O Deus Criador
O Evangelho da 3a Missa é o grandioso e sublime início do Evangelho de São João.
Num vôo de águia celeste, João penetra a eternidade e ali contempla o Verbo de Deus, dizendo que por Ele tudo foi feito e que é Ele o Deus Criador de tudo o que existe.
Depois desce num relance, da luz suprema da glória, até às trevas deste mundo e inclinando-se sobre o presépio onde está deitada uma criancinha, o Evangelista exclama: O Verbo se fez carne e habitou entre nós.
Isto é: o Criador de tudo o que existe, está ali deitado, numa gruta, feito homem.
Contemplemos hoje este sublime assunto, em continuação da existência de Deus, que já provamos. Vejamos:
1. Que Deus é Criador
2. E o governador de tudo
I. Deus é o Criador
A palavra Criador, aplicada a Deus, significa que Deus, por um efeito da sua onipotência, fez existir o que não existia: o firmamento com seus astros luminosos, a terra com suas produções, numa palavra: o universo.
O artista faz uma estátua de um bloco de mármore, porém, nunca fará uma estátua de mármore sem mármore.
O homem apenas modifica, arranja; somente Deus pode criar.
O mundo não é eterno: isto salta aos olhos ao primeiro aspecto.
O que é eterno é necessariamente: imutável, necessário e independente.
Ora, nenhum destes atributos convém ao mundo.
Vemos que o universo está numa mudança continua, pela forma e pelas suas qualidades, enquanto a essência do ser eterno é de ser sempre o que é, sem se poder mudar, aumentar ou diminuir. O eterno é sempre o que é.
O universo não é necessário, pois um ser necessário não pode ser concebido como não existente.
Ora, concebemos perfeitamente a não existência do universo, enquanto não se pode conceber a não existência de um primeiro ser, princípio e causa de tudo.
Logo, o universo teve um princípio, foi criado.
Um ser necessário deve ser independente, isto é, deve possuir em si mesmo e por si mesmo tudo o que lhe é necessário, não recebendo nada de ninguém, nem precisando de ninguém e continuando a existir, mesmo se fora dele nada mais existisse.
Ora, o universo não tem esta independência absoluta. Podemos conceber a idéia do seu aniquilamento.
Logo, não é necessário: foi criado.
E o Criador de tudo o que existe fora dele, é Deus.
Se Deus é o Criador, Ele é também o Senhor de tudo o que existe, pois Deus devia, criando, propor-se um fim digno de si.
Este fim é a sua própria glória, como fim principal; e a felicidade dos seres racionais, como fim secundário.
II. O Deus Governador
Não somente Deus criou, mas governa tudo; e este governo chama-se: a Providência.
Que se diria de um artista que, tendo criado uma obra prima de pintura ou de escultura, ficasse completamente indiferente para com ela, recusando ocupar-se dela, não tomando as precauções para que não fosse destruída?
Que se diria de um roceiro, que comprasse um terreno fértil, e depois o abandonasse sem cultura?
Seriam ambos uns insensatos.
Deus é nosso Criador; nós somos a sua propriedade, o seu bem.
Sendo Deus sapientíssimo, não pode desinteressar-se de nós, que somos a sua obra.
Na terra, muitos homens desejam ocupar-se mais das coisas de que estão encarregados, porém não o podem por falta de tempo, de força, etc.
Para Deus, tal obstáculo não existe.
Ele vê tudo: logo, está ao par de tudo.
Ele é infinitamente bom: logo, quer prover as nossas necessidades.
Ele é todo poderoso: logo, pode valer-nos.
Todas as perfeições de Deus exigem que se ocupe de nós, que não nos abandone, depois de nos ter criado, mas preveja as nossas necessidades e proveja a tudo.
Prever e prover; é da união destas duas palavras que vem o belo nome de Providência – providere.
Deus é ainda infinitamente justo.
