Sermão para a Festa de São Cirilo de Jerusalém
09 de fevereiro de 2013 - Padre Daniel Pinheiro
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém. Ave-Maria…
“O homem, tendo sido honrado por Deus, não compreendeu e comparou-se aos asnos tolos e fez-se semelhante a eles.” (Salmo 48, texto da vulgata)
Nestes dias de carnaval, nestes dias em
que a bondade do Sagrado Coração de Jesus, em que a sua solicitude para
conosco, em que a seu amor infinito é desprezado, nós temos o dever de
buscar consolar o Sagrado Coração de Jesus, reparando pelas abominações
cometidas nesses dias e também pelos nossos próprios pecados. É nosso
dever fazer companhia ao Sagrado Coração de Jesus, vigiando com Ele,
sofrendo com Ele, rezando com Ele. Se para muitos – muitos inclusive que
dizem professar a religião católica – esses são dias de pecado, de atos
viciosos, de desprezo ao amor divino e de ofensa à bondade e à
majestade divinas. Se muitos zombam, nesses dias, de Deus e de sua
misericórdia, e se muitos amam as coisas desse mundo – em particular a
impureza – até o desprezo de Deus, para nós, ao contrário, esses dias
são dias de graça, dias de misericórdia. São dias que Deus nos concede
para satisfazer pelas nossas próprias faltas e pelos dos outros. São
dias em que, acompanhando o Sagrado Coração de Jesus, traído pelos
homens, coroado de espinhos, flagelado, crucificado e transpassado pela
lança, devemos buscar formar com Nosso Senhor Jesus Cristo, um só
coração. Um coração que deseje as mesmas coisas que Ele e que rejeite as
mesmas coisas que Ele.
Só podemos avaliar com clareza as
dimensões dos crimes que se cometem durante o carnaval, só podemos ter
uma pálida noção da maldade dos homens nesses dias, só podemos ter uma
pálida idéia da intensidade e da malícia das ofensas feitas a Deus
nesses dias, se compreendemos a intensidade e a bondade do Sagrado
Coração de Jesus, se compreendemos o fogo imenso da caridade que arde em
seu Coração. Os profetas do Antigo Testamento, com frequência agiam
assim, a fim de amolecer os corações endurecidos dos homens: por um
lado, eles lembravam aos homens todos os benefícios divinos feitos ao
povo de Israel e, por outro, ameaçavam com os devidos castigos, em
particular com o inferno. Trataremos hoje, nessa primeira Missa e nessa
primeira Bênção do Santíssimo, com intenção reparadora pelos pecados
cometidos durante o carnaval, de considerar a bondade divina, todo o bem
que Deus nos fez gratuitamente, por pura liberalidade, pois não temos
direito a tantos e tantos benefícios.
O primeiro benefício que Deus nos fez foi
evidentemente nos criar. Com frequência nos esquecemos disso. Não
tínhamos nenhum direito à existência, não tínhamos nenhum direito, se
posso dizer assim, a passar do nada para vida. E Deus não só nos dá a
vida como nos conserva no ser a cada instante de nossa existência. Nesse
exato momento, só estamos aqui porque Deus pensa em nós e quer que
existamos. E Deus não nos deu qualquer ser. Deus nos deu uma um corpo e
uma alma racional. Deus nos deu a inteligência e a vontade, para
conhecer a verdade e amá-la. Para conhecer a verdade, quer dizer, para
conhecê-lo, pois é ele a Verdade e para amar essa verdade. Só com isso,
nossa honra já é grande. Mas o amor divino não se contentou com isso. O
Amor divino nos elevou à vida sobrenatural, Deus quis que
participássemos de sua própria vida, Deus quis nos fazer semelhante a
Ele. E o que Deus recebeu em troca? A ofensa, a ingratidão, a
indiferença, a zombaria. O homem foi elevado a uma alta honra, mas não
compreendeu e preferiu agir segundo a sua própria vontade, seguindo suas
paixões desordenadas. O homem foi elevado à participação na vida
divina, mas recusou tal participação e amou as criaturas até o desprezo
de Deus.
Tendo cometido uma ofensa infinita, o
homem estava condenando a viver separado de Deus. O amor divino, porém,
desejando ardentemente nosso bem, resolveu vir ao mundo para nos salvar.
