6 de agosto de 2011

O Amor das Almas, S. Afonso de Ligório. CAPÍTULO III.

Jesus por nosso amor quis desde o princípio da sua vida sofrer as penas da sua Paixão.

1. Veio o Verbo divino ao mundo tomar carne humana para fazer-se amar pelo homem, porquanto veio com tanta fome de sofrer por nosso amor que não quis perder nem um instante em começar a atormentar-se, ao menos com a apreensão. Apenas foi concebido no seio de Maria, ele imaginou todos os padecimentos da sua Paixão, e para obter-nos o perdão e a divina graça, ofereceu-se ao Eterno Pai para satisfazer por nós com as suas penas todos os castigos devidos pelos nossos pecados; e, desde então, começou a padecer tudo o que depois sofreu na sua amaríssima morte. - Ah, meu amorosíssimo Redentor, e eu, até agora, que fiz, que tenha padecido por vós? Se eu, por mil anos, tolerasse por vós todos os tormentos que sofreram todos os mártires, ainda seria pouco, em vista só daquele primeiro momento no qual vós vos oferecestes e começastes a padecer por mim.

2. Padeceram tão bem os mártires grandes dores e ignomínias, mas as padeceram só no tempo do seu martírio. Jesus padeceu sempre desde o primeiro instante da sua vida todas as penas da sua Paixão, pois que desde o primeiro momento pôs diante dos olhos toda a horrível cena dos tormentos e das injúrias que devia receber dos homens. Por isso ele disse pela boca do profeta: Dolor meus in conspectu meo semper (Ps. XXXVII, 18). Ah, meu Jesus, vós por meu amor ficastes tão ávido de penas que quisestes sofrê-las antes do tempo, e eu sou assim tão ávido de prazeres desta terra? Quantos desgostos vos dei para contentar o meu corpo? Senhor, pelos méritos dos vossos afãs, tirai-me o afeto aos diletos terrenos. Eu por vosso amor proponho abster-me daquela satisfação (nomear qual).

3. Deus, por sua piedade, costuma não nos fazer saber antes do tempo destinado a sofrê-las, as penas que nos esperam. Se a um réu condenado à forca fosse-lhe revelado desde o uso da razão o suplício que lhe tocava, seria ele, em algum momento, capaz de alegria? Se a Saul, desde o princípio do seu reino, fosse-lhe revelada a espada que lhe devia transpassar; e se Judas tivesse previsto o laço que devia sufocá-lo, quão amargas teriam sido suas vidas? O nosso amável Redentor, desde o primeiro instante da sua vida, fez-se sempre presentes os flagelos, os espinhos, a cruz, os ultrajes da sua Paixão, a morte desolada que lhe esperava. Quando olhava as vítimas que se sacrificavam no templo, bem sabia que todas eram figuras do sacrifício que ele, Cordeiro imaculado, devia consumar sobre o altar da cruz. Quando via a cidade de Jerusalém, bem sabia que aí devia deixar a vida num mar de dores e vitupérios. Quando olhava sua querida Mãe, já se imaginava a vê-la agonizante pela dor ao pé da cruz. Quando via a cidade de Jerusalém, perto de si, moribundo. - Assim é, ó meu Jesus, que a vista horrível de tantos males em toda a vossa vida vos atormentou e afligiu sempre antes do momento da vossa morte. E vós tudo aceitastes e sofrestes por meu amor.

4. A vista somente, ó meu Senhor apaixonado, de todos os pecados do mundo, e especialmente dos meus, com os quais já prevíeis que eu vos ofenderia, fez com que a vossa vida fosse mais aflita e penosa do que todas as vidas que já existiram e que existirão. Mas ó Deus, e em que bárbara lei está escrito que um Deus ame tanto uma criatura e que depois disso a criatura viva sem amar o seu Deus, aliás, que o ofende e desgoste? Senhor, fazei-me conhecer a grandeza do vosso amor, para que não seja mais ingrato. Ó, se vos amasse, meu Jesus, se vos amasse deveras, quão doce ser-me-ia padecer por vós!

