21 de julho de 2021

TESOURO DE PACIÊNCIA

DO SENHOR COM A CRUZ AOS OMBROS

 MEDITAÇÃO VII

Conserva-se pia tradi­ção na Igreja, que o Senhor neste caminho encontrara sua Mãe Santíssima, a qual, cheia  de aflição, viera a presenciar o estado lamentável do seu amado Filho. Considera, alma minha, como seria forte, cruel e penetrante, a dor que traspassou neste Passo o coração da Senhora: vê o seu único Filho, a delicia do seu amante coração: vê o seu Deus coberto de suor, lavado em sangue, com a cabeça traspassada de espinhos: vê a divina face pisada e ferida das bofetadas, coberta de salivas: vê-o aflito e angustiado, curvado de baixo de uma pesada cruz: vê que os algozes o puxam com cordas e o arrastam: vê que vai cercado de justiças entre dois ladrões, infamado com público pregão e sentenciado a morrer, morte afrontosa. Quem jamais pode sentir dor igual a esta dor! E é possível que tanto custasse à  Mãe de Deus o teu pecado! Mas repara que a ti não te custa tanto, porque é muito menor o tormento e aflição que padeces, por mui grande que tu a consideres. Ora, quando te vires aflito, põe-te com a consideração defronte da Virgem Maria neste Passo, e acomoda-te, pois muito mais padeceu pelos teus delitos a inocentíssima Senhora, do que tu sendo tão culpado.

JACULATORIA - 

 Ó Virgem aflitíssima, eu sou o que pequei, e Vós também pagais, pelo meu delito! Perdoa-me, Senhora, perdoa-me.