E toda a história da humanidade se resume a isso: à preparação para a
encarnação do Verbo, a vida do Verbo nessa Terra e as consequências da
vida do Verbo entre os homens, em particular as consequências de seu
sacrifício na Cruz. O amor de Deus para com os homens é tanto que Ele
não poupou o seu próprio Filho. Deus assim amou os homens, ao ponto e
lhes dar seu próprio Filho, para que possam se salvar. Vejamos a bondade
divina.
No Antigo Testamento, Deus lembra aos
israelitas todos os seus benefícios ao longo da história deles, a fim de
suscitar em seus corações, a gratidão e a caridade. Em terras do Egito,
ele fez grandes prodígios. O mar foi dividido para lhes dar passagem. De
dia, ele os conduziu por trás de uma nuvem, e à noite ao clarão de uma
flama. Rochedos foram fendidos por ele no deserto, com torrentes de água
os saciou. Da pedra fizera jorrar regatos, e manar água como
rios. Ele ordenou às nuvens do alto, e abriu as portas do céu. Fez
chover o maná para saciá-los, deu-lhes o trigo do céu. Pôde o homem comer o pão dos fortes, e lhes mandou víveres em abundância. Fez chover carnes, então, como poeira, numerosas aves como as areias do mar, as quais caíram em seus acampamentos, ao redor de suas tendas. Delas
comeram até se fartarem, e satisfazerem os seus desejos. Malgrado tudo
isso, persistiram em pecar, não se deixaram persuadir por seus
prodígios. Quantas vezes no deserto o provocaram, e na solidão o afligiram! Esqueceram
a obra de suas mãos, no dia em que os livrou do adversário, quando
operou seus prodígios no Egito e maravilhas nas planícies de Tânis;
quando converteu seus rios em sangue, a fim de impedi-los de beber de
suas águas; quando enviou moscas para os devorar e rãs que os
infestaram; quando entregou suas colheitas aos pulgões, e aos gafanhotos o fruto de seu trabalho; quando
arrasou suas vinhas com o granizo, e suas figueiras com a geada; quando
extinguiu seu gado com saraivadas, e seus rebanhos pelos raios; quando
descarregou o ardor de sua cólera, indignação, furor, tribulação, um
esquadrão de anjos da desgraça. Matou os primogênitos no Egito, enquanto
retirou seu povo como ovelhas, e o fez atravessar o deserto como
rebanho. Conduziu-o com firmeza sem nada ter que temer, enquanto aos
inimigos os submergiu no mar. Ele os levou para uma terra santa,
até os montes que sua destra conquistou. Ele expulsou nações diante
deles, distribuiu-lhes as terras como herança, fez habitar em suas
tendas as tribos de Israel.
E diante de tantos benefícios – só
citamos alguns – o que fizeram os judeus? Eles esqueceram as obras de
Deuss, e as maravilhas operadas ante seus olhos. Entretanto, continuaram
a pecar contra ele, e a se revoltar contra o Altíssimo no deserto.
Provocaram o Senhor em seus corações, reclamando iguarias de suas
preferências. Tentaram a Deus e provocaram o Altíssimo, e não observaram
os seus preceitos. Deus fez tudo por eles. Eles nada fizeram por Deus.
Ora, se Deus reclama e pune a ingratidão
dos judeus, diante desses benefícios, quanto maior será a dor do Sagrado
Coração diante de nossos pecados e diante de nossa ingratidão, pois os
benefícios que nos foram dados pelo Sagrado Coração são infinitamente
superiores aos dados ao povo eleito. O Verbo veio ao mundo, padeceu
desde o primeiro momento de sua encarnação e de seu nascimento. Fugiu
para o Egito, levou trinta anos de uma vida humilde e escondida nos mais
árduos trabalhos. Padeceu fome e sede, não tinha onde repousar a
cabeça. Foi flagelado, foi cuspido e zombado. Foi coroado de espinhos,
carregou sua caiu por terra três vezes. Foi crucificado, morto. Teve o
Coração transpassado cruelmente por uma lança. Foi sepultado. Foi
rejeitado por aqueles que ele veio salvar. Ensinou-nos toda a Verdade,
fundou a Igreja, institui os sacramentos. Desce todo dia sobre os
altares em Corpo, Alma, Sangue e Divindade para se entregar a nós.