5. À Irmã Madalena Orsini, que estava há longo tempo com uma tribulação, apareceu um dia Jesus na cruz e a animou a sofrê-la com paz. A serva de Deus respondeu: “Mas, Senhor, vós só por três horas estivestes na cruz, mas para mim são vários anos que sofro esta pena.” Então disse-lhe, reprovando-a, Jesus Cristo: “Ah, ignorante, que dizes? Eu desde o primeiro momento que estive no seio da minha mãe, sofri no Coração aquilo que depois na morte tolerei sobre a cruz” [1]. - E ei, meu caro Redentor, como, à vista de tantos afãs que sofrestes por meu amor em toda a vossa vida, posso lamentar-me daquelas cruzes que vós me enviais para padecer pelo meu bem? Agradeço-vos por me haverdes redimido com tanto amor e com tanta dor. Vós, para me animar a sofrer com paciência as penas desta vida, quisestes tomar para vós todos os nossos males. Ah, Senhor, faze-me recordar-me frequentemente das vossas dores, a fim de que eu aceite e deseje sempre padecer pelo vosso amor.

6. Magna velut mare contritio tua (Thren. II, 13), Como as águas do mar são todas salgadas e amargas, assim a vida de Jesus foi toda cheia de amarguras e priva de todo alívio, como ele mesmo disse a S. Margarida de Cortona [2]. Demais, como no mar se unem todas as águas da terra, assim em Jesus Cristo se uniram todas as dores dos homens; por isso pela boca do Salmista ele disse: Salvum me fac, Deus, quoniam intravenerunt aquae usque ad animam meam. Veni in altitudinem maris, et tempestas demersit me (Ps. LXVIII, 2, 3): Salvai-me, ó meu Deus, porque os afãs entraram no íntimo da minha alma; e eu fui submerso por uma tempestade de ignomínias e de dores externas e internas. - Ah, meu caro Jesus, meu amor, minha vida, meu tudo, se eu olho de fora o vosso sagrado corpo, não vejo nada além de chagas. Se entro, então, no vosso Coração desolado, eu não encontro outra coisa além de amarguras e fãs que voz fazem padecer agonias de morte. Ah, meu Senhor, e quem mais além de vós, porque sois uma bondade infinita, podia chegar a padecer tanto e morrer por uma vossa criatura? Mas porque vós sois Deus, amais como Deus, com amor que não pode igualar-se a qualquer outro amor.

7. Diz S. Bernardo: Ut servum redimeret nec Pater Filio, nec Filius sibi ipsi pepercit(Ser. fer. 4) [3]. Ó caridade infinita de Deus! De uma parte o Eterno Pai impôs a Jesus Cristo o satisfazer por todos os pecados dos homens: Posuit in eo iniquitatem omnium nostrum (Is. LIII, 6). De outra, Jesus, para salvar os homens, e do modo mais amoroso que pudesse, quis pagar sobre si, com todo o rigor, à divina justiça as penas a eles devidas; donde, como afirma S. Tomás, ele se sobrecarregou com todas as dores e todos os ultrajes em sumo grau: Assumpsit dolorem in summo, vituperationem in summo [4]. Por isso Isaías chamo-o o homem das dores e o mais desprezado entre todos os homens: Despectum et novissimum virorum, virum dolorum (Ibid., 3). E com razão, enquanto Jesus foi atormentado em todos os membros e sentidos do corpo, e mais amargamente foi afligido em todas as potências da alma, de modo que as penas internas superaram imensamente as dores externas. Ei-lo, portanto, lacerado, exangue, tratado como enganador, mago, louco, abandonado pelos próprios amigos e perseguido finalmente por todos, até acabar a fina sobre um infame patíbulo.

8. Scitis quid fecerim vobis? (Io. XIII, 12). Senhor, já sei quanto fizestes e padecestes por meu amor; mas vós sabeis que eu até agora não fiz nada por vós. Meu Jesus, ajudai-me a sofrer algo por vosso amor antes que me venha a morte. Eu me envergonho de comparecer diante de vós; mas não quero mais ser aquele ingrato que fui tantos anos convosco. Vós vos privastes de todo prazer por mim: eu renuncio por vosso amor todos os diletos dos sentidos. Vós sofrestes tantas dores por mim: eu por vós quero sofrer todas as penas da minha vida e da minha morte, como vos agradará. Vós fostes abandonado: eu me contento de que me abandonem todos, desde que não me abandoneis vós, meu único e sumo bem. Vós fostes perseguido: eu aceito qualquer perseguição. Vós, finalmente, morrestes por mim: eu quero morrer por vós. Ah, meu Jesus, meu tesouro, meu amor, meu tudo, eu vos amo: dai-me mais amor. Amém.