19 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

 X. A EREMITA

Na manhã de 14 de Julho, poucos meses depois de Rosa ter recebido o anel de ouro, os sinos de Lima plangiam sua música fúnebre pela cidade. O santo missionário franciscano, padre Francisco Solano, morrera.
Maria de Oliva murmurou uma breve oração, ao ouvir os fúnebres sons.
- Era melhor irmos logo ao convento dos franciscanos, Mariana. Estou certa de que haverá milagres por lá, hoje. Pegue todos os nossos rosários e medalhas. Poderemos tocar com eles o corpo do padre Francisco e guardá-los como relíquias.
A índia concordou com um aceno. Tanto a ama como a serva avaliavam a perda. O padre Francisco era na verdade um santo. Anos atrás, em 1589, quando ele viera a primeira vez ao Novo Mundo, naufragara com seus companheiros nas costas da Colômbia. Durante semanas o pequeno grupo de náufragos vagueara pelas florestas litorâneas sem encontrar viva alma. Em breve alguns dos homens sucumbiram ao comer plantas venenosas, e o desespero apoderou-se do resto. Somente o padre Francisco conservou-se calmo. Insistiu com seus companheiros que permanecessem perto da costa. Outro barco, assegurou-lhes, chegaria em breve do Panamá e os levaria a salvo ao Peru.
- Eu me lembro quando ele finalmente chegou a Lima, - disse Mariana vagarosamente, - Ficamos tão desapontadas quando ele insistiu em deixar-nos quase imediatamente... Ah, senhora, ele já estava debilitado de tanto labutar, e no entanto não vacilou em andar mil e quatrocentas milhas, através de montanhas e selvas, para ir em missão à Argentina.
- E fez essa caminhada duas vezes, Mariana. Não esqueça isto.
- Sim, senhora; onze anos mais tarde, quando seu duro labor entre os índios terminara. Que boa alma ele era! Bem, vou buscar os rosários e medalhas.
Lá fora, no jardim, entre suas amadas arvores e flores, Rosa pensava também no padre Francisco. Jamais esqueceria aquele dia de Dezembro de 1604 em que o frade, revestido do burel pardo, pregara o famoso sermão na praça do mercado. Ela tinha então dezoito anos. Agora, seis anos depois, sua memória estava ainda vívida.
"Ele disse ao povo que fizesse penitência. - lembrava-se. - Repetiu que Deus destruiria Lima se não cessassem de ofendê-lo. Havia, aquela noite, bastantes padres para ouvir quem quisesse confessar-se. Inimigos se reconciliavam, bens roubados eram restituídos aos donos, três mil casamentos se celebraram. Ah, querido padre Francisco, dá-me um pouco daquele zelo pelas almas, que tão sinceramente possuías!"
Depois de dizer sua breve oração, Rosa encaminhou-se pela vereda que conduzia ao fundo do jardim. Aí esperava-a uma figura familiar.
- Dona Maria! Oh! não esperava vê-la esta manhã!
Dona Maria de Usátegui, esposa de D. Gonçalo, abraçou Rosa afetuosamente.
- Minha querida, eu vim de mansinho pelo portão do lado. Sua mãe ainda não sabe que eu estou aqui. Quero dizer uma palavrinha a você somente.
- As crianças não estão outra vez doentes?...
- Não, não. Estão muito bem. Rosa, meu bem, você gostaria de morar com D. Gonçalo e eu? Ser como uma filha nossa...
A moça olhou com estranheza a visita.
- Não compreendo...
- Claro que você não compreende. Mas meu marido e eu temos certeza de que você seria mais feliz conosco. Pois que sua mãe não pode entender a espécie de vida que você deseja, e que ela não se sentiu feliz em ver você entrar na Ordem terceira de S. Domingos...
A jovem riu-se. Ninguém perceberia que as palavras de D. Maria feriram-na como uma faca. Era bem verdade! Maria de Oliva não perdia uma oportunidade para demonstrar sua reprovação a terciárias dominicanas.
- Mamãe ainda não compreende. Acha difícil crer que eu continue a ser a mesma, debaixo deste hábito branco.
- Exatamente. Eu e meu marido já lhe ouvimos algumas criticas. Querida amiguinha, nós temos uma casa enorme, e muitos bens deste mundo. Por que não vem morar conosco? As crianças ficariam tão contentes!...
O resto daquele dia, e nos dias seguintes, Rosa ponderou o amável oferecimento de Dona Maria de Usátegui. Por fim decidiu recusar. Embora Maria de Oliva frequentemente achasse defeitos na vida de terciária dominicana, com tantas orações e sacrifícios, à qual sua filha se dedicara, Rosa sabia que suas aflições podiam transformar-se em grandes méritos.
"Há muito tempo - pensava - ofereci-me para rezar e sofrer pelos outros. Amado Senhor, não me deixeis fugir de qualquer pena agora. Que a falta de compreensão de Mamãe sirva para unir-me mais estreitamente a vós. Que isto contribua para fazer-me santa".
Passaram-se semanas, com sua incessante rotina de atividades comuns. Sempre vestida com o imaculado hábito de terceira, coberta com o véu, Rosa cuidava de suas flores e ervas, e se aplicava em suas finas costuras e bordados.
Andava completamente alheia aos rumores que se espalhavam pela cidade de que ela era tão santa como aqueles grandes servos de Deus, o Arcebispo Turíbio, o padre Francisco Solano e o irmão Martim de Porres. Dificilmente se passava um dia em que homens e mulheres não viessem pedir-lhe orações, consultá-la sobre um ou outro assunto, tocar sua famosa imagem do Menino Jesus, o "Pequeno Doutor" como ela dizia.
