7 de agosto de 2011

O Amor das Almas, S. Afonso de Ligório. CAPÍTULO IV.

O grande desejo que teve Jesus de padecer e morrer por nosso amor.

1. Muito terna, amorosa e obsequiante foi aquela declaração que fez o nosso Redentor da sua vinda à terra, quando disse que veio para acender nas almas o fogo do divino amor, e que outro não era seu desejo senão ver acesa essa santa chama em todos os corações dos homens: Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur? (Luc. XII, 49). Segiu, pois, dizendo imediatamente que ele esperava ser batizado com o batismo do seu mesmo sangue, não já para lavar os seus pecados, enquanto ele era incapaz de culpa, mas para lavar os pecados nossos que ele viera a satisfazer com as suas penas: Passio Christi dicitur baptisma, quia in eius sanguine purificamur (S. Bon.) [1]. E então o nosso amante, Jesus, para fazer-se entender qual era a ardência desse seu desejo de morrer por nós, com a mais doce expressão de amor, ajuntou que ele sentia um afã imenso por aquele tempo, no qual demorava-se a execução da sua Paixão, tanto era o desejo de padecer por nosso amor. Eis as suas amorosas palavras: Baptismo autem habeo baptizari, et quomodo coarctor, usquedum perficiatur? (Luc. XII, 50).

2. Ah, Deus enamorado pelos homens, e que podíeis mais dizer e fazer para pôr-me em necessidade de amar-vos? E que bem voz trazia o meu amor, que para obtê-lo quisestes morrer e tanto desejastes a morte? Se um servo meu tivesse apenas desejado morrer por mim, já teria conquistado o meu amor; e eu poderia viver sem amar com todo o meu coração a vós, meu Rei e Deus, que morrestes por mim e com tanto desejo de morrer para conquistar-vos o meu amor?

3. Sciens Iesus quia venit hora eius, ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, cum dilexisset suos... in finem dilexit eos (Io. XIII, 1). Diz S. João que Jesus chamou sua hora a hora da Paixão, porque, como escreveu um devoto expositor, esse foi o tempo do nosso Redentor mais suspirado na sua vida; enquanto então, padecendo e morrendo pelo homem, ele queria fazer-lhe compreender o amor imenso que lhe tinha. Amantis illa hora est, qua pro amico patitur (Barrad. ap. Spondan.) [2]: é cara a quem ama a hora em que padece pelo amado; pois padecer pelo amado é a obra mais apta para manifestar o amor do amante e para cativar para si o amor do amado. - Ah, meu caro Jesus, então para demonstrar-me vós o vosso grande amor não quisestes que outrem senão vós cumprísseis a obra da minha Redenção. Tanto então vos importava o meu amor que tanto quisestes sofrer para conquistar-vo-lo? E que mais poderíeis vós ter feito, se devêsseis ganhar-vos o amor do vosso divino Pai? Que mais poderia padecer um servo para ganhar o afeto do seu senhor, do que o que vós sofrestes para ser amado por mim, escravo vil e ingrato?

4. Mas eis o nosso amoroso Jesus já perto de ser sacrificado sobre o altar da cruz pela nossa salvação, naquela feliz noite precedente à sua Paixão. Ouçamos o que diz aos seus discípulos na última ceia que faz com eles: Desiderio, diz, desideravi hoc pascha manducare vobiscum (Luc. XXII, 15). S. Lourenço Justiniano, considerando essas palavras, afirma que elas foram todas palavras de amor: Desiderio desideravi. Caritatis est vox haec [3]. Como se tivesse dito o nosso amante Redentor: Homens, sabei que esta noite, na qual se dará o princípio à minha Paixão, foi o tempo por mim mais suspirado em toda a minha vida, porque agora, com as minhas penas e com a minha dura morte, far-vos-ei conhecer o quanto vos amo, e com isso vos obrigarei a amar-me do modo mais porte que me é possível. Diz um autor que na Paixão de Jesus a onipotência divina se uniu com o amor: o amor procurou amar o homem até onde pudesse chegar a onipotência, e a onipotência procurou comprazer o amor até onde pudesse chegar o seu desejo.

Ó sumo Deus, vós vos destes todo a mim, e como posso pois eu não amar-vos com todo o meu ser? Eu creio, sim, o creio, que morrestes por mim: e como vos amo tão pouco que tão amiúde me esqueço de vós e de quanto padecestes por mim? E por que, Senhor, eu ainda, pensando na vossa Paixão, não fico todo aceso pelo vosso amor e não me torno todo vosso como tantas almas santas que, considerando as vossas penas, se tornaram presas felizes do vosso amor e se deram todas a vós?

5. Dizia a esposa dos Cânticos que sempre que o seu esposo a introduzia na cela sagrada da sua Paixão, via-se tão acesa por todos os lados do amor divino, que, gemendo toda de amor, era constrangida a procurar alívios para o seu coração ferido: Introduxit me rex in cellam vinariam, ordinavit in me caritatem. Fulcite me floribus, sipate me malis, quia amore langueo (Cant. II, 4, 5) [4]. E como é possível que uma alma, começando a considerar a Paixão de Jesus Cristo, por aquelas dores e aquelas agonias, que tanto afligiram o corpo e a alma do seu amante Senhor, não fique ferida como por tantas setas de amor, e docemente forçada a amar quem tanto a amou?