Ora, a justiça exige que o bem seja recompensado e que o mal seja castigado.: último motivo porque Deus não deixa a humanidade correr sem amparo, mas se faz o seu Governador, excitador e Moderador, antes de ser o seu Juiz Supremo.
III. Conclusão
A Providência de Deus é, pois, Deus conservando e governando o mundo por Ele criado, e conduzindo todos os seres ao fim que Ele, na sua sabedoria, predeterminou.
Não é propriamente um atributo divino, desde que implica a criação, mas é antes: o conjunto dos atributos de Deus: ciência, sabedoria, poder, bondade, justiça, aplicados à regência do universo.
Não objetem a existência do mal neste mundo. Sim, o mal existe e deve existir.
Há o mal moral, ou pecado. Deus não o quer, mas deve permiti-lo, porque criou o homem livre e o homem, a menos de deixar de ser livre, pode abusar desta liberdade e cometer o mal moral. Não pode ser imputado a Deus, mas unicamente a nós.
Há o mal físico. É também inevitável, porque Deus criou o homem mortal. Ora, todo ser mortal, tende à decomposição... gasta-se, estraga-se, debilita-se. Ora, tal debilitação, tal estrago causa, necessariamente, o sofrimento. É uma condição da nossa vida.
Há desigualdades sociais e deve haver. Pois, como poderia haver ricos, se não houvesse pobres? Como poderia haver grandes, se não houvesse pequenos? Como poderia haver montanhas se não houvesse vales?
Deus deve permitir tudo isso; mas sabe tirar o bem do mal. São meios de expiação e de merecimento para conquistarmos a felicidade eterna.
EXEMPLOS
1. No leme
Num navio, no meio de horrível tempestade, os passageiros lançavam brados de aflição: só um menino de 12 anos permanecia calmo. Como todos ficassem admirados:
- Nada tenho a recear, disse ele, é meu Pai que está no leme.
Porque temer? É o bom Deus que tem nas mãos o leme deste mundo.
Confiemos-Lhe também o leme da nossa alma, e Ele nos fará alcançar o céu!
2. Apólogo de Tolstoi
Ouvem-se bastantes vezes murmúrios contra a Providência de Deus. Provêm geralmente da falta de reflexão, de não compreendermos o que Deus nos outorgou e de vermos apenas o que nos falta.
Tolstoi tem este expressivo apólogo a respeito:
Um homem, descontente da sua sorte, queixava-se de Deus.
- Deus, disse ele, dá a riqueza aos outros e a mim não dá nada! Como posso iniciar a minha vida não tendo nada!
Um ancião ouviu estas queixas.
- És tu tão pobre como pensas? Respondeu.
Deus não te deu saúde e força?
- Não digo que não e ufano-me da minha saúde e força.
- Queres deixar cortar a tua mão direita por um conto de réis?
- Ah! Isso nunca! Nem por dez contos!
- E a mão esquerda?
- Nem esta!
- E o pés?
- Deus me livre! Por dinheiro nenhum!
- Olha, ajuntou o ancião, que fortuna Deus te deu e estás te queixando!
3. A lua
A torto e a direito, os homens reclamam contra a Providência de Deus.
É pena não terem estado presentes quando Deus criou as coisas! O verão é quente demais; o inverno tem um frio insuportável... é um capítulo que convém não começar, pois não acabaríamos.
Lembro-me de ter lido outrora num jornal esta palavra espirituosa de um bebê de 3 anos de idade. O bebê estava com a mamãe, no jardim da casa, ao cair da noite, para colher umas flores. A lua estava no quarto crescente! O bebê olhou espantado e disse à sua mãe: “Mamãe, olhe lá em cima! O bom Deus não teve tempo hoje de acabar a lua”!
Nós somos homens, mas falamos às vezes como bebês. Quantas luas encontramos que o bom Deus não teve o tempo de acabar!
(MARIA, P. Júlio. Comentário Apologético do Evangelho Dominical. O Lutador, 1940, p. 46 - 51)
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