, antes que eles recebam sacramentalmente a Eucaristia.

A) Necessidade

Em primeiro lugar, para que se reconheça que tal preparação é sumamente necessária, cumpre aduzir o exemplo de Nosso Salvador. Antes de dar aos Apóstolos o Sacramento do Seu precioso Corpo e Sangue, Cristo “lavou-lhes os pés, apesar de que [os Apóstolos] já estavam puros” (Jo XIII, 5ss). Queria, assim, indicar como devemos ter todo o cuidado de que nada falte à máxima pureza e retidão de nossa alma, quando vamos receber os Mistérios Eucarísticos.

Depois, devem os fiéis compreender o seguinte. Quem toma a Eucaristia, com boas e santas disposições, é provido com os mais abundantes dons da graça divina. Em razão inversa, quem comunga sem estar preparado, não só nenhum proveito tira, mas até incorre em muitos danos e prejuízos.

Como é notório, existe, nas coisas mais úteis e salutares, a propriedade de sortirem os melhores efeitos, quando aplicadas a propósito: e de causarem ruína e destruição, quando aplicadas fora do momento oportuno. Não é, pois, de estranhar, que estes imensos e preciosos dons de Deus nos ajudem, poderosamente, a conseguir a glória celestial, quando os recebemos com boas disposições; e que ao invés produzam em nós a morte eterna, se deles nos fazemos indignos [por falta de boa preparação].

Disso temos uma prova cabal no exemplo da Arca do Senhor, que os Israelitas prezavam acima de todas as coisas. Por ela, o Senhor lhes havia dispensado um sem-número dos maiores benefícios. Aos filisteus, porém, que a tinham roubado, a Arca da Aliança acarretou-lhes uma peste maligna, e um flagelo que os cobria de eterna vergonha.

Assim também acontece com os alimentos. Quando ingeridos por um estômago bem disposto, sustentam e fortalecem o organismo. Se entram, porém, num estômago viciado, provocam até graves enfermidades.

B) Preparação da alma

Fé inabalável

A primeira coisa que os fiéis devem fazer, como preparação, é distinguir entre mesa e mesa, entre esta Mesa Sagrada e as outras profanas, entre este Pão do Céu e o pão comum. De fato faremos tal distinção, se crermos que ali está presente o verdadeiro Corpo e Sangue de Nosso Senhor, que os Anjos adoram no Céu (Sl XCVI, 8); a cujo aceno estremecem e vacilam as colunas do firmamento (Jó XXVI, 11); e de cuja glória estão cheios o céu e a terra (Is VI, 3).

Realmente, nisso consiste o “distinguir o Corpo do Senhor”, como recomendava o Apóstolo. Sem embargo, devemos antes reverenciar, silenciosamente, a grandeza desse Mistério, em vez de querermos devassar a sua realidade com investigações impertinentes.

Sincera caridade fraterna

O segundo ponto de preparação, absolutamente indispensável, consiste em examinar-se cada qual a si mesmo, se vive em paz com os outros, se ama realmente ao próximo de todo o coração. “Portanto, se apresentas tua oferta diante do altar, e aí te lembras que teu irmão tem motivo de queixa contra ti, deixa a tua oferenda diante do altar, vai primeiro reconciliar-se com teu irmão, e vem depois fazer a tua oferta” (Mt V, 23ss).

Prévia confissão dos pecados mortais

Em seguida, devemos examinar, cuidadosamente, a nossa consciência, se não está talvez manchada de alguma culpa mortal, de que precisamos penitenciar-nos. Ela deve ser extinta, antes de comungarmos, pelo remédio da contrição e da Confissão. Pois o Santo Concílio de Trento decretou que ninguém pode receber a Sagrada Eucaristia, se a consciência o acusa de algum pecado mortal; embora se julgue contrita, deve a pessoa purificar-se, antes, pela Confissão sacramental, contanto que haja a presença de um sacerdote.

Sentimentos de humildade

Afinal, devemos considerar, no silêncio de nossas almas, quanto somos indignos desta divina mercê que o Senhor nos dispensa. De todo o coração, repetiremos aquelas palavras do Centurião, a cujo respeito o próprio Salvador disse que não havia encontrado tanta fé em Israel: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha casa” (Mt VIII, 8-10).

Vejamos, outrossim, se podemos fazer nossa aquela declaração de São Pedro: “Senhor, Vós sabeis que eu Vos amo” (Jo XXI, 17). Pois não devemos esquecer: Aquele que, “sem a veste nupcial tomara lugar no banquete do Senhor, foi lançado num cárcere tenebroso” (Mt XXII, 11), e condenado a penas eternas.

C) Preparação do corpo

De mais a mais, não só a alma, mas também o corpo precisa de certas disposições. Para nos aproximarmos da Sagrada Mesa, devemos estar em jejum, de sorte que não tenhamos comido nem bebido nada em absoluto, desde a meia-noite antecedente até o momento de recebermos a Sagrada Eucaristia (*atualmente, basta uma hora de jejum antes da Comunhão).

Requer ainda a dignidade de tão sublime Sacramento que as pessoas casadas se abstenham por alguns dias, a exemplo de Davi que, antes de receber do sacerdote os pães de proposição, afiançou que ele e seus soldados, desde três dias, estavam longe das esposas.

São estas, pouco mais ou menos, as condições principais que os fiéis devem levar em conta, a fim de se prepararem para uma frutuosa recepção dos Sagrados Mistérios. Outras disposições ainda, que se refiram à preparação, podem facilmente reduzir-se aos pontos já especificados.

IX.3. Freqüência da Comunhão

A) A desobriga da Páscoa

Para evitar que alguns talvez se descuidem de receber este Sacramento, por acharem dura e incômoda tão grande preparação, devem os pastores advertir muitas vezes os fiéis da existência de um preceito que obriga todos a receberem a Sagrada Eucaristia. Além disto, determinou a Igreja que de seu grêmio seja excluído quem não comungar ao menos uma vez cada ano, por ocasião da Páscoa (* esta pena de excomunhão foi abolida).

B) comunhão freqüente, até diária

Não se contentem os fiéis de receber o Corpo de Nosso Senhor uma única vez cada ano, para se submeterem à determinação do decreto. Persuadam-se, pelo contrário, de que é preciso fazer mais vezes a Comunhão Sacramental. Todavia, não se pode dar a todos uma norma determinada, se lhes é mais aconselhável comungar todos os meses, todas as semanas, ou todos os dias. Ainda assim, temos por muito acertada aquela regra de Santo Agostinho: “Faze por viver de tal modo, que possas comungar todos os dias”.

Será, pois, um dever do pároco exortar, assiduamente, os fiéis a que se não descuidem de alimentar e fortalecer, todos os dias, as suas almas pela recepção deste Sacramento, do mesmo modo que também julgam necessário proporcionar ao corpo uma alimentação diária. Compreende-se, perfeitamente, que a alma não tem menos necessidade do alimento espiritual, que o corpo do sustento material.

Neste passo, será de muito proveito lembrar-lhes, de novo, os imensos benefícios divinos, que nos obtém a Comunhão Sacramental da Eucaristia, conforme já ficou provado anteriormente.

Acrescente-se também aquela figura do “maná, que devia refazer todos os dias as forças do corpo” (Ex XVI, 4ss). Da mesma forma, vejam-se as declarações dos Santos Padres, que muito encareciam a recepção freqüente deste Sacramento. Entre os Padres da Igreja, Santo Agostinho não era o único a perfilhar a seguinte doutrina: “Tu pecas mesmo todos os dias. Comunga, pois, todos os dias”. Quem investigar atentamente, há de logo reconhecer uma perfeita conformidade de doutrina entre todos os Santos Padres, que se ocuparam do assunto em suas obras.

C) Histórico da recepção da Comunhão

Antigamente, conforme se deduz dos Atos dos Apóstolos, houve tempos em que os fiéis recebiam todos os dias a Eucaristia. Todos os que professavam a fé cristã, ardiam em tão real e sincera caridade que, entregues continuamente a orações e outros exercícios da religião, tinham todos os dias as devidas disposições, para receberem o Santo Sacramento do Corpo de Nosso Senhor.

Esse costume, que estava em visível decadência, foi mais tarde parcialmente restaurado por Santo Anacleto, Papa e mártir, quando ordenou que, à Missa, comungassem os ministros assistentes, afirmando ser tal exigência de instituição apostólica.