Ó Cordeiro imaculado, assim lacerado, sangrento e deformado como vos vejo sobre essa cruz, quanto me pareceis belo e amável! Sim, porque todas essas chagas que vejo em vós são todas para mim sinais e provas do grande amor que me tendes. Ah! que se todos os homens frequentemente vos contemplassem naquele estado no qual fostes um dia feito espetáculo a toda Jerusalém, quem poderia não ficar tomado do vosso amor? Meu amado Senhor, aceitai-me a amar-vos, enquanto eu vos dou todos os meus sentidos e toda a minha vontade. E como posso eu negar-vos algo, se vós me não negastes o sangue, a vida e a todo vós mesmo?

6. Foi tanto o desejo de Jesus de padecer por nós, que na noite precedente à sua morte não somente ele de boa vontade foi ao horto, onde já sabia que deviam vir prendê-lo os Judeus, mas, sabendo que Judas, o traidor, com a companhia dos soldados, já se aproximava, disse aos discípulos: Surgite, eamus: ecce qui me tradet prope est (Marc. XIV, 42). Quis ele mesmo ir ao seu encontro, como se viessem para conduzi-lo não já ao suplício da morte, mas à coroa de um grande reino. - Ó meu doce Salvador, vós, portanto, ides ao encontro da morte com tanto desejo de morrer pela ânsia que tendes de ser amado por mim? E eu não terei desejo de morrer por vós, meu Deus, para demonstrar-vos o amor que vos tenho? Sim, meu Jesus morto por mim, eu também desejo morrer por vós. Eis o sangue, a vida, toda vo-la ofereço. Eis-me pronto para morrer por vós como e quando vos agradar. Agrade-vos esse mísero sacrifício que vos rende um mísero pecador, o qual antes vos ofendeu, mas agora vos ama mais do que a si mesmo.

7. S. Lourenço Justiniano contempla que aquele Sitio que proferiu Jesus morrendo na cruz, e diz que essa sede não foi sede que vinha da falta de humores, mas sede que nascia da ardência do amor que Jesus tinha por nós: Sitis haec de ardore nascitur caritatis [5]. Pois com tal palavra quis o nosso Redentor declarar-nos, mais que a sede do corpo, o desejo que tinha de padecer por nós, demonstrando-nos o seu amor e também o desejo que tinha de ser amado por nós, com tantas penas que sofria: Sitis haec nascitur de ardore caritatis. E S. Tomás: Per hoc Sitio ostenditur ardens desiderium de salute generis humani (In c. XIX Io., lect. 3) [6].

Ah, Deus enamorado, é possível que um excesso de tanta bondade fique sem correspondência? Sói dizer-se que amor com amor se paga, mas o vosso amor com que amor se poder pagar? Seria necessário que um outro Deus morresse por vós para compensar o amor que nos tivestes morrendo por nós. E pois, meu Senhor, como pudestes dizer que as vossas delícias eram de estar com os homens, se por eles não recebestes mais do que injúrias e maus tratos? O amor, então, vos fez suportar em delícias as dores e os vitupérios sofridos por nós.

8. Ó Redentor amabilíssimo, eu não quero mais resistir às vossas finezas: eu vos dou todo o meu amor. Vós, entre todas as coisas, sois e haveis de ser sempre o único amado da minha alma. Vós vos fizestes homem para ter uma vida para dar por mim: eu quero mil vidas para sacrificar todas por vós. Amo-vos, bondade infinita, e quero amar-vos com todas as minhas forças. Quero fazer o quanto posso para dar-vos gosto. Vós, inocente, padecestes tanto por mim: eu, pecador, que mereci o inferno, quero padecer por vós o quanto quiserdes. Ajudai-, meu Jesus, pelos méritos vossos, este meu desejo que vós mesmo me dais. Ó Deus infinito, em vós creio, em vós espero, amo-vos.

Maria, minha mãe, intercedei por mim. Amém.

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NOTAS:
[1]: “Passio Christi dicitur baptismus, quia in eius sanguine purificamur quasi in lavacro baptismali.” S. BONAVENTURA, Commentarius in Evang. S. Lucae, cap. 12, n. 71 (in vers. 50). Opera, VII, ad Claras Aquas, 1895, p. 331, col. 1.

[2]: “Hora eius erat hora mortis, quia nos amabat pro quibus moriebatur. Amantis enim hora illa est, qua pro amico patitur.” Sebastianus BARRADAS, S. I., Commentatiorum in concordiam et historiam IV Evangelistarum tom. 4, lib. 2, cap. 5.

[3]: “Vulnerati cordis et flagrantissimae caritatis est vox haec. Habet in se unde pascat ruminantes se.” S. LAURENTIUS IUSTINIANUS, De triumphali Christi agone, cap. 2. Opera, Venetiis, 1721, p. 229.

[4]: Introduxit me rex in cellaria sua. Cant. I, 3. - Introduxit me in cellam vinariam, ordinavit in me caritatem. Fulcite me floribus, stipate me malis: quia amore langueo. Cant. II, 4, 5.

[5]: “Sitis haec de ardore dilectionis, de amoris fonte, de latitudine nascitur caritatis.” S. LAURENTIUS IUSTINIANUS, De triumphali Christi agone, cap. 19. Opera, Venetiis, 1721, pag. 273, col. 2.

[6]: “Per hoc vero quod dicit Sitio... ostenditur eius ardens desiderium de salute generis humani. ” S. THOMAS, Commentaria in Evang. secundum Ioannem, cap. 19, lectio 5, n. 1.

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