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NOTAS:

[1]: “Enquanto era ainda secular, lamentava-se frequentemente com o seu Senhor que uma tal tribulação, por durar tempo muito longo, tornasse-se-lhe insuportável. Uma noite, em sonho, pareceu-lhe ver diante de si Cristo pregado na cruz, o qual a exortava com seu exemplo à paciência, e ela, com movimento natural, respondeu: ‘Senhor, a vossa cruz durou só três horas, mas esta minha dura muitos anos’. Aqui o Redentor, com voz severa, replicou dizendo: ‘Ah ingrata, como ousas falar dessa maneira, sabendo que desde o princípio por toda a vida vivi em fadigas e sofrimentos, terminando finalmente a minha vida numa cruz?’ Com tal resposta, ficando confusa, procurou dali em diante tolerar com paciência aquele trabalho.” P. BONAVENTURA BORSELLI, O. P., Vita della Ven. Madre Suor M. Maddalena Orsini, domenicana, Roma, Tinassij, 1668, cap. XV, pag. 66.

[2]: “Audivit (Margarita) Christum dicentem sibi: “... Tu clamare non cesses meam per ordinem Passionem, et quod semper in hac vita, pro amore humani generis, vixi in laboribus et in poenis.” Fr. IUNCTA BEVEGNAS, Vita, cap. 5, § 13. - “Audivit Christum dicentem sibi: “Tu vis esse filia lactis; sed tu eris filia fellis in poenis quas patieris. Sed per eas efficieris filia mea electa et soror, et similabunt te mihi.” Ibid., § 18. - “In festo protomartyris Stephani, post fletum indicibilem et multas cum Christo allocutiones factas, intulit natus ex Virgine Filius Dei, dicens: “... In huius saeculi vita misera, gloriam meam desideras possidere. Sed nolo quod habeas laetitiam in hoc mundo, ad instar mei, sequendo me in degustatione poenarum mearum. Quare, para te ad tribulationes, quia in via non est patria obtinenda.” Ibid. § 33. - “Quodam die post festum Ascensionis Christi, dixit oranti Dominus: “... Para te ad infirmitates et tribulationes, et recordare quod pro te aspera passus sum; et sicut in hac vita quietem non habui, ita et tu habitura non es.” Ibid., § 34.

[3]: S. BERNARDUS, In feria IV Hebdomadae Sanctae, Sermo de Passione Domini, n. 4. ML 183-264.

[4]: “Dolor in Christo fuit maximus inter dolores praesentis vitae.” S. THOMAS, Sum. Theol., III, qu. 46. art. 6, c. - “(Ex Augustino) Nihil enim erat, inter omnia genera mortis, illo genere (nempe morte crucis) exsecrabilius et formidabilius.” Ibid., art 4, c. - “Christus fuit novissimus: primo propter doloris acerbitatem.... secundo propter mortis turpitudinem.” In Isaiam, cap. 53, 3. - “ Humiliavit semetipsum factus obediens usque ad mortem, mortem autem crucis: in quo ostenditur et cruciatus acerbitas.... et mortis vilitas et ignominia.” In Epist. ad Hebr. , cap. 12, lectio 1, v. 2. - “Convenit etiam (mors crucis) quantum ad exemplum perfectae virtutis. Homines enim quandoque non minus refugiunt vituperabile genus mortis quam mortis acerbitatem: unde ad perfectionem virtutis pertinere videtur, ut propter bonum virtutis etiam aliquis vituperabilem mortem non refugiat pati... (Mors autem crucis) mors turpissima videbatur.” Compendium theologiae, ad Reginaldum. Opusculum 2 (al. 3), cap. 228: Operum tom. 17, Romae, 1570.

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