- Rosa é outra Santa Catarina de Sena, - dizia um ao outro.- Jejua o tempo todo. Dorme somente, duas horas por noite. Devotou-se inteiramente à salvação dos pecadores.
Casualmente, entretanto, algo de tudo isto chegou aos ouvidos da donzela. Foi logo procurar sua mãe com um estranho pedido. Queria permissão para ser uma eremita no jardim. Se ela se isolasse do mundo, se raramente aparecesse nas ruas, talvez o povo se esquecesse dela. Visto, porém, que o oratoriozinho que construíra quando criança, no fundo, entre as bananeiras, estava quase em ruínas, seria necessário fazer outro. E este segundo eremitério tinha de ser feito com material durável, com uma porta que se pudesse trancar.
Maria de Oliva recusou-se a ouvir qualquer sugestão. Já era bem desagradável ver sua linda filha num hábito religioso, saber que ela havia desprezado para sempre a oportunidade de ter um marido e filhos. Mas que fosse viver como eremita numa casinha de barro no fundo do jardim! - isso nunca!
Quatro anos se passaram. Rosa não perdeu a esperança de possuir sua casinha de adobes. Finalmente, assediada pelos rogos do padre Alonso, Dona Maria de Usátegui e D. Gonçalo, Maria de Oliva deu o sim desejado. Sim - Rosa podia enclausurar-se como um eremita, se o padre Alonso achava isso um gesto adequado. Podia recusar as visitas. Podia arruinar a saúde passando horas num cubículo úmido.
- Mamãe, como poderei jamais agradecer-lhe? - exclamou a jovem. - Eu o desejo há tanto tempo!
Maria suspirou ao contemplar sua filha então com vinte e quatro anos. Ainda era bonita, mas tão magrinha... O hábito branco não conseguia ocultar que durante anos Rosa vinha levando uma vida dificílima.
- As vezes não posso compreender por que você não entrou para um convento, minha filha. Que outra moça em Lima reza tanto como você?
Rosa sorriu, lembrando-se daquela tarde de domingo, quando uma força misteriosa a mantivera de joelhos em frente da Virgem do Rosário.
- Nunca tive vocação para freira, mamãe. Peço-lhe que acredite. E por favor, reze para que eu sirva bem a Deus, como eremita.
- Rezarei, - disse a mãe tristemente. - Mas lembre-se disto: se não fosse porque o padre Alonso achou que era direito, eu nunca teria dado consentimento. E'... é uma vida muito esquisita para uma moça.
Nos dias seguintes Rosa e Fernando estiveram muito ocupados. Escolheram um local para. o eremitério, desta vez pegado à casa e batido pelo sol. Uma área de um metro e meio por um metro e vinte, foi traçada no chão e perto, à mão, amontoaram grosseiros tijolos de adobe, de cor marrom clara e leves.
- Fernando, que faria eu sem você? - disse a donzela, enquanto se apressavam na construção da cela. - Você tem sido sempre tão bonzinho para mim, desde pequeninos.
- Ora, não é lá grande trabalho construir este quartinho, Rosa. O que me preocupa é como você vai conseguir viver numa casinha tão acanhada. Não podíamos fazê-la um bocadinho maior?
A jovem sacudiu a cabeça:
- Eu a quero bem pequena para não haver lugar para visitas. E só uma janelinha.
- E a porta? Como vai ser?
- Meu plano para a porta é especial. Tem de ser bem baixa, o bastante para uma pessoa passar engatinhada. Você compreende, quanto menor e menos confortável fizermos esta cela, tanto menos pessoas quererão vir ver-me.
O rapaz sorriu. Era verdade, sem dúvida. Quase nenhum dos conhecidos de sua mãe, por exemplo, haviam de querer passar de joelhos, arrastando-se, por uma portinhola.
- Diga-me como você a quer, e será assim, Rosa. Quero que tenha felizes recordações de mim, quando vier morar neste eremiteriozinho.
- Recordações? Você não vai embora, Fernando!?
- Vou, sim. Vou para o Chile no mês que vem.
- Negócios?
- Não. Tenciono entrar para o exército. Afinal de contas, tenho trinta anos, e é tempo de fixar-me em algum lugar.
Rosa abafou sua surpresa e desapontamento. Esse irmão querido falava a verdade. Muitos homens da idade dele já estavam casados, tinham um lar e família próprios... No entanto ela teria saudades dele...
- Rezarei por você todos os dias - disse ela gentilmente. - Não importa onde você vá, minhas preces o seguirão. Tenho certeza que você gostará de viver no Chile. Você casar-se-á com uma bela moça... e terá uma linda filhinha...
- De que está você falando? - perguntou Fernando incrédulo.
- E você vai dar o meu nome à meninazinha. Ela se chamará Maria Rosa.
- Bem, - disse Fernando com uma risada cordial. Uma coisa está certa do que você diz: se eu tiver uma filha, há de se chamar como você. Quem sabe... talvez algum dia ela até visite esta ermida.
Rosa olhou-o sorrindo. Embora não estivesse adivinhando, seu irmão dizia a verdade. Um dia Maria Rosa viria, evidentemente, a Lima, e seria uma célebre menina.
Mais uns dias de trabalheira e o eremitério de adobe estava pronto. A criançada dos Flores divertiu-se um bocado engatinhando para dentro e para fora, pela portinhola, e trepando numa cadeira a fim de espiar pela janelinha que dava para o jardim. Amigos e vizinhos e até alguns padres vieram ver a casinha de adobe construida por Rosa e Fernando. Alguns chegaram a medir o espaço ocupado, duvidando dos próprios olhos.
