17 de abril de 2024

A Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo Piedosas e edificantes meditações sobre os sofrimentos de Jesus

CAPÍTULO X

Da paciência que devemos praticar em união com Jesus Cristo, para alcançar a vida eterna

O mistério da paciência.
1. Falar de paciência e de sofrer é tratar de uma coisa que os amantes do mundo não praticam e nem sequer entendem. Só as almas que amam a Deus e compreendem e põem em prática. S. João da Cruz dizia a Jesus Cristo: “Senhor, eu nada mais vos preço que padecer e ser desprezado por vós”. E S. Teresa exclamava freqüentemente: “Ó meu Jesus, ou sofrer ou morrer”. S. Maria Madalena de Pazzi: “Senhor, sofrer e não sofrer”. Eis como falam os santos extasiados por Deus, e assim falam porque sabem muito bem que uma alma não pode dar uma prova mais segura de seu amor para com Deus do que padecendo voluntariamente para dar-lhe gosto. Esta foi a maior prova que Jesus Cristo nos deu do amor que nos tinha. Ele como Deus nos amou ao criar-nos, enriquecendo-nos com tantos bens, chamando-nos a gozar da mesma glória que ele goza, mas em nenhum outro ponto nos mostrou melhor quanto nos ama do que fazendo-se homem e abraçando uma vida penosa e uma morte cheia de dores e ignomínias por nosso amor. E nós, como demonstraremos nosso amor por Jesus Cristo? Talvez levando uma vida cheia de prazeres e delícias terrenas? Não pensemos que Deus se compraz em nosso sofrimento: ele não é um senhor de índole cruel que se satisfaz vendo gemer e sofrer suas criaturas; pelo contrário, é um Deus de bondade infinita, todo inclinado a ver-nos plenamente contentes e felizes, todo repleto de doçura, afabilidade e compaixão para com os que a ele recorrem. “Porque vós, Senhor, sois suave e brando e cheio de misericórdia para todos os que vos invocam” (Sl 85,5). A condição, porém, de nosso infeliz estado atual de pecadores e a gratidão que devemos ao amor de Jesus Cristo, exigem que nós, por seu amor, renunciemos aos deleites deste mundo e abracemos com ternura a cruz que ele nos destina a levar após si nesta vida, indo ele à frente com uma cruz mais pesada que a nossa e isso para nos levar a gozar, depois da nossa morte, de uma vida feliz que não terá fim. Deus, pois, não se apraz e ver-nos sofrer; sendo, porém, a justiça infinita, não pode deixar impunes as nossas culpas. Por isso, para que essas culpas sejam punidas e não percamos um dia a felicidade eterna, ele quer que, pela paciência, expiemos as culpas e assim mereçamos a felicidade eterna. Não poderia ser mais bela e suave essa determinação da divina Providência, que satisfaz ao mesmo tempo à justiça e nos faz salvos e felizes.
2. Devemos, por conseguinte, pôr toda a nossa esperança nos merecimentos de Jesus Cristo e dele esperar todos os auxílios para viver santamente e nos salvar e não podemos duvidar de seu desejo de nos ver santos: “Esta é a vontade de Deus: a vossa santificação” (1Ts 4,3). Isso é verdade, mas não devemos nos descuidar de satisfazer de nossa parte pelas injúrias que fizemos a Deus e de conseguir pelas boas obras a vida eterna. É o que o Apóstolo queria significar quando escrevia: “Completo em minha carne o que falta dos sofrimentos de Cristo” (Cl 1,3). Mas então a paixão de Cristo não foi completa e não bastou ela só para nos salvar? Ela foi pleníssima quanto ao seu valor e suficientíssima para salvar todos os homens: entretanto, para que os merecimentos da paixão sejam aplicados a nós, diz S. Tomás, devemos entrar com a nossa parte e sofrer com paciência as cruzes que Deus nos envia para nos assemelhar a Jesus Cristo, nossa cabeça, segundo o que escreve o mesmo Apóstolo aos Romanos: “Pois os que conheceu na sua presciência, também os predestinou para se fazerem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8,2 29). Nuca, porém, devemos esquecer, como nota o mesmo Doutor Angélico, que toda virtude que possuem as nossas boas obras, satisfações e penitências, lhes provêm da satisfação de Jesus Cristo. “A satisfação do homem tira sua eficácia da satisfação de Jesus Cristo”. E assim se responde aos protestantes, que dizem serem nossas penitências uma injúria à paixão de Cristo, como se ela não fosse suficiente para satisfazer por nossos culpas.