Na Igreja, houve também por muito tempo o costume que, ao terminar o Sacrifício, o sacerdote, depois de sua própria Comunhão, se volvesse ao povo ali presente, e convidasse os fiéis para a Sagrada Mesa, dirigindo-lhes estas palavras: “Vinde, irmãos, à Comunhão!”. Então, os que estavam preparados, recebiam os Santos Mistérios com a maior piedade.

Mais tarde, arrefecendo o amor e a devoção, a ponto de serem muito raros os fiéis que freqüentavam a Sagrada Eucaristia, decretou o Papa Fabiano recebessem todos a Comunhão três vezes por ano, no Natal do Senhor, na Ressurreição, e em Pentecostes.

Depois, foi esta determinação confirmada por muitos Concílios, mormente pelo Primeiro Concílio de Agda. Por último, como os fiéis chegassem ao extremo de não só abandonar a observância daquele salutar preceito, mas até de diferir por muitos anos a Comunhão da Sagrada Eucaristia, prescreveu o Concílio de Latrão que todos os fiéis recebessem o Sagrado Corpo de Nosso Senhor, ao menos uma vez cada ano, por ocasião da Páscoa; e que fossem excluídos do grêmio da Igreja todos aqueles que o deixassem de fazer.

A Comunhão das crianças

Promulgada pela autoridade de Deus e da Igreja, essa obrigação abrange todos os fiéis. Muito embora, devem os pastores ensinar que dela estão excetuados todos aqueles que, por insuficiência de idade, ainda não chegaram ao uso da razão. Estes não sabem distinguir a Sagrada Eucaristia do pão comum e profano, nem podem conciliar, para a sua recepção, a devida piedade e reverência.

Isto parece também muito contrário ao que Cristo Nosso Senhor declarou com as palavras da instituição: “Tomai e comei”, diz Ele. Ora, sabemos perfeitamente que as criancinhas em tenra idade não são ainda capazes de “tomar e comer”.

Houve, sim, em alguns lugares um costume antigo de dar-se a Sagrada Eucaristia também às criancinhas. Mas a autoridade da Igreja fez, desde muito, cessar esse costume, já pelas razões que acabamos de alegar, já por outros motivos que muito condizem com os sentimentos da piedade cristã.

Quanto à idade, em que se devem ministrar às crianças os Sagrados Mistérios, ninguém poderá melhor determiná-la, senão o próprio pai, ou o sacerdote a quem elas confessam os seus pecados. A eles, pois, compete averiguar, por perguntas feitas às crianças, se já possuem alguma noção deste admirável Sacramento, e o gosto de recebê-lo.

A Comunhão de dementes

Não se deve, muito menos, dar o Sacramento aos alienados, que na ocasião forem incapazes de sentimentos de piedade. Ainda assim, por decreto do Concílio de Cartago, se antes da demência demonstraram sinceras disposições de fé e piedade, será lícito dar-lhes a Eucaristia na hora da morte, contanto que não haja nenhum perigo de vômito, ou de qualquer outra profanação ou inconveniência.

A Comunhão debaixo de ambas as espécies

Acerca do rito da Comunhão, digam os párocos que a lei da Santa Igreja proíbe a todo cristão tomar a Sagrada Eucaristia, em ambas as espécies, a não ser que tenha autorização da mesma Igreja. Excetuam-se os sacerdotes, quando consagram o Corpo do Senhor, no Santo Sacrifício.

Como declarou o Concílio de Trento, ainda que Cristo Nosso Senhor, na Última Ceia, instituiu este augusto Sacramento sob as espécies de pão e de vinho, e assim o administrou aos Apóstolos, daí não se segue que Nosso Senhor e Salvador estabelecesse a obrigação de se dar, a todos os fiéis, os Sagrados Mistérios em ambas as espécies.

Pois, ao falar deste Sacramento, Nosso Senhor aludia muitas vezes a uma só espécie, quando, por exemplo, declarou: “Se alguém comer deste Pão, viverá eternamente”; “O Pão que Eu darei, é a Minha Carne para a vida do mundo”; “Quem come deste Pão, viverá eternamente” (Jo VI, 52-59).

Compreende-se, desde logo, serem muitas e gravíssimas as razões que induziram a Igreja, não só a confirmar o costume de se preferir a Comunhão debaixo de uma só espécie, mas a torná-lo até obrigatório, pela promulgação de uma lei propriamente dita.

Em primeiro lugar, impunha-se a máxima precaução, para que se não derramasse por terra o Sangue de Nosso Senhor. Isto, porém, parecia difícil de evitar, quando fosse necessário ministrar o [Santíssimo Sangue] a uma grande multidão de povo.

Depois, como a Sagrada Eucaristia devia estar sempre de reserva para os enfermos, grande perigo havia de azedarem-se as espécies de vinho, se fora preciso guardá-las por mais tempo.

Além disso, muitas pessoas não podem de modo algum tolerar o sabor, nem sequer o cheiro do vinho. Ora, para não tornar nocivo ao corpo, o que se deve ministrar para a saúde da alma, com muito acerto determinou a Igreja que os fiéis somente comungassem sob as espécies de pão.

A estas e outras razões acresce que, em muitas paragens, há grande escassez de vinho, o qual só pode ser importado de outros lugares, com avultadas despesas, em longas e difíceis vias de transporte.

Afinal, a mais imperiosa de todas as razões era extirpar a heresia daqueles que negavam a presença total de Cristo em cada uma das espécies, afirmando que na espécie de pão só se contém o Corpo sem o Sangue, e o Sangue só na espécie de vinho. E assim, para que melhor transparecesse, aos olhos de todos, a verdade do dogma católico, introduziu-se com muito critério a Comunhão debaixo de uma só espécie, por sinal que na espécie de pão.

Existem ainda outras razões, colhidas pelos autores que tratam deste assunto mais em particular. Os párocos poderão aduzi-las, se o julgarem conveniente.

Embora seja matéria que ninguém desconhece, vamos agora discorrer acerca do ministro [da Eucaristia], para não deixar fora nenhum ponto que pertença à doutrina deste Sacramento.

X. MINISTRO DA EUCARISTIA – O SACERDOTE

Devemos, pois, ensinar que só aos sacerdotes foi dado poder de consagrar a Sagrada Eucaristia, e de distribuí-la aos fiéis cristãos. Sempre foi praxe da Igreja que o povo fiel recebesse o Sacramento pelas mãos dos sacerdotes, e os sacerdotes comungassem por si próprios, ao celebrarem os Sagrados Mistérios. Assim o definiu o Santo Concílio de Trento; e determinou que esse costume devia ser religiosamente conservado, por causa de sua origem apostólica, e porque também Cristo Nosso Senhor nos deu o exemplo, quando consagrou Seu Corpo Santíssimo, e por Suas próprias mãos O distribuiu aos Apóstolos.

De mais a mais, com o intuito de salvaguardar, sob todos os aspectos, a dignidade de tão augusto Sacramento, não se deu unicamente aos sacerdotes o poder de administrá-lo: como também se proibiu, por uma lei da Igreja, que, salvo grave necessidade ninguém sem Ordens Sacras ousasse tomar nas mãos ou tocar vasos sagrados, panos de linho, e outros objetos necessários à confecção da Eucaristia.

Destas determinações podem todos, os próprios sacerdotes e os demais fiéis, inferir quão virtuosos e tementes a Deus devem ser aqueles que se dispõem a consagrar, a ministrar, ou a receber a Sagrada Eucaristia.

Isto não obstante, se dos outros Sacramentos já dizíamos que podem ser [validamente] administrados por sacerdotes indignos, quando estes observam os requisitos necessários para a sua confecção, outro tanto se deve dizer também com relação ao Sacramento da Eucaristia.

Pois devemos crer firmemente que todos esses efeitos sacramentais não se baseiam no mérito pessoal dos ministros, mas se operam na virtude e poder de Cristo Senhor Nosso. São estes os pontos que se devem explicar acerca da Eucaristia, considerada como Sacramento.

13 de junho de 2009

Domingo na Oitava de Corpus Christi: O Banquete do Senhor.

Homilia 36 in Evang. sancti Gregorii Papæ
36.ª Homilia sobre os Evangelhos, do Papa São Gregório Magno

Sói demonstrar a distância, irmãos caríssimos, entre as delícias do corpo e as do coração: que, quando não se têm as delícias corporais, se acende em si um grave desejo; porém, quando se as têm consumidas, o que as devorou prontamente se acha no fastídio por causa da saciedade. Pelo contrário, as delícias espirituais, quando não se as têm, se está em fastídio, enquanto que quando se as têm, se está em desejo, e tanto mais são ansiadas pelo que as come quanto mais por ele são comidas. Naquelas, o apetite agrada, e a experiência aborrece: o apetite gera a saciedade, e a saciedade, o fastídio; nessas, porém, o apetite gera a saciedade, e a saciedade, o apetite.