- Metro e meio de comprimento, um metro e vinte de largura, nem dois metros de altura! - exclamou assombrado o padre Velasquez. - Rosa, isto é pequeno demais!
- Padre, é bastante grande para Nosso Senhor e eu. Acho que serei muito feliz aqui.
Dona Maria de Usátegui que, entre os visitantes, também examinava o eremitério, pôs afetuosamente a mão no ombro da donzela.
- O convite ainda está de pé - murmurou. - Eu e meu marido ainda desejamos que você venha morar conosco. Avise-nos se mudar de ideia.
Rosa acenou que sim. Dom Gonçalo e Dona Maria eram tão bons amigos... Ela sabia que ambos preocupavam-se com sua saúde, com a vida árdua a que se dedicara.
- Não esquecerei vosso convite, - respondeu, -nem a vossa bondade. Agradeço a ambos por tudo, Dona Maria.
Rosa começou a morar no eremiteriozinho, mas não abandonou sua costura, seu bordado e o cultivo de suas flores e ervas. Quando caía a noite encerrava-se no cubículo e entregava-se a oração. Aí, rodeada do silêncio e da escuridão do jardim, dava largas a seu coração em louvores e pedidos.
Estes atos estavam agradando a Deus, pois Ele inundou de inúmeras graças a alma da nova eremita. Aparecia-lhe frequentemente como uma criancinha, encorajando-a a continuar em sua difícil vocação. Ensinou-lhe a nada recear enquanto depositasse n'Ele toda a confiança.
Nestas ocasiões Rosa pensava que morreria de pura felicidade. Que maravilha é a vida! dizia a si mesma. Qualquer alma, não importa a sua fraqueza, pode ser útil a seus semelhantes. Tudo necessário é pensar em Deus e em sua bondade. Virá, então, tal propensão de ser como Ele, de partilhar de sua verdade e beleza, que a alma não pode evitar que sua covardia se transforme em coragem, e começa a assemelhar-se a Deus. Devido a isto, arde em grande amor pelas outras almas, desejando que elas compartilhem também de sua felicidade.
"E' como um mendigo que finalmente ficasse rico", refletia Rosa. Enquanto é pobre, arreceia-se das outras pessoas, tem de si próprio um baixo conceito, sabendo que não fará jamais alguma coisa de grande aos olhos do mundo. (Ama vez, porém, que enriquece, muda-se tudo. Seu corpo definhado pela fome torna-se forte. Verifica que os outros olham para ele, e encontra uma verdadeira felicidade em fazê-los participar de sua riqueza.
Numa tarde de verão, Maria de Oliva saiu à procura de sua filha. O sol estava ardente e o jardim ostentava o colorido das flores que Rosa cuidava carinhosamente. Mas o rosto da mulher ensombrava-se de aborrecimento, enquanto se encaminhava para a pequenina ermida de adobe.
- Rosa! Estás aí?
Não houve resposta. Maria vislumbrou alguém movendo-se entre as fruteiras, e apressou-se naquela direção. Com certeza, Rosa estava colhendo laranjas que Mariana levaria ao mercado no dia seguinte.
- Rosa! Estás surda? Não me ouviste chamar-te?
A jovem descansou no chão um cesto quase cheio dos apetitosos frutos.
- Quer alguma coisa, mamãe?
- Naturalmente. Dona Isabel de Mejía veio ver-me e contou uma coisa que me aborreceu terrivelmente.
- Sua mãe não está doente outra vez?!
- Claro que não. Eu é que estou doente. Rosa, é verdade que disseste às pessoas que vai haver um convento de freiras dominicanas em Lima? E que dona Lúcia de la Daga será a primeira prioreza?
Um sorriso aflorou à face da moça.
- Sim, mamãe. E ele se chamará Mosteiro de Santa Catarina, em louvor de Santa Catarina de Sena.
A voz de Maria estava áspera.
- Dona Lúcia é uma senhora casada e muito feliz, com cinco filhinhos adoráveis. Por que hás de andar espalhando esses rumores de que ela vai ser freira?...
- Mas é verdade, mamãe. Vai haver um Mosteiro de Santa Catarina, e dona Lúcia irá para lá com sua irmã Clara. O padre Luís de Bilbao celebrará a primeira missa...
- Com que então, estás virando profeta, não é? Que sabes do futuro? Estás é perdendo o senso, desde que te meteste nessa mal-aventurada ermida.
Rosa baixou os olhos. Como havia ela de fazer sua mãe compreender que as notícias a respeito de Santa Catarina lhe tinham sido dadas na oração? Que sua amada amiga e padroeira, Santa Catarina de Sena, viera em pessoa contar-lhe do novo mosteiro?
- Sinto muito, mamãe. Não imaginei que a senhora ficasse tão aborrecida com o que eu disse a Dona Isabel.
- E não havia de ficar aborrecida? Que é que Dona Lúcia vai pensar de mim? E seu marido? Vê bem, disseste afinal de contas que o bom homem vai morrer... e os cinco filhinhos também. De outro modo, como poderia Dona Lúcia entrar para um convento?
Rosa sorriu levemente.
- Por favor, mamãe, não fique zangada. Tudo vai acontecer exatamente como eu disse.
- Chega! - exclamou Maria. - Daqui a pouco estarás contando a todo mundo que tua própria mãe vai fundar um convento. E eu não quero estas conversas. E' bastante desagradável.
A moça olhou o anel de ouro que Fernando lhe dera havia quatro anos. Lágrimas brilharam-lhe nos olhos.
- A senhora não vai fundar um convento, mamãe, mas entrar num, algum dia. Dona Lúcia lhe dará o hábito dominicano em Santa Catarina. A senhora será muito feliz lá, e eu prometo-lhe vir buscá-la quando a senhora estiver pronta para morrer.