Perdoa nossos pecados na confissão. Deu-nos Nossa Senhora por mãe. E fez
tudo isso, apesar de sermos pecadores. Que grandeza da caridade divina.
E nós? Nós fomos elevados a uma sublime honra, a ponto do homem-Deus
sofrer para nos salvar e nós não entendemos e preferimos nos assemelhar
aos asnos tolos, pois quando pecamos nos assemelhamos aos animais, que
não pensam e são incapazes de reconhecer a lei natural e a lei divina.
Preferimos não seguir as leis de Deus, para seguir nossas
irracionalidades, para nos tornar como os animais.
É exatamente o que ocorre de forma mais
intensa no carnaval. O homem não entende a honra à qual foi elevado e se
faz semelhante aos animais, pelos pecados, sobretudo pelos pecados de
impureza, que de fato rebaixam o homem ao estado de animal. O homem
prefere uma satisfação instantânea à vida eterna. O homem prefere perder
o céu e dirigir-se ao inferno a agir conforme as leis divinas, conforme
as leis naturais, conforme, portanto, àquilo que é o melhor para ele
conforme com sua natureza racional. O homem prefere um instante ou uma
vida passageira de prazeres e diversões desordenadas à vida eterna, à
felicidade perfeita, à contemplação da verdade. O homem prefere flagelar
novamente Nosso Senhor, coroá-lo de espinhos, flagel-alo, cuspir sobre o
crucificado. O homem prefere aumentar o peso da cruz de Cristo. Prefere
derrubá-lo e renovar a dor de todas as suas chagas, abertas para nos
salvar. Ele prefere crucificar seu divino Salvador, ele prefere abrir o
lado do Verbo encarnado e feri-lo diretamente em seu Sagrado Coração.
Esse Sagrado Coração continua sendo fonte
de misercórdia e de caridade. E ele o será até o final da vida de cada
homem. Mas um dia essa vida acaba e não sabemos quando, e se seguirá o
juízo. E se o homem não se arrependeu sinceramente de seus crimes, o
juízo será de condenação, pois ninguém zomba de Deus impunemente. Essas
satisfações instantâneas e esses prazeres desordenados e irracionais,
que assemelham o homem aos animais brutos se transformarão em sofrimento
eterno. E serão condenados pelo amor divino, ou melhor, pela recusa do
amor divino. Não poderão recorrer a esse amor, porque foram condenados
justamente porque o recusaram.
Tantos benefícios divinos e tantos
desprezos. Tanto amor e tanta indiferença. Tanta bondade e tanta
malícia. Aproveitemos esses dias para acompanhar o Sagrado Coração de
Jesus em seus sofrimentos, em sua agonia, em seu Coração ferido pela
lança afiada dos pecados do carnaval. Acompanhemos Nosso Senhor com
práticas de devoção, com mortificações, por menores e simples que sejam.
Só a vinda a essa Missa nesses dias já é, talvez, para muitos um ato de
generosidade. Devemos fazer um esforço. Alguns se dedicam tanto ao mal
que passam dias sem dormir para cometer iniquidades. Dediquemo-nos um
pouco ao bem, a Deus, ao Sagrado Coração de Jesus. Acompanhemos Nosso
Senhor Jesus Cristo para que nosso coração possa formar com o dEle um só
Coração, no sentido de amarmos Deus e o próximo, e a virtude e de
detestarmos, o pecado, o vício e tudo o que conduz ao pecado. Não
fiquemos indiferentes diante de tantos benefícios e de tanta caridade.
Não fiquemos indiferentes diante dos sofrimentos do Sagrado Coração.
Fomos elevados a uma honra sublime, a honra de filhos adotivos de Deus.
Devemos compreendê-la e agir segundo essa filiação. É essa a nossa
honra, a nossa glória, a nossa finalidade nesse mundo e a nossa alegria.
Devemos nos fazer semelhantes não aos animais brutos, mas a Deus, nosso
Pai.
Sagrado Coração de Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao voso.
Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Amém.
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