O reino dos céus sofre violência.
1. Dissemos que, para poder participar dos merecimentos de Jesus Cristo, é preciso que nos esforcemos para cumprir os preceitos de Deus e nos façamos violência para não ceder às tentações do inferno. É o que o Senhor nos dá a entender, quando diz: “O reino dos céus sofre violência e só os violentos o arrebatarão” (Mt 11,12). É preciso que nos violentemos quando se trata da continência, da renúncia aos maus desejos, da mortificação dos sentidos, a fim de não sermos vencidos pelos inimigos. E se nos sentimos réus pelas culpas cometidas, diz S. Ambrósio, devemos então forçar o Senhor pelas lágrimas a nos conceder o perdão (Serm. 5).E o santo ajunta para nosso consolo: Ó feliz violência, que não é punida pela ira de Deus, mas recompensada por sua misericórdia. E todo aquele que nesse sentido fizer mais violência a Jesus Cristo, lhe será mais caro. E conclui: Primeiro devemos reinar em nós mesmos, dominando as nossas paixões para podermos depois arrebatar o reino do Salvador. É, pois, necessário fazer-nos violência, sofrendo as adversidades e perseguições, vencendo as tentações e as paixões, que sem isso nunca serão abatidas. O Senhor nos declara que, para não perdermos nossa alma, devemos estar preparados a sofrer agonias de morte e a mesma morte: ao mesmo tempo, porém, nos diz que ele mesmo combaterá os inimigos daquele que estiver assim preparado: “Toma a defesa da justiça para salvares a tua alma, e peleja até à morte pela justiça, e Deus, pondo-se de tua parte, derrotará os teus inimigos” (Eclo 4,33). S. João viu ante o trono de Deus uma grande multidão de santos, vestidos de branco (pois no céu não entra nenhuma mácula), tendo cada um na sua mão uma palma, distintivo do martírio (Ap 7,9). Mas então todos os santos são mártires? Sim; todos os adultos que se salvam ou hão de ser mártires de sangue ou mártires de paciência, vencendo os assaltos do inferno e os apetites desordenados da carne. Os prazeres carnais enviam inumeráveis almas para o inferno, e por isso é preciso que nos resolvamos a desprezá-los com toda a energia. Persuadamo-nos de que ou a alma calcará aos pés o corpo ou o corpo subjugará a alma.
2. Repito: é preciso fazer esforço para se salvar a alma. Mas esse esforço é justamente o que eu não posso fazer, dirá alguém, se Deus não me auxiliar com sua graça. A este, responde S. Ambrósio: “Se olhares para ti, nada poderás; se confiares no Senhor, ele te dará forças”. Mas para se conseguir isso é necessário sofrer, não há outro remédio. Se quisermos entrar na glória dos bem-aventurados, diz a Escritura, é preciso sofrer primeiro com paciência muitas tribulações (At 14,21). S. João, contemplando a glória dos santos no céu, diz justamente: “Estes são os que vieram de grandes tribulações e levaram suas vestes e as branquearam no sangue do cordeiro” (Ap 7,14). É verdade que esses estava no céu por se haverem lavado no sangue do cordeiro, mas todos aí chegaram depois de terem sofrido grandes tribulações. Ficai certos, escrevia S. Paulo a seus discípulos, de que Deus não permitirá que sejais tentados acima de vossas forças (1Cor 10,13). Deus é fiel e ele prometeu dar-vos o seu apoio, suficiente para vencer todas as tentações, contanto que nós lho peçamos: “Pedi e dar-se-vos-á; buscai e achareis” (Mt 7,7). Logo, não pode faltar à sua promessa. É um erro crasso dos hereges afirmar que Deus manda coisas impossíveis. O concílio de Trento diz: “Deus não impõe coisas impossíveis, mas, quando manda, te admoesta que faças o que podes e peças o que não podes e te auxilia par que possas”. (Sess. 6 c. 11). Escreve S. Efrém que, se os homens não são tão cruéis com seus jumentos, impondo-lhes cargas superiores às suas forças, tanto menos Deus, que muito ama os homens, permitirá que eles sofram tentações às quais não possam resistir (Tract. de patientia).