18 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

IX. UMA FILHA DE S. DOMINGOS

Foi poucas semanas depois, a 10 de Agosto, festa de S. Lourenço, que Rosa ingressou na Ordem dominicana como terciária. Seu rosto tinha uma expressão radiante, quando ela ajoelhou-se na capela do Rosário em S. Domingos e ouviu seu confessor, o padre Alonso Velasquez, iniciar a cerimônia da recepção:
- "O' Senhor Jesus Cristo, que te dignaste revestir o aspecto mortal de nossa humanidade, suplicamos-te que, em tua grande misericórdia, te seja agradável abençoar estas vestes indicadas pelos santos Padres para serem usadas como sinal de inocência e humildade, a fim de que aquela revestida destas vestes seja digna de revestir-se de Ti, Cristo Nosso Senhor".
Rosa contemplou o hábito que o padre Alonso abençoava. Era o hábito dominicano de lã branca, estendido então sobre o altar - o mesmíssimo modelo usado por Santa Catarina de Sena e outras santas almas. Daí a poucos minutos passaria ela a usar o alvo vestido ao invés das belas roupas escolhidas por sua mãe.
O bom Deus abençoava uma pobre menina peruana com a vocação terciária dominicana. Dai a pouco já não estaria ela sozinha na tarefa de salvar a sua alma e a alma dos outros. As orações dos dominicanos -padres, freiras, irmãos leigos, outros terciários - em toda parte se juntariam às suas de um modo especial.
Rosa fechou os olhos inundada de felicidade, enquanto o padre Alonso a aspergia com água benta e continuava a oração:
- "Asperja-te também o Senhor com o hissopo, a ti que vais ser agora revestida com o nosso hábito, para que sejas purificada, e assim limpa e mais branca do que a neve possas aparecer externamente".
Maria de Oliva, ajoelhada a poucos passos, enxugou as lágrimas. Não era aquilo exatamente que ela planejara para sua filhinha favorita - uma vida no mundo como membro leigo de uma Ordem religiosa. Entretanto, que podia ela fazer? A menina recusava-se absolutamente a qualquer ideia de casamento. O que lhe interessava era salvar almas.
"Talvez ela mude de ideia daqui a algum tempo", - disse a mãe para si, entre soluços. - Talvez depois de alguns meses ela achará muito dura a vida de terciária.
Mas Rosa de Santa Maria, a nova filha de S. Domingos, sentia-se mais feliz do que nunca. Por fim palmilhava a mesma senda escolhida por Santa Catarina de Sena cerca de duzentos e cinquenta anos antes.
Até D. Gonçalo estava satisfeito, à medida que os meses passaram, de que Rosa tivesse escolhido o caminho certo. Embora outros homens e mulheres fossem chamados à vida religiosa, sua vocação era para tornar-se uma santa no mundo. Jamais a instigaria ele a ser freira em qualquer dos cinco conventos de Lima.
"Deus confiou a esta menina uma tarefa especial" pensou D. Gonçalo. -"Ela será um modelo para todos que devem alcançar a perfeição sem o auxílio do claustro".
A 10 de Agosto de 1607, Rosa voltou à capela do Rosário na igreja de S. Domingos. Terminara seu ano de prova como terciária. Quereria ela continuar aquela vida? perguntou o padre Alonso Velasquez. Queria ela fazer uma promessa de viver de acordo com as regras da Ordem -dominicana, até à morte?
A jovem, então com 21 anos, não teve a menor dúvida quanto à sua vocação, e, como Rosa de Santa Maria, fez a necessária promessa. Tornara-se efetivamente membro da Ordem dominicana.
Tempos passaram-se. Quanto às aparências exteriores Rosa parecia ter mudado muito pouco: continuava a viver sossegadamente em casa, cultivando suas flores e fazendo os finos lavores de agulha para as ricas senhoras de Lima. Uma mudança, entretanto, surgira. Pouco a pouco, recebendo devotamente a santa Eucaristia, suportando com paciência dificuldades e aflições, a filha de Gaspar estava tornando-se lentamente mais semelhante a Cristo. As vezes, quando sua mãe ralhava, que ela tomava pouco cuidado com a saúde, ela respondia gentilmente:
- A senhora e eu viveremos tanto tempo quanto Deus quiser, mamãe. Quando o trabalho que Ele nos deu estiver terminado então poderemos preocupar-nos com nossa saúde.
- Quem então vai pensar sobre isto? - perguntou Maria rispidamente. -Será muito tarde!
Rosa alisou as pregas de seu lanoso hábito branco.
- Querida mamãe, a vida é, na verdade, muito simples, quando nos lembrarmos apenas que somos servas - servas de Deus e de nossos semelhantes.
- Servas! Quem está querendo ser serva? Rosa, este modo de falar é desagradável. Se for assim, um negro ou um índio vale tanto como um homem branco. E uma pessoa rica e educada não é melhor do que um ignorante mendigo! E dizer que você fala deste modo, depois de tudo que fiz por você!...
Rosa respirou.
- Mamãe, por favor, não se zangue! Eu estou só tentando ajudar um pouco. Afinal, se nós realmente acreditamos que Deus é nosso Pai e Seu Filho, nosso Irmão...
- Chega de sermão, senhorita! Desde que você é terceira, ficou piedosa de mais para mim. Só quero que se lembre disto: Não me fale mais em ser serva. Seu pai pode ser pobre, mas pertence a uma boa família. E eu também!
O fracasso desta e outras conversações provaram a Rosa o que ela sempre soubera, isto é, que o consolo para um coração solitário pode ser encontrado na oração. Na oração, a fraca natureza humana eleva-se em busca de Deus e com seu auxílio torna-se forte. Aflições de toda espécie, quando a Ele oferecidas em união com os sofrimentos que seu Filho padeceu na terra, transformam-se em merecimentos de incalculável valor. Este era um dos motivos de haver na terra tanta tristeza: sem dores, bem poucas almas jamais pensariam em voltar-se para Deus.
"Todo mundo quer ser feliz", - pensava Rosa muitas vezes. - "Para isto fomos criados. Como é difícil, porém, lembrar-nos que só o maior dos bens - o próprio Deus - pode satisfazer-nos".
No Domingo de Ramos do ano de 1610, Rosa, então com vinte e quatro anos de idade, dirigiu-se à igreja de S. Domingos para assistir à S. Missa. A cerimônia era longa, com a bênção dos ramos e a procissão no interior do templo, antes do Santo Sacrifício. Enquanto dois irmãos leigos terminavam a distribuição das palmas bentas ao povo, o coro rompeu num hino triunfante e todos se apressaram para tomar parte na procissão.
Rosa hesitou. Por um motivo ou outro ela fora esquecida na distribuição dos ramos viridentes. Somente ela, de toda gente na igreja, não recebera a palma benta.
"Por quê?" - pensou ela. - Dar-se-á o caso de não ser eu digna de seguir com os outros?"
Afastou, entretanto, essa ideia de desapontamento. Teria sido apenas um descuido. O Irmão estivera muito atarefado para notá-la. Não haveria também motivo por que ela não se reunisse à procissão. Embora não tivesse uma palma para levar, podia lembrar-se do primeiro domingo de ramos, quando Nosso Senhor entrara em Jerusalém entre aclamações de seus jubilantes seguidores.
Quando o coro terminou o cântico e a longa fila de povo voltou aos lugares, Rosa lançou um rápido olhar à capela do Rosário. Como amava aquela imagem de Nossa Senhora com o Menino! Aqui, quatro anos antes, recebera da Mãe Bem-aventurada a aprovação à sua vocação para a Ordem Terceira dominicana. Naquela tarde domingueira, em que ela se vira forçada a permanecer de joelhos, uma voz falara em seu coração, e a voz lhe dissera que o trabalho de sua salvação não devia ser feito num mosteiro. Pelo contrário, havia de ficar no mundo - havia de ser uma santa no ambiente cotidiano.
"Querida Mãe, obrigada mais uma vez por deixar-me ser uma terciária dominicana", - murmurou ela. - "E não estou triste porque o Irmão esqueceu-se de dar-me uma palma benta. A palma que eu na verdade desejo é uma que jamais murchará, aquela que dais aos bem-aventurados no céu".
Enquanto Rosa suspirava esta pequena oração, viu maravilhada que a Mãe bendita sorria e virava-se amorosamente para a Criança em seus braços. Ninguém mais na igreja apinhada viu o milagre, nem ouviu as palavras que o Menino então proferiu - palavras que ecoaram no coração da jovem como a mais doce música:
"Rosa de meu coração, sê minha esposa!".
Rosa, entretanto, viu e ouviu e seu coração encheu-se de pura alegria. Deus a abençoara novamente com outro dom maravilhoso! Na igreja que ela tanto amava Ele lhe dizia que ela estava realmente contada entre as eleitas!
"E' demais para mim!" - murmurou. - "Não sou digna de tanto amor!".
Sabia, contudo, que não se enganara sobre a visão. Ela, uma pobre menina do Peru, escolhida desde a eternidade para pertencer a Deus, para ser uma de suas amigas bem amadas e para sempre! Já lera a respeito de favores tais concedidos a outros, incluindo sua amada padroeira, Santa Catarina de Sena. Agora, por um milagre da graça, a honra inigualável também lhe era dada.
O resto do dia, Rosa não pôde pensar em outra coisa. Quando Fernando lhe observou que parecia felicíssima, ela concordou com um aceno.
- E' bem verdade, estou felicíssima. E tenho outro favor a pedir.
O rapaz riu-se francamente.
- Aposto que você quer que eu a leve a algum lugar.
- Não. Desejo somente que você mande fazer um anel para mim.
- Um anel? Você quer uma joia.
- Isto mesmo. Mas não da loja. Apenas um anel simples, desenhado por você. Fernando, você fará isso para mim? E' de fato muito importante.
O rapaz perscrutou a fisionomia ansiosa da irmã, e compreendeu que algo fora do comum acontecera. Durante anos e anos Rosa pensara constantemente nas outras pessoas rezando por elas, ajudando-as quando estavam doentes, cuidando que o pobre tivesse todas as flores e frutos que ela podia poupar do jardim. Chegara finalmente a vez em que ela desejava alguma coisa para si.
- Naturalmente, eu arranjo um anel para você. Quer um de ouro ou de prata? E qual é a sua pedra preferida?
Rosa hesitou. Ambos aqueles metais eram comuns no Peru, como também diamantes e esmeraldas, que se encontravam em abundância nas minas dos Andes. Ela podia realmente possuir um lindo anel e sem muita despesa.
- Eu gostaria de um anel de ouro, Fernando, mas sem pedra alguma. Só um aro simples.
- E que tal um lema gravado? Umas poucas palavras no lado externo, e isto pode ser feito facilmente.
- Que palavras você sugere?
O moço pensou um momento:
- Que acha destas: "Rosa de meu Coração, sê minha esposa"?
O coração da moça transbordou. Ela nem podia conter sua grande emoção. Sem imaginá-lo, o irmão fora divinamente inspirado a escolher -as mesmas palavras que ela ouvira na igreja, as palavras que lhe dirigira naquela manhã o próprio Menino Jesus.
- Então, o que há? Não gosta da minha ideia?
- Admirável, Fernando! Não posso imaginar nada que mais me agrade.
- Ora, viva! Teremos um anel bem simples feito especialmente para você, com aquelas palavras gravadas na face externa. Conheço também o joalheiro indicado para o trabalho - um velho amigo meu que não tem tido muitas encomendas ultimamente.
Rosa sorriu agradecida.
- Ele pode fazer o anel já?
- Claro que pode. Em dois dias provavelmente. Vou vê-lo amanhã e levarei um esboço do que queremos.
Quando ficou novamente só, Rosa dirigiu-se a seu oratoriozinho nos fundos do jardim. Era um sitio sempre sossegado e aprazível. Só muito raramente passava alguém da família entre as bananeiras, pois havia muitas aranhas e mosquitos, diziam. Além disso o sol a custo penetrava o emaranhado da vegetação e galhadas, de modo que o lugar ficava escuro e sombrio.
Rosa, no entanto, nada receava de aranhas e mosquitos. Nunca esses insetos a tinham incomodado, e pareciam antes pressurosos de demonstrar-lhe amizade. Sempre que ela recitava o rosário ou suas outras orações os mosquitos zumbiam amigavelmente. Era quase como se eles também rezassem: Quanto às aranhas, interrompiam suas vagueações e tecelagem para continuá-las quando a amiguinha dava por terminada sua conversa com Deus.
Rosa, entretanto, nem cogitava desses insetos quando entrou em seu oratório. Pensava antes na graça maravilhosa que lhe fora dada aquela manhã na igreja dos dominicanos. E havia, naturalmente, o anel - o lindo anel de ouro que ela usaria sempre para lembrar-se que pertencia a Nosso Senhor. Como poderia esquecer isto?
"E' domingo de Ramos, - pensou. - Se meu anel estiver pronto quarta-feira, talvez o padre Alonso possa colocá-lo no sacrário na Quinta-feira Santa. Seria esplêndido".
Sim, seria esplêndido. Mas extraordinário também. Com certeza teria de haver um bocado de explicações para que o confessor entendesse.
"Farei o que puder", - resolveu ela consigo. - "Nosso Senhor está escondido no Sacrário na Quinta-feira Santa, e eu quero que meu anel esteja com ele nessa ocasião. No domingo de Páscoa, quando ele volta cheio de glória, eu receberei o anel e usá-lo-ei até à morte".

16 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

VIII. ADEUS A S. DOMINGOS

Dom Gonçalo não era o único a imaginar que seria bom para Rosa ser uma pobre clarissa. Sua velha amiga, Dona Maria de Quinhones, tivera a mesma ideia desde os tempos em que ajudara seu tio, o Arcebispo Turíbio, a fundar o convento franciscano de Santa Clara.
- Por que não queres ser freira? - perguntou ela um dia, em que as duas conversavam sentadas no jardim de Gaspar. - Imaginas a paz que terias no convento! Pensa na felicidade de te dares inteiramente a Deus! Minha querida, D. Gonçalo contou-me tudo. Se é questão do dote, ou de como tua família se há de avir sem o dinheiro que rendem tuas flores, não te preocupes um momento. Dom Gonçalo providenciará sobre tudo.
Rosa abanou a cabeça.
- Ele quer que eu seja clarissa - disse ela lentamente. - E a senhora tem a mesma ideia. O' Dona Maria, não sei o que fazer!
A dama sorriu, pois sabia qual era a dificuldade. Há muito tempo, Rosa dera seu coração à Ordem de S. Domingos e, no entanto, não havia em Lima freiras desta Ordem.
- Tens agora vinte anos. Se estás realmente certa de que não queres casar-te...
- Estou bem certa, Dona Maria.
- Então, por que esperar? Se fosse vontade de Deus que sejas dominicana, Ele teria, sem dúvida, providenciado a isto, fazendo que houvesse aqui um convento de dominicanas.
- Santa Catarina não era freira. Talvez eu pudesse ser uma Terceira Dominicana, assim como ela.
- E viver no mundo? Põe de lado esses desentendimentos. Rosa, meu bem, há muito tempo de te fiz ver como é difícil levar no mundo vida de solteira. E' necessária uma graça especial. Com a inclinação que Deus te deu para a oração e o sacrifício... bem, não posso evitar de pensar que pertences ao convento.
- De Santa Clara?
- Naturalmente o Convento de Santa Clara me é muito caro ao coração. Mas há quatro outros em Lima. Não gostaria de ser agostiniana? O convento da Encarnação é o primeiro para mulheres do Novo Mundo. Seria grande honra ser lá aceita, Rosa.
A mocinha suspirou. Realmente, não faria tanta diferença.
Tão bem pode-se servir a Deus sob a Regra de S. Agostinho ou S. Clara como sob a de S. Domingos. Entretanto, por que todo o seu ser clamava para ser dominicana? Por que, desde sempre tomara S. Catarina por especial modelo? Até as alvinegras borboletas do