9 de maio de 2021

Histórias das Cruzadas - Livro Primeiro - Origem e Progresso do Espírito das Cruzadas 36

Não nos devemos esquecer no entretanto, de que o entusiasmo religioso era o primeiro e principal móvel, que punha todo o mundo cristão em movimento.
Nos tempos ordinários os homens seguem suas inclinações naturais e não obedecem senão a elas; mas, no tempo de que falamos, a devoção da peregrinação, que se tornava mais viva, comunicando-se e que se podia chamar, segundo a expressão de S. Paulo, a loucura da cruz, era uma paixão ardente e que falava mais alto que todas as outras.
Só se via a religião na guerra contra os sarracenos e a religião que assim se entendia, não permitia aos seus entusiastas defensores ver outra felicidade, outra glória que a que ela apresentava à sua imaginação
exaltada. O amor da pátria, os liames da família, os mais ternos afetos do coração, foram sacrificados às ideias e às opiniões que dominavam então toda a Europa. A moderação era fraqueza, a indiferença, uma traição, a oposição, um atentado sacrílego. O poder das leis era tido em pouca conta entre os que julgavam combater pela causa de Deus. Os súditos mal reconheciam a autoridade dos Príncipes e dos senhores em tudo o que se referia à guerra santa; o senhor e o escravo não tinham outro título que o de cristão, outro dever a cumprir, que defender a religião com as armas na mão.

A imaginação do povo via todos os dias tantos prodígios, que toda a natureza parecia ter sido chamada
a proclamar a vontade do céu. "Torno a Deus por testemunha, diz o abade Guiberto, que morando naquela época em Beauvais, vi certa vez, em pleno meio-dia algumas nuvens dispostas umas sobre as outras, um pouco obliquamente, de modo que se poderia ver perfeitamente a forma de uma cegonha, ou de uma garça; quando, de repente, milhares de vozes, elevando-se de todos os lados, anunciaram que acabava de aparecer no céu a figura de uma cruz."
O mesmo cronista, refere que uma mulherzinha, empreendera viagem a Jerusalém; um ganso, instruído
não sei em que nova escola, diz Guiberto, e fazendo muito mais do que comporia a sua natureza de irracional, caminhava balançando-se, atrás dessa senhora. Logo a notícia, voando com rapidez, espalhou-se pelos castelos e nas aldeias, de que os gansos eram enviados para a conquista de Jerusalém
julgava-se uma vergonha, não ter recebido uma revelação particular para a guerra santa de como Deus tinha chamado cada um dos fiéis à libertação de seu túmulo. Para fazer crer numa advertência milagrosa, um, tirando um pouco de sangue, riscava sobre o corpo, traços em forma de cruz e os mostrava a todos; outro, mostrava a mancha que tinha na vista e que lhe escurecia a visão, como um oráculo divino que o advertia a empreender a santa viagem; um terceiro, empregava o suco das plantas novas ou qualquer outra espécie de preparado colorido, para traçar sobre o rosto o sinal da redenção; como se tinha o costume de pintar, abaixo dos olhos, como um adorno, alguns pobres peregrinos, pintavam-se de verde ou de vermelho, a fim de se poderem apresentar, como testemunhos vivos dos milagres do céu. Os que recorriam a essas piedosas fraudes, esperavam que a caridade dos fiéis os ajudasse a seguir a cruzada. Os monges desertavam dos claustros nos quais haviam feito juramento de morrer e julgavam-se impelidos por uma inspiração divina; os eremitas deixavam as solidões e vinham misturar-se na multidão dos cruzados. O que mais dificilmente se poderia crer, é que os ladrões, os assaltantes, deixavam seus covis escondidos, vinham confessar suas faltas, e prometiam, recebendo a cruz, ir expiá-las na Palestina.

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