Cruz de toda parte.
1. Escreve Tomás de Kempis: “A cruz te espera por toda parte e por isso é preciso que tenhas paciência em toda parte, se quiseres viver em paz. Se carregares a cruz com boa vontade, ela te levará a ti ao fim desejado”. Cada qual neste mundo procura a paz e desejaria encontrá-la sem sofrimento; isso, porém, é impossível no estado presente, pois as cruzes nos esperam em todo lugar em que nos acharmos. Como, pois, encontrar a paz no meio dessas cruzes? Pela paciência, abraçando a cruz que se nos apresenta. Diz S. Teresa que todo aquele que arrasta sua cruz com má vontade sente-lhe o peso, por menor que seja; quem, porém, a abraça com boa vontade, não a sente, ainda que seja muito pesada. E Tomás de Kempis ajunta que todo aquele que leva a cruz com resignação, a mesma cruz o conduzirá ao fim desejado, que neste mundo é agradar a Deus e no outro amá-lo eternamente. O mesmo autor continua: “Qual dos santos viveu sem a cruz? Toda a vida de Cristo foi cruz e martírio, e tu buscas o gozo?” Que santo foi admitido no céu sem a insígnia da cruz? Como poderão entrar os santos no céu sem a cruz, se a vida de Jesus Cristo, nossa cabeça e redentor, foi uma cruz contínua e um martírio? Jesus, inocente, santo, filho de Deus, quis padecer durante sua vida inteira e nós andamos atrás de prazeres e consolações? Para dar-nos um exemplo de paciência, quis eleger uma vida cheia de ignomínias e dores internas e externas e nós queremos nos salvar sem sofrer ou sofrendo sem paciência, o que é padecimento duplo, mas sem fruto e com o acréscimo do castigo. Como poderemos pensar em amar a Jesus Cristo, se não queremos padecer por amor dele, que tanto padeceu por nós? Como poderá gloriar-se de ser discípulo do crucificado quem recusa ou recebe de má vontade os frutos da cruz, que são os sofrimentos, os desprezos, a pobreza, as dores, as enfermidades e todas as coisas contrárias ao nosso amor próprio?
2. Não nos esqueçamos, antes sempre nos recordemos, das chagas do crucifixo, porque delas hauriremos a força de sofrer os males desta vida, não só com a paciência, mas até com alegria e satisfação, como o fizeram os santos: “Tirareis águas com alegria das fontes do Salvador” (Is 12,3). S. Boaventura comenta: “Das fontes do Salvador significa das chagas de Jesus Cristo” e exorta-nos a ter os olhos sempre fixos em Jesus moribundo, se quisermos viver sempre unidos com Deus. A devoção consiste, segundo S. Tomás, em estarmos prontos a executar tudo o que Deus exige de nós.

Cristo, nosso modelo.
1. Eis a bela instrução a que nos dá S. Paulo para vivermos sempre unidos a Deus e suportarmos com paciência as tribulações desta vida: “Recordai-vos daquele que dos pecadores suportou contra si uma tal contradição, para que não vos fatigueis desfalecendo em vossos ânimos” (Hb 12,3). Ele diz: Recordai-vos. Para sofrer com resignação e paz as penas da vida, não basta pensar de passagem, poucas vezes no ano, a paixão de Jesus Cristo; é preciso pensar a miúdo e mesmo todos os dias recordar-se das penas que Jesus suportou por nosso amor. E que penas foram essas? O Apóstolo diz: sofreu tal contradição. Tal foi a contradição que Jesus sofreu de seus inimigos que dele fizeram o homem mais vil, o homem das dores, segundo a predição do profeta: O último dos homens, o homem das dores, deixando-o morrer de pura dor e saciado de opróbrios em um patíbulo destinado aos mais celerados. E por que quis Jesus abraçar esse acervo de dores e vitupérios? Para que não vos fatigueis desfalecendo em vossos ânimos, isto é, para que nós, vendo quanto um Deus quis padecer para dar o exemplo da paciência, não esmoreçamos, mas tudo soframos para nos libertarmos dos pecados.
2. O Apóstolo continua a nos animar, dizendo: “Ainda não resististes até ao sangue, combatendo contra o pecado” (Hb 12,4). Reflete que Cristo derramou por vós todo o seu sangue na sua paixão, à força dos tormentos, e que os santos mártires, a exemplo de seu rei, sofreram com intrepidez as lâminas de fogo, as unhas de ferro que lhes despedaçavam até as vísceras. Nós, porém, ainda não derramamos nem sequer uma gota de sangue por Jesus Cristo, quando deveríamos estar prontos a sacrificar a própria vida para não ofendermos a Deus, como afirma S. Raimundo: Prefiro precipitar-me numa fogueira a cometer um pecado contra o meu Deus, ou, como dizia S. Anselmo, Arcebispo de Cantuária: Se eu tivesse de suportar todas as dores corporais do inferno ou cometer um pecado, escolheria antes o inferno que cometer o tal pecado.
Continua...

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