Enquanto saciam, aumenta na alma o desejo das delícias espirituais, porque quanto mais se sente o seu sabor, mais amplamente se conhece o quanto mais avidamente devem ser amadas, e, do mesmo modo, habitualmente não as pode amar quem ignora o seu sabor. Quem, pois, consegue amor o que ignora? Por isso nos admoesta o Salmista, dizendo: Provai e vede que o Senhor é suave. Entenda-se por conseguinte: Não conheceis a sua suavidade, se nem ao menos a saboreais; mas atingi o alimento da vida com o paladar do coração, de modo que, provando da sua doçura, consiguais amá-lo. Porém, o homem perdeu essas delícias quando pecou no paraíso: fora daí saiu, quando fechou a boca para o alimento da eterna doçura.

Por isso também nós, nascidos nos trabalhos dessa peregrinação, aqui já chegamos enfastiados, não sabemos o que devemos desejar. E tanto mais aumenta a morbidade do nosso fastídio, quanto mais se distancia a alma do comer da sua doçura, e já lhe não apetecem as delícias interiores, àquele que, há largo tempo, esqueceu-se de comê-las. Consumimo-nos, assim, no nosso fastídio, e somos longamente fatigados pela peste da fome. E, por não querermos saborear a doçura preparada no interior, míseros amamos, no exterior, a nossa fome.

12 de junho de 2009

CATECISMO ROMANO - EUCARISTIA (PARTE 8)

I. EUCARISTIA COMO SACRAMENTO
Catecismo Romano

No entanto, com relação ao que se pode dizer da admirável virtude e dos frutos deste Sacramento, não há nenhuma classe de fiéis, para os quais esse conhecimento não seja possível, e até sumamente necessário. Força é reconhecer que, se alargamos bastante a explicação deste Sacramento, temos por fim principal que os fiéis compreendam a utilidade da Eucaristia.

Como, porém, não há termos humanos que possam exprimir, adequadamente, suas imensas vantagens e aplicações, os pastores procurarão, pelo menos, tratar um ou outro ponto, para mostrarem quanta não é a abundância e afluência de todos os bens, que se encerram nestes Sagrados Mistérios.

VIII. 1. Fonte de todas as graças

Conseguirão demonstrá-lo, até certo ponto, se, depois de exposta a virtude e a natureza de todos os Sacramentos, compararem a Eucaristia a uma fonte viva, e os demais a rogos de água. Na verdade, a Eucaristia deve ser forçosamente considerara como a fonte de todas as graças; porquanto encerra em si, de modo admirável, a própria fonte de todos os dons e carismas celestiais, Cristo Senhor Nosso, o Autor de todos os Sacramentos, do qual promanam, como de uma fonte, todos os valores e perfeições que possa haver nos demais Sacramentos. Sendo assim, podemos sem mais concluir que desta fonte da divina graça procedem os imensos benefícios que nos são dispensados neste Sacramento.

VIII. 2. Efeitos como alimento espiritual

Muito prático será também considerar, como ponto de partida, a própria natureza do pão e do vinho, enquanto são os sinais simbólicos deste Sacramento.

Os mesmos efeitos que o pão e o vinho produzem no corpo, a Eucaristia também os produz todos, de modo mais elevado e mais perfeito, para a salvação e bem-aventurança da alma.

a) Viver por Cristo (graça santificante)

Verdade é que este Sacramento não se assimila à nossa natureza, como o faz o pão e o vinho; mas somos nós que de certo modo nos convertemos em sua natureza. Cabem aqui aquelas palavras de Santo Agostinho: “Alimento sou das grandes almas. Fazes por crescer, e ter-Me-ás por alimento. Não Me converterás em ti, como o fazes com o alimento do teu corpo, mas em Mim te converterás a ti mesmo”.

Ora, se “por Jesus Cristo vieram a graça e a verdade” (Jo I, 17), é mister que uma e outra se derramem na alma de quem, com retidão e piedade, recebe Aquele que disse de Si mesmo: “Quem come a Minha Carne e bebe o Meu Sangue, permanece em Mim e Eu nele” (Jo VI, 57).

Sem dúvida alguma, quem toma este Sacramento, com fervor e piedade, de tal maneira acolhe dentro de si o Filho de Deus, que se integra em Seu Corpo como um membro vivo, de acordo com o que está escrito: “Aquele que Me toma por alimento, viverá por Minha causa” (Jo VI, 57). Da mesma forma: “O pão que Eu darei, é a Minha Carne para a vida do mundo” (Jo VI, 56).

Num comentário desta passagem, ponderava São Cirilo: “O Verbo de Deus, em Se unindo à própria carne, deu-lhe a virtude de vivificar. Portanto, nada é mais consentâneo de que Ele se una aos nossos corpos, de um modo misterioso, mediante a Sua sagrada Carne e o Seu precioso Sangue, que recebemos, no pão e no vinho, pela bênção vivificante [da Consagração]”.

Como se diz que a Eucaristia confere a graça,devem os pastores observar que isto não é para se entender, como se não fosse preciso adquirir antes o estado de graça, quando alguém quer receber este Sacramento, de maneira real e frutuosa.

Assim como a um cadáver nada aproveita o alimento natural, assim também é coisa vista que os Sagrados Mistérios não aproveitam, de modo algum à alma que esteja privada da vida sobrenatural. A presença das espécies de pão e de vinho indica também que eles foram instituídos, não para restituir, mas para conservar a vida da alma.

Há razões para assim falarmos. A graça primeira, com a qual devem estar previamente ornados todos aqueles que se atrevem a tocar com a boca a Sagrada Eucaristia, para não comerem e beberem a sua própria condenação, ela não é dada a ninguém que não tenha, pelo menos, o desejo e a intenção de receber este Sacramento. Pois a Eucaristia é o fim de todos os Sacramentos, é o emblema da mais estreita unidade da Igreja. E, fora da Igreja, ninguém pode conseguir a graça.

b) Fortalecimento da alma, e gosto pelas coisas divinas

Outra razão. O alimento espiritual não só conserva o corpo, mas também o faz crescer. Ao paladar, proporciona-lhe todos os dias novos prazeres e regalos. É o que também faz o alimento da Eucaristia. Não só sustenta a alma, mas dá-lhe também novas forças; faz com que o espírito se deixe enlevar cada vez mais pelo gosto das coisas divinas. Por conseguinte, razões há para se dizer, com toda a justeza e verdade, que este Sacramento confere a graça por excelência. Com fundamento, pode comparar-se ao “maná”, no qual se experimentava “a suavidade de todos os sabores” (Sb XVI, 20).

c) Extinção das faltas veniais

Não devemos tampouco duvidar que a Eucaristia tem por efeito remitir e apagar os pecados mais leves, pecados veniais, como se diz de ordinário. O que a alma perde, pelo ardor das paixões, quando comete pequenas faltas em matéria leve, a Eucaristia lho restitui integralmente, pela eliminação das próprias faltas menores.

Para não nos afastarmos da comparação feita, isso tem analogia com o processo, pelo qual sentimos o alimento natural aumentar e refazer, aos poucos, as calorias que se gastam e perdem em combustão diária.

Assiste-lhe, pois, toda a razão, quando Santo Ambrósio diz deste celestial Sacramento: “Toma-se este pão de cada dia, para remediar as fraquezas de cada dia”. Isto, porém, só tem aplicação aos pecados, em que a alma se não deixa levar a um consentimento plenamente voluntário.

d) Preservação de pecados mortais

Os Mistérios Eucarísticos possuem ainda a virtude de conservar-nos puros e limpos de pecados mortais, indenes nos assaltos das tentações, premunindo a alma com uma espécie de remédio celestial, para que o veneno de alguma paixão mortífera não a possa facilmente contagiar e corromper.

Por isso mesmo, como no-lo atesta São Cipriano, quando os tiranos da época arrastavam, arbitrariamente, os fiéis aos suplícios e à pena de morte, por terem confessado a sua fé cristã, era antigo costume da Igreja Católica administrarem-lhes os Bispos o Sacramento do Corpo e Sangue de Nosso Senhor, para que [os mártires] não desfalecessem nessa luta pela salvação, assoberbados talvez pela veemência das dores.

e) Moderação da concupiscência

Ademais, a Eucaristia refreia e modera as paixões da carne; pois, na medida que vai abrasando os corações com o fogo da caridade, abafa necessariamente os ardores da má concupiscência.

f) Penhor da vida eterna

Afinal, para exprimir, numa só fórmula, todos os frutos e graças deste Sacramento, cumpre-nos dizer que a Sagrada Eucaristia é sumamente eficaz para nos conseguir a vida eterna, pois está escrito: “Quem come a Minha Carne e bebe o Meu Sangue, tem a vida eterna, e Eu o ressuscitarei no último dia” (Jo VI, 55).

Pela graça deste Sacramento, os fiéis gozam, já em vida, da maior paz e tranqüilidade de consciência. Chegado que for o momento de deixarem o mundo, subirão para a eterna glória e bem-aventurança, fortalecidos pela sua virtude, à semelhança de Elias que, com o vigor de um pão cozido debaixo da cinza, caminhou até Horeb, a montanha de Deus (I Rs XIX, 8).

Podem os pastores desenvolver, amplamente, todas estas doutrinas, ou tomando a explicação do sexto capítulo de São João, em que se mostram vários efeitos deste Sacramento; ou percorrendo os feitos admiráveis de Cristo Nosso Senhor, para evidenciar quanta razão temos de julgar muito felizes todos aqueles que O receberam em casa, durante a Sua vida mortal, ou recuperaram a saúde, ao tocarem as Suas vestes ou a fímbria de Sua túnica, mas que muito mais felizes e venturosos somos nós, pois Ele não despreza de entrar em nossas almas, revestido de glória imortal, para lhes curar todas as feridas, paras as unir a Si mesmo, depois de tê-las ornado com os mais ricos dons de Sua graça.

11 de junho de 2009

EUCARISTIA - SANTO TOMÁS DE AQUINO

A CONVERSÃO DO PÃO E DO VINHO
NO CORPO E NO SANGUE DE CRISTO
Santo Tomás de Aquino
(Suma Teológica, III, q.75, a.1)
“Hilário diz: “Não se pode pôr em dúvida a verdade da Carne e do Sangue de Cristo. De fato, pela declaração do próprio Senhor e por nossa fé, a sua Carne é verdadeiramente comida e o seu Sangue é verdadeiramente bebida”. E Ambrósio acrescenta: “Como o Senhor Jesus Cristo é o verdadeiro Filho de Deus, assim também é sua verdadeira Carne que comemos e seu verdadeiro Sangue que é uma bebida”.

“Que o verdadeiro Corpo e Sangue de Cristo estejam no sacramento não se pode apreender pelo sentido, mas somente pela fé, que se apoia na autoridade divina. Por isso, o texto do Evangelho de Lucas “Isto é o meu Corpo dado por vós” (Lc XXII, 19) é comentado por Cirilo: “Não duvides que seja verdade, mas antes aceita as palavras do Salvador na fé: pois, sendo a verdade, não mente”.

1º. Isto está de acordo, primeiramente, com a perfeição da Nova Lei. Pois, os sacrifícios da antiga lei continham este verdadeiro sacrifício da paixão de Cristo, somente em figura, como se diz na Carta aos Hebreus: “Possuindo apenas o esboço dos bens futuros, e não a expressão mesma das realidades” (Hb X, 1). Por isso, foi necessário que o sacrifício da Nova Lei, instituído por Cristo, tivesse algo a mais, a saber que ele contivesse a Cristo na sua paixão, não somente no significado e na figura, mas também na verdade da realidade. E, por isso, este sacramento, que contém realmente o próprio Cristo, como diz Dionísio, “é a perfeição de todos os outros sacramentos”, nos quais a força de Cristo é participada.

2º. Isto convém à caridade de Cristo, pela qual ele assumiu um verdadeiro corpo humano em vista de nossa salvação. E porque é muitíssimo próprio da amizade, segundo Aristóteles, conviver com os amigos, ele nos prometeu em recompensa a sua presença corporal, como está no Evangelho de Mateus: “Onde quer que esteja o cadáver, ali se reunirão os abutres” (Mt XXIV, 28). Neste interim, porém, não nos privou de sua presença corporal nesta nossa peregrinação, mas pela verdade de seu Corpo e Sangue uniu-nos a si nesse sacramento. Ele mesmo diz: “Aquele que come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele” (Jo VI, 57). Por isso, este sacramento é o sinal de maior caridade e reconforto de nossa esperança por causa da união tão familiar de Cristo conosco.

3º. Isto convém à perfeição da fé, que se refere tanto à divindade de Jesus quanto a sua humanidade, como diz o Evangelho: “Vós credes em Deus, crede também em mim” (Jo XIV, 1). E porque a fé trata de realidades invisíveis, como Cristo nos manifesta invisivelmente a sua divindade, assim também neste sacramento nos manifesta a sua carne de modo invisível.

Não atinando com isto, alguns afirmaram que o Corpo e Sangue de Cristo não está nesse sacramento a não ser com em sinal. O que se deve rejeitar como herético, já que contrário às palavras de Cristo. Por isso, Berengário, iniciador desse erro, foi em seguida obrigatório a abjurá-lo e confessar a verdadeira fé".

CATECISMO ROMANO - EUCARISTIA (PARTE 7)

I. EUCARISTIA COMO SACRAMENTO
Catecismo Romano
VII. DOGMAS EUCARÍSTICOS
VII.3. Subsistência das espécies sem a sua própria substância

Resta considerar um terceiro ponto, que parece ser a mais sublime e maravilhosa particularidade deste Sacramento. Sua explicação, porém, já será mais fácil aos pastores, depois de terem desenvolvido os dois pontos anteriores. É que neste Sacramento as espécies de pão e de vinho subsistem, sem nenhuma substância que lhes sirva de suporte.

Como há pouco se demonstrou, neste Sacramento está realmente o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor, de sorte que já não subsiste nenhuma substância de pão e de vinho, pois tais acidentes não podem ficar inerentes ao Corpo e ao Sangue de Cristo. Portanto, a única explicação possível é que eles se sustentam por si mesmos, sem se firmarem em nenhuma substância, por um processo que transcende todas as leis da natureza.

Esta é a doutrina que a Igreja sempre manteve como certa. Pode, por sua vez, ser facilmente comprovada pelos mesmos testemunhos que serviram, anteriormente, para evidenciar que, na Eucaristia, não resta nenhuma substância de pão e de vinho.

VII.4. Conclusão

No entanto, pondo de parte estas questões mais difíceis, o que mais importa à piedade dos fiéis é reverenciar e adorar a majestade deste admirável Sacramento, e considerar, além disso, a infinita Providência de Deus, porquanto estabeleceu a administração dos Sacrossantos Mistérios debaixo das espécies de pão e de vinho.

Com efeito, em sua natureza normal, o homem sente a máxima repugnância em comer carne humana ou tomar sangue humano. Foi, portanto, uma graça de infinita sabedoria, que Deus nos fizesse administrar o Santíssimo Corpo e Sangue nas espécies de pão e de vinho, que são os mais acessíveis e mais deleitáveis de nossos alimentos cotidianos.

Aqui entram também em consideração duas outras vantagens. A primeira é ficamos a coberto de aleivosas acusações, a que dificilmente poderíamos escapar, se os incrédulos nos vissem comer a Carne de Nosso Senhor em sua forma natural.

A segunda é que essa maneira de tomar o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor promove, em grau eminente, a fé de nossos próprios corações, porque não podemos averiguar, com os sentidos, a realidade de Sua presença. A isto se refere aquela frase tão conhecida de São Gregório: “Não há lugar para merecimento, onde a certeza provém da própria razão humana”.

Estas verdades, que estamos a explicar, os pastores não as devem propor senão com grande cautela, atendendo ao nível intelectual dos ouvintes e à necessidade das circunstâncias.

7 de junho de 2009

Missa de Corpus Christi

Símbolos da Fé - Final

AGATÃO: 27 JUN. 678 – 10 JAN. 681



Carta “Consideranti mihi” aos imperadores, 27 mar. 680


No mesmo dia, foram ao imperador Constantino IV Pogonato duas cartas, uma com o nome do próprio Papa (*542-5450), a outra, como epístola sinodal (*546-548). Ambas foram lidas no III Concílio de Constantinopla, na sessão 4ª (15 nov. 680), e aprovadas pelos padres conciliares. Ao imperador foi aconselhada a aceitação dela na sessão 18ª, com as seguintes palavras: “O sumo príncipe dos Apóstolos combatia conosco; de fato, tínhamos no seu imitador e sucessor na Sé um sustentáculo que, em carta, nos ilustrou o mistério divino. Aquela antiga cidade de Roma fez chegar a ti uma profissão de fé escrita por Deus... e por meio de Agatão falava Pedro, e junto com o onipotente co-regente decidias tu, pio Imperador, tu que foste estabelecido por Deus”. (“Summus nobiscum concertabat Apostolorum princeps; illius enim imitatorem et sedis sucessorem habuimus fautorem et divini sacramenti illustrantem per litteras. Confessionem tibi a Deo scriptam illa Romana antiqua civitas obtulit... et per Agathonem Petrus loquebatur, et cum omnipotenti corregnatore pius imperator simul decernebas tu, qui a Deo decretus es”; MaC 11,666CD / HaC 3,1422E-1423A).



A divina Trindade


Eis a posição da fé evangélica e apostólica e da tradição normativa: enquanto professamos que a santa e inseparável Trindade, isto é, Pai, Filho e Espírito Santo, é de uma só divindade, de uma só natureza ou substância ou essência, proclamamos também que ela é de uma só vontade natural, uma só força, operação, domínio, majestade, poder e glória. E qualquer coisa que seja dito, quanto à essência, a respeito da mesma Trindade, instruídos nisto pela doutrina normativa, queremos entendê-lo no singular, como (dito) da única natureza das três pessoas consubstanciais.



O Verbo de Deus encarnado


Ora, ao professarmos a fé a respeito de uma dessas três pessoas desta santa Trindade, o Filho de Deus, Deus Verbo, e a respeito do mistério da sua adorável obra salvífica na carne, segundo a tradição evangélica, declaramos dúplice tudo o que é próprio do único e mesmo Senhor nosso Salvador Jesus Cristo, isto é, proclamamos as suas duas naturezas, a divina e a humana, das quais e nas quais subsiste também, depois, a admirável e inseparável união. Professamos também que cada uma das suas naturezas tem sua propriedade natural: a divina tem tudo o que é divino, e a humana, tudo o que é humano, sem nenhum pecado. Reconhecemos que ambas (as naturezas) são do único e mesmo Deus Verbo encarnado, isto é, feito homem, de maneira inconfusa, inseparável, imutável – enquanto meramente o intelecto distingue o que é unido, em vista do erro da confusão. De fato, rejeitamos de igual modo a blasfêmia da divisão quanto a da confusão.
Ora, se professamos duas naturezas, duas vontades naturais e duas operações naturais no nosso Senhor Jesus Cristo, não as dizemos nem contrárias nem adversas uma à outra..., nem como que separadas em duas pessoas ou subsistências, mas dizemos que o mesmo nosso Senhor Jesus Cristo, como tem em si duas naturezas, assim também duas vontades naturais, isto é, a divina e a humana: na verdade, desde a eternidade ele tem em comum com o Pai coessencial a vontade e operação divina, enquanto a humana, assumida de nós, (ele a tem em comum) com a nossa natureza no tempo. ...

Além disso, a Igreja apostólica de Cristo... reconhece, com base nas propriedades naturais, que cada uma destas naturezas de Cristo é perfeita, e professa como dúplice tudo o que se refere às propriedades das naturezas, já que o próprio nosso Senhor Jesus Cristo é tanto perfeito Deus como perfeito homem, quer de duas, quer em duas naturezas... .
Conseqüentemente, ... ela professa e proclama que nele há também duas vontades naturais e duas operações naturais. De fato, se alguém entendesse a vontade como pessoal, dever-se-ia, já que na santa Trindade se fala de três pessoas, falar (nesta) também de três vontades pessoais e três operações pessoais (o que é absurdo e de todo profano). Se, ao invés, conforme implica a verdade da fé cristã, a vontade é natural, deve-se, ao falar dessa única natureza da santa e inseparável Trindade, conseqüentemente, reconhecer uma só vontade natural e uma só operação natural. Onde, porém, professamos na pessoa do nosso Senhor Jesus Cristo, o mediador entre Deus e os homens [cf. 1Tm 2,5], duas naturezas, isto é, a divina e a humana, nas quais ele subsiste também depois da admirável união, assim como professamos duas naturezas do único e mesmo, assim também (professamos) as suas duas vontades naturais e as suas duas operações naturais.



Sínodo de ROMA: Carta sinodal “Omnium bonorum spes”, aos imperadores, 27 mar. 680



Contra a opinião de que o texto latino seja uma retroversão do grego, H. Quentin sustenta que o latino é o texto original. O texto grego da carta é publicado em G. Kreuzer.


A divina Trindade


Crendo em Deus Pai... e em seu Filho... e no Espírito Santo, Senhor e vivificador, que procede do Pai, e com o Pai e o Filho deve ser adorado e glorificado: a Trindade na unidade e a unidade na Trindade, mas exatamente, a unidade da essência, a Trindade porém das pessoas ou subsistências; professamos Deus Pai, Deus, Filho, Deus Espírito Santo, não três deuses, mas um só Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo; não a subsistência de três nomes, mas a única substância de três subsistências; elas têm uma só a essência, ou substância, ou natureza, isto é, uma só divindade, uma só eternidade, um só poder, um só domínio, uma só glória, uma só adoração, uma só essência vontade e operação da mesma santa e indivisa Trindade, que tudo criou, ordena e sustenta.



O Verbo de Deus encarnado


Professamos, porém, que um da mesma santa coessencial Trindade, Deus Verbo, que antes dos séculos foi gerado pelo Pai, por nós e pela nossa salvação, nos últimos tempos dos séculos desceu dos céus e se encarnou do Espírito Santo e da santa, imaculada e sempre gloriosa virgem Maria, nossa Senhora, verdadeira e propriamente genitora de Deus, já que dela nasceu segundo a carne e se tornou verdadeiramente homem; ele mesmo é verdadeiro Deus e ele mesmo verdadeiro homem e, na verdade, Deus de Deus Pai, homem por sua vez da virgem mãe, encarnado desta carne dotada de alma racional e intelectiva; o mesmo é consubstancial a Deus Pai segundo a divindade e consubstancial a nós segundo a humanidade, e é igual a nós em tudo, sem somente pecado; ele foi crucificado em prol de nós sob Pôncio Pilatos, sofreu, foi sepultado, ressurgiu...

Reconhecemos portanto que o único e mesmo nosso Senhor Jesus Cristo, o unigênito Filho de Deus, subsiste de duas e em duas substâncias de modo inconfuso, imutável, indiviso, inseparável, sem que jamais venha a cessar a diferença das naturezas por causa da união, mas antes, permanecendo a propriedade das duas naturezas e confluindo numa única pessoa e única subsistência; ele não é dividido ou separado numa dualidade de pessoas, nem confuso numa natureza composta, mas reconhecemos que o único e mesmo unigênito Filho, Deus Verbo, nosso Senhor Jesus Cristo, nem (é) um em outro, nem um e outro, mas sim o mesmo em duas naturezas, a saber, na divindade e na humanidade, também depois da união hipostática, já que nem o Verbo foi transformado na natureza da carne, nem a carne foi mudada na natureza do Verbo: permaneceram de fato ambas as realidades assim como eram por natureza; a diferença das naturezas nele unidas, das quais ele de maneira inconfusa, inseparável e imutável é composto, só a reconhecemos mediante a reflexão: um só, de fato, das duas, e ambas mediante um só, já que estão juntas tanto a altura da divindade como a inferioridade da carne, pelo que as duas naturezas, também depois da união, conservam, sem diminuição, as suas propriedades; e “cada uma das duas formas opera em comunhão com a outra aquilo que lhe é próprio: o Verbo opera o que é do Verbo, a carne, ao invés, cumpre o que é da carne: uma destas (realidades) brilha nos milagres, a outra é submetida ao ultrajes”.

Daí, conseqüëntemente, como professamos que ele verdadeiramente tem duas naturezas ou substâncias, isto é, a divindade e a humanidade, de modo inconfuso, indiviso e imutável, assim também professamos que ele tem duas vontades naturais bem como duas atividades naturais, já que a regra da piedade nos ensina que o único e mesmo Senhor Jesus Cristo é perfeito homem; pois demonstra-se que assim nos instruíram a tradição apostólica e evangélica e o magistério dos santos Padres, que a Igreja santa, apostólica e católica e os veneráveis Sínodo têm acolhido.



LEAO IX: 12 FEV. 1049 – 19 ABR. 1054



Carta “Congratulamur vehementer” a Pedro, patriarca de Antioquia, 13 abr. 1053


Pedro de Antioquia tinha pedido a Leão IX uma profissão de fé e lhe tinha mandado a sua. Uma coleção semelhante de artigos de fé está contida nos Statuta Eclesiae antiqua.



Profissão de fé


Creio... firmemente que a santa Trindade, Pai e Filho e Espírito Santo, é um só Deus onipotente, e que toda a divindade está na Trindade coessencial e consubstancial, coeterna e igualmente onipotente, de uma só vontade, poder e majestade; criador de todas as criaturas, do qual tudo, pelo qual tudo, no qual tudo [Rm 11,36] o que há no céu e na terra, as coisas visíveis e as invisíveis. Creio também que as singulares pessoas na santa Trindade (são) um só Deus verdadeiro, pleno e perfeito.
Creio também que o Filho de Deus Pai, o Verbo de Deus, nascido eternamente do Pai antes de todos os tempos, consubstancial, co-onipotente e co-igual ao Pai na divindade em tudo, nasceu no tempo, do Espírito Santo, (do seio) de Maria sempre virgem, com uma alma racional, tendo dois nascimentos, um eterno do Pai, o outro, no tempo, pela mãe; tendo duas vontades e duas operações, (é) verdadeiro Deus e verdadeiro homem, próprio e perfeito numa e noutra natureza; ele não sofreu mistura nem divisão, não é adotivo nem fruto de imaginação; é um único e um só Deus, filho de Deus em duas naturezas, mas na singularidade de uma só pessoa; impassível e imortal na divindade, todavia na humanidade padeceu por nós e por nossa salvação em verdadeiro sofrimento da carne, e foi sepultado, e ressuscitou dos mortos ao terceiro dia com verdadeira ressurreição da carne, e para confirmação desta tomou comida com os discípulos, não por necessidade de alimento, mas unicamente pela (sua) vontade e poder; no quadragésimo dia depois da ressurreição subiu ao céu, com a carne na qual ressuscitara e com a alma, e está sentado à direita do Pai; de lá, no décimo dia, mandou o Espírito Santo, e de lá, assim como subiu, de novo virá, para julgar os vivos e os mortos e retribuir a cada um segundo suas obras.

Creio também (n)o Espírito Santo, plena, perfeita e verdadeiramente Deus, que procede do Pai e do Filho, co-igual, co-essencial, co-onipotente e co-eterno em tudo ao Pai e ao Filho, e que falou por meio dos profetas.

Esta santa e indivisa Trindade, não três deuses, mas, em três pessoas e numa só natureza ou essência, um só Deus onipotente, eterno, invisível e imutável, eu creio nela e a confesso, tanto que proclamo segundo a verdade que o Pai é ingênito, o Filho, unigênito, e o Espírito Santo nem gerado nem ingênito, mas procedente do Pai e do Filho.

[Assuntos diversos:] Creio que a Igreja santa, católica e apostólica é a única verdadeira, e que nela é administrado o verdadeiro batismo e a única verdadeira remissão de todos os pecados. Creio também (n)a ressurreição verdadeira desta mesma carne que agora possuo, e (n)a vida eterna.
Creio também que Deus, Senhor onipotente, é o único autor do Novo e do Antigo Testamento, da Lei, dos Profetas e dos Apóstolos. Creio que Deus predestinou somente o bem, enquanto preconhecia o bem e o mal. Creio que a graça de Deus previne e segue o homem, todavia sem que negue, de modo algum, o livre-arbítrio da criatura racional. Creio e proclamo que a alma não é uma parte de Deus, mas que foi criada do nada e que, sem o batismo, está sujeita ao pecado original.
Anatematizo, outrossim, cada heresia que se ergue contra a santa Igreja católica e, igualmente, todo aquele que crer que se devam considerar autorizadas outras escrituras que não as que a Igreja católica acolhe, ou que as tiver venerado.
Reconheço com todo o respeito os quatro Concílios e os venero com os quatro Evangelhos: pois a Igreja universal, nas quatro partes do mundo, tem neles seu fundamento estável, como sobre uma pedra quadrangular. ...De igual modo acolho e venero os outros três Concílios. ...Tudo quanto os acima citados sete Concílios santos e universais tenham entendido e louvado, também eu entendo e louvo, e anatematizo todo o que eles tenham anatematizado.

3 de junho de 2009

Símbolos da Fé - 9ª Parte

HONÓRIO I: 27 OUT. 625 – 12 OUT. 638

IV Sínodo de Toledo, iniciado a 5 dez. 633: Capítulos

A profissão de fé deste sínodo mostra particular conexão com os símbolos “Fides Damasi” e “Quicumque”.

Símbolo tinitário-cristológico

Em conformidade com as Escrituras divinas e a doutrina que recebemos dos santos Padres, professamos (que) o Pai e o Filho e o Espírito Santo (são) de uma só divindade e substância; crendo a Trindade na diversidade das pessoas e anunciando na divindade a unidade, nem confundimos as pessoas, nem dividimos a substância. Dizemos que o Pai não foi feito ou gerado por ninguém, afirmamos que os Filho não foi feito, mas gerado pelo Pai; do Espírito Santo professamos que não foi nem criado nem gerado, mas procede do Pai e do Filho; e quanto ao próprio Senhor nosso Jesus Cristo, Filho de Deus e criador de tudo, gerado da substância do Pai antes dos séculos, (professamos) que nos últimos tempos desceu do Pai para a redenção do mundo, ele que jamais cessou de estar com o Pai; de fato, encarnou-se, do Espírito Santo e da santa gloriosa genitora de Deus, a virgem Maria, e dela nasceu só ele; o mesmo Cristo, o Senhor Jesus, um da santa Trindade, assumiu sem pecado o homem perfeito, em alma e carne, permanecendo o que era e assumindo o que não era; igual ao Pai na divindade e inferior ao Pai na humanidade, tem numa única pessoa as propriedades de duas naturezas; nele, de fato, há duas naturezas, Deus e homem, não porém dois filhos e dois deuses, mas o mesmo é uma só pessoa em duas naturezas; ele padeceu sofrimento e morte pela nossa salvação, não na força da divindade, mas na fraqueza da humanidade; ele desceu ao ínferos para livrar os santos que ali estavam retidos e, depois de ter vencido o império da morte, ressuscitou; elevado, depois, ao céu, virá no futuro para o juízo dos vivos e dos mortos; purificados pela sua morte e pelo seu sangue, conseguimos a remissão dos pecados, para sermos ressuscitados por ele no último dia, na carne na qual ora vivemos e na forma na qual o mesmo Senhor ressuscitou; uns receberão dele a vida eterna, pelos merecimentos da justiça, os outros, por causa do pecado, a condenação do suplício eterno.
Esta é a fé da Igreja católica; esta confissão de fé, nós a conservamos e sustentamos; quem a tiver guardado com grande firmeza, terá a salvação perpétua.

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ADEODATO II: 11 ABR. 672 – 17 (16?) JUN. 676

XI Sínodo de Toledo, iniciado a 7 nov. 675: Profissão de fé

Esta profissão de fé, atribuída no passado a Eusébio de Vercelli (PL 12, 959-968), segundo J. Madoz foi elaborada pelo XI Sínodo de Toledo, servindo-lhe como fonte principal os símbolos dos IV e VI Sínodos de Toledo (633 e 638); cf. *485 490-493. A opinião de alguns de que este sínodo tenha sido confirmado por Inocêncio III se baseia numa explicação errônea da palavra “authenticum”. Cf. H. Lennerz: ZKTh 48 (1924) 322-324.

A divina Trindade

Confessamos e cremos que a santa e inefável Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, por natureza é um só Deus de uma única substância, de uma única natureza, de uma única majestade e força.

E professamos que o Pai não é gerado, não criado, mas ingênito. Pois ele não tem origem de ninguém, ele do qual o Filho teve o nascimento, bem como o Espírito Santo a processão. Ele é, portanto, a fonte e origem de toda a divindade. Ele é também o Pai de sua essência, ele que de sua inefável substância [Ele, o Pai, a saber, a sua inefável substância, da sua substância] inefavelmente gerou o Filho e, contudo, não gerou outra coisa senão o que ele mesmo é: Deus (gerou) Deus, luz (gerou) luz; dele é, por isso, “toda paternidade no céu e sobre a terra”[Ef 3,15].
Professamos também que o Filho é nascido da substância do Pai, sem início, antes dos séculos, porém não criado: pois nem o Pai existiu jamais sem o Filho, nem o Filho sem o Pai. E contudo, o Pai não é do Filho como o Filho do Pai, pois o Pai não recebeu a geração do Filho, mas o Filho do Pai. O Filho é portanto Deus pelo Pai, o Pai ao invés é Deus, mas não pelo Filho; ele é de fato Pai do Filho, não Deus pelo Filho; este ao contrário, é Filho do Pai e Deus pelo Pai. Todavia o Filho é igual em tudo a Deus Pai, já que o seu nascimento nem teve início, nem cessou num determinado momento.
Também se crê que ele é de uma única substância com o Pai, pelo que é chamado também ao Pai, isto é, da mesma substância que o Pai; pois, em grego, significa “um”, “substância”, e os dois juntos significam “uma só substância”. De fato, devemos crer que o Filho não foi gerado nem do nada, nem de qualquer outra substância, mas do seio do Pai, isto é, de sua substância.
Eterno é portanto o Pai, eterno também o Filho. Se sempre, porém, foi Pai, teve sempre o Filho de quem era pai, e portanto professamos o Filho nascido do Pai sem início. De fato, não o chamamos Filho de Deus por ter sido gerado pelo Pai como “porciúncula de uma natureza seccionada”, mas afirmamos, sim, que o Pai perfeito grou, sem diminuição e sem reparação, um Filho perfeito, pois somente à divindade compete não ter um Filho desigual.
Este Filho é também Filho por natureza, não por adoção, ele que Deus Pai, como se deve crer, gerou não por vontade, nem por necessidade, já que em Deus não cabe qualquer necessidade, nem a vontade precede a sabedoria.
Cremos também que o Espírito Santo, que é a terceira pessoa na Trindade, é Deus um e igual com Deus Pai e Filho, da mesma substância e também da mesma natureza; todavia, não é gerado nem criado, mas procede de ambos e é o Espírito de ambos. Este Espírito não é, conforme a fé, nem gerado nem não gerado, para que não apareça que, chamando-o não gerado, estejamos falando de dois Pais e, chamando-o gerado, estejamos pregando dois Filhos; todavia ele não é chamado Espírito só do Pai, nem só do Filho, mas ao mesmo tempo do Pai e do Filho. Não procede de fato, do Pai no Filho, nem procede do Filho para santificar a criação, mas mostra-se que ele procedeu de ambos, já que é reconhecido como caridade ou santidade de ambos. Este Espírito Santo, portanto, cremos, foi mandado por ambos, como o Filho [da parte do Pai]; mas não é tido como inferior ao Pai e ao Filho à maneira em que o Filho dá testemunho de ser inferior ao Pai e ao Espírito Santo por motivo da carne assumida.

Assim é que convém apresentar a santa Trindade: não se deve dizer e crer que ela seja tríplice, mas Trindade. Não se pode dizer corretamente que no único Deus está a Trindade, mas que o único Deus é a Trindade. Pelo nome das pessoas, porém, que exprime uma relação, o Pai é posto em referência ao Filho, o Filho ao Pai e o Espírito Santo a ambos: se bem que, em vista de sua relação, sejam chamadas três pessoas, estas são, todavia, conforme pregamos, uma só natureza ou substância. E como três pessoas não pregamos três substâncias, mas sim uma única substância e três pessoas. De fato, o que é o “Pai”, não o é em relação a si mesmo, mas ao Filho; e o que é o “Filho”, não o é em relação a si mesmo, mas ao Pai; de modo semelhante, também, o Espírito Santo não é referido em relação a si, mas ao Pai e ao Filho, sendo chamado Espírito do Pai e do Filho. Igualmente, quando dizemos “Deus”, isto é dito não em relação a qualquer coisa, como o Pai (em relação) ao Filho, ou o Filho ao Pai, ou o Espírito Santo ao Pai e ao Filho, mas “Deus” é chamado (assim) de modo particular em relação a si mesmo.

De fato, se somos interrogados sobre cada uma das pessoas, devemos professar que é Deus. Por isso, o Pai é chamado Deus, o Filho, Deus e o Espírito Santo, Deus, cada qual singularmente; e todavia não há três deuses, mas um só Deus. Igualmente o Pai é chamado onipotente, o Filho, onipotente, o Espírito Santo, onipotente, cada qual singularmente; e todavia não há três onipotentes, mas um só princípio. Portanto, professa-se e se crê que cada pessoa, singularmente, é plenamente, Deus, e todas as três pessoas são um só Deus: elas têm a única, indivisa e igual divindade, majestade ou poder, sem diminuição em cada uma, nem aumento nas três, pois não há nada a menos quando cada pessoa é chamada singularmente Deus, nem (nada) a mais quando as três pessoas são proclamadas um só Deus.

Esta santa Trindade, que é o único e verdadeiro Deus, nem subtrai-se ao número, nem é captada pelo número. Na relação das pessoas, de fato, se reconhece o número; na substância da divindade, porém, não está compreendido o que se enumera. Por isso, só no que são em referência uma a outra é que insinuam o número; e no que são para si mesmas deixam o número de lado. De fato, a esta santa Trindade convém um nome de natureza que seja único, de modo que não possa se usado no plural para as três pessoas. Por isso cremos também naquelas palavras das sagradas escrituras: “Grande é o nosso Deus e grande o seu poder, e para sua sabedoria não há número” [sl 147,5].

Não poderemos dizer, porém, que, tendo declarado que estas três pessoas são um só Deus, o Pai seja o mesmo que o Filho e o Filho o mesmo que o Pai, ou que quem é o Espírito Santo seja o Pai ou o Filho. Pois quem é o Filho não é ele mesmo o Pai, nem quem é o Pai é ele mesmo o Filho, nem quem é o Pai é ele mesmo o Filho, nem quem é o Pai ou o Filho é ele mesmo o Espírito Santo; todavia o Pai é isto mesmo que é o Filho, o Filho, isto mesmo que é o Pai, o Pai e o Filho, isto mesmo que é o Espírito Santo, isto é, um único Deus por natureza. De fato, quando dizemos que o Pai não é o mesmo que o Filho, isso se refere à distinção das pessoas. Quando, porém, dizemos que o Pai é isto que é o Filho, o Filho isto que é o Pai e o Espírito Santo isto que é o Pai e o Filho, isso se refere evidentemente à natureza da qual Deus é, ou à substância, já que, quanto á substância, são uma só realidade: distinguimos, de fato, as pessoas, (mas) não dividimos a divindade.

A Trindade, portanto, nós a reconhecemos na distinção das pessoas; a unidade, nós a professamos em vista da natureza ou da substância. Estas três, portanto, são uma só realidade, isto é, quanto á natureza, não quanto às pessoas. Todavia, estas três pessoas não devem ser consideradas separáveis, já que, segundo cremos, nenhuma existiu jamais ou tem operado qualquer coisa antes das outras, nenhuma depois das outras, nenhuma sem as outras. De fato, vemos que são inseparáveis quer naquilo que são, quer aquilo que fazem: já que entre o Pai, que gera, e o Filho, que foi gerado, e o Espírito Santo que (dele) procede, não houve, segundo nossa fé, nenhum intervalo de tempo no qual o genitor tivesse precedido o gerado, ou o gerado tivesse faltado ao genitor, ou o Espírito Santo procedente do Pai e do Filho tivesse aparecido mais tarde. Por isso, declaramos e acreditamos inseparável e inconfusa esta Trindade. Se, portanto, de acordo com a doutrina dos antepassados, se fala nestas três pessoas, é para que sejam reconhecidas, não para que sejam separadas. De fato, se prestamos atenção ao que a santa Escritura diz da Sabedoria: “É o esplendor da luz eterna” [Sl 7,26], então, assim como vemos que o esplendor é inseparavelmente inerente à luz, professamos também que o Filho não pode ser separado do Pai. Portanto, assim como não confundimos estas três pessoas, que são de uma só e inseparável natureza, declaramos também que são absolutamente inseparáveis.

Em verdade, a própria Trindade se dignou mostrar-nos isso de maneira tão clara que mesmo com os nomes com os quais segundo o seu querer as pessoas são reconhecidas singularmente, não permite que uma seja compreendida sem a outra: de fato nem o Pai é reconhecido sem o Filho, nem se encontra o Filho sem o Pai. Em verdade, a própria relação (expressão) pelo nome das pessoas proíbe separar as pessoas, pois, se não as nomeia simultaneamente, insinua-se simultaneamente. Ninguém, pois, pode ouvir um destes nomes sem forçosamente entender também o outro. Portanto, se bem que estas três sejam uma só realidade, e a única realidade, três, todavia permanece para cada uma das pessoas o que lhe é próprio. O Pai tem a eternidade sem nascimento, o Filho a eternidade com o nascimento, o Espírito Santo a eternidade com o nascimento, o Espírito Santo a processão sem nascimento, com a eternidade.

A encarnação

Cremos que destas três pessoas só a pessoa do Filho assumiu, em prol da libertação do gênero humano, um verdadeiro homem, sem pecado, da santa e imaculada Virgem Maria, pela qual foi gerado numa ordem nova, num novo nascimento; numa ordem nova, já que, invisível na sua divindade, se mostra visível na carne; num novo nascimento ele foi gerado, já que a virgindade intacta não só desconheceu o coito viril, como fecundada pelo Espírito Santo subministrou a matéria da carne. Este parto da Virgem não pode ser compreendido pela razão e em nada pode ser exemplificado; porque, se pudesse ser compreendido pela razão, não seria maravilhoso; se em algo pudesse ser exemplificado, não seria singular. Todavia, não se deve crer, por que Maria concebeu sob a sombra do Espírito Santo, que o Espírito Santo seja o Pai do Filho, para não parecermos afirmar que o Filho tem dois pais, o que certamente seria inadmissível dizê-lo.

Nesta admirável conceição, na qual a Sabedoria construiu para si uma casa [Cf. Pr. 9,1], “o Verbo se fez carne e habitou entre nós” [Jô 1,14]. Todavia o Verbo não foi transformado e mudado em carne, como se aquele que quis ser homem cessasse de ser Deus, mas o Verbo se fez carne, de modo que ali não só esteja o Verbo de Deus e a carne do homem, mas também a alma racional do homem; e tudo isso deve ser dito seja de Deus, em vista de Deus, seja do homem, em vista do homem.

Cremos haver neste Filho de Deus duas naturezas, uma da divindade, outra da humanidade, que a pessoa de Cristo uniu em si de tal modo que jamais poderá ser separada nem a divindade da humanidade, nem a humanidade da divindade. Daí, o único Cristo é na unidade da pessoa perfeito Deus e perfeito homem: todavia, por termos dito que no Filho há duas naturezas, não vamos dar lugar a duas pessoas no Filho, para que não pareça aceder à Trindade – longe de nós dizê-lo! – uma quaternidade. Deus Verbo não assumiu a pessoa de um homem, mas sim, a natureza; e na eterna pessoa da divindade acolheu a substância temporal da carne.

Igualmente, enquanto cremos que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são de uma só substância, todavia não dizemos que a Virgem Maria gerou a unidade dessa Trindade, mas só o Filho, o único que assumiu nossa natureza na unidade da sua pessoa. A encarnação deste Filho de Deus, devemos crer ainda, foi operada pela Trindade inteira, já que as obras da Trindade são inseparáveis. Todavia, só o Filho, na singularidade da pessoa, não na unidade da natureza divina, tomou a forma do servo [cf. Fl 2,7] naquilo que é próprio do Filho, não naquilo que é comum à Trindade: e esta forma lhe foi unida na unidade de pessoa, isto é, de modo que o Filho de Deus e o Filho do homem seja o único Cristo; do mesmo modo, o mesmo Cristo nestas duas naturezas é constituído de três substâncias: a do Verbo – o que se deve referir à essência de Deus só -, a do corpo e a da alma – o que faz parte do homem verdadeiro.

Ele tem em si, portanto, a dupla substância da sua divindade e da nossa humanidade. Todavia, enquanto saído de Deus Pai sem início, se entende que ele é somente nascido, não feito, nem predestinado; mas enquanto nascido da Virgem, é preciso crer que ele é nascido, feito e predestinado. Ora, ambos os nascimentos são nele admiráveis, já que ele foi gerado pelo Pai antes dos séculos, sem a mãe, quer gerado ao fim dos séculos pela mãe, sem pai: enquanto Deus, ele criou Maria, enquanto homem, foi criado por Maria; ele mesmo é da mãe Maria tanto pai como filho.
Igualmente, pelo fato de ser Deus, é igual ao Pai; pelo fato de ser homem, é inferior ao Pai. De igual modo, deve-se crer que ele é maior do que si mesmo e inferior a si mesmo: na forma de Deus, de fato, o mesmo Filho é maior que si mesmo, pois assumiu a humanidade, em comparação com a qual a divindade é maior; na forma de servo, porém, isto é, na humanidade, é inferior a si mesmo, pois que esta é inferior à divindade. Como, de fato, mediante a carne assumida é considerado não somente inferior ao Pai, mas também a si mesmo, assim na divindade, mediante a qual é igual ao Pai, tanto ele como o Pai são maiores que o homem, que só a pessoa do Filho assumiu.

Dom mesmo modo, à pergunta se o Filho possa ser também igual ao Espírito Santo e menor do que este, assim como, segundo a nossa fé, ora é igual e ora inferior ao Pai, respondemos: na forma de Deus ele é igual ao Pai e ao Espírito Santo, na forma do servo é menor que o Pai e que o Espírito Santo; já que nem o Espírito Santo, nem Deus Pai, mas só a pessoa do Filho assumiu a carne, pela qual cremos que seja menor do que as outras duas pessoas. Igualmente, segundo a nossa fé, este Filho é distinto, porém não separado de Deus Pai e do Espírito Santo quanto à pessoa, e (distinto) do homem assumpto quanto à natureza. Igualmente, com o homem subsiste na pessoa, com o Pai e o Espírito Santo, na natureza ou substância da divindade.

Todavia é preciso crer que o Filho foi mandão não só pelo Pai, mas também pelo Espírito Santo, pois ele mesmo disse, mediante dos profetas: “E agora me mandou o Senhor e o seu Espírito” [cf. Is 48,16]. Foi mandado, assim aceitamos, também por si mesmo; pois não só a vontade, mas também o operar da inteira Trindade é, como reconhecemos, indiviso. De fato, aquele que é chamado unigênito antes dos tempos, se tornou primogênito no tempo: unigênito por causa da substância da divindade, primogênito por causa da natureza da carne assumida.

A redenção

Nesta forma do homem assumpto, assim cremos a verdade do Evangelho, foi concebido sem pecado e morreu sem pecado aquele que, como único, em prol de nós “se tornou pecado” [cf. 2 Cor 5,21], isto é, sacrifício pelos nossos pecados. E todavia, salvaguardada a sua divindade, suportou esta paixão pelos nossos delito, foi condenado à morte e aceitou na cruz uma verdadeira morte da carne; e ao terceiro dia, suscitado por sua própria força, ressurgiu do sepulcro.

A sorte do homem depois da morte

Professamos que segundo este exemplo da nossa Cabeça acontecerá a verdadeira ressurreição da carne de todos os mortos. Cremos que não ressuscitaremos numa carne etérea ou em outra qualquer (como alguns deliram), mas naquela na qual vivemos, subsistimos e nos movemos. Depois de ter realizado o exemplo desta santa ressurreição, o nosso Senhor e Salvador, mediante a ascensão, voltou ao trono do Pai, do qual na sua divindade jamais se tinha afastado. Lá ele se assenta à direita do Pai e é esperado no fim dos tempos como juiz de todos os vivos e mortos.
De lá virá, com todos os santos, para realizar o juízo e dar a cada um o ajuste pelas suas obras, segundo o que, no corpo, tiver feito de bem ou de mal [Cf. 2Cor 5,10]. Cremos que a santa Igreja católica, que ele conquistou com o preço de seu sangue, reinará com ele para sempre. Reunidos no seio dela, cremos e professamos um só batismo para a remissão de todos os pecados. Nesta fé, cremos verdadeiramente na ressurreição dos mortos e aguardamos o gozo do tempo futuro, Só por isto devemos rezar e isto devemos pedir: que o Filho, quando entregar, efetuado e terminado o juízo, o reino a Deus Pai [cf. 1Cor 15,24], nos faça participar do seu reino, para que mediante a fé que nos une a ele, com ele reinemos sem fim.

Esta é a exposição da fé que professamos e pela qual é aniquilada a doutrina de todos os hereges, pela qual são purificados os corações dos fiéis, pela qual, também, se chega gloriosamente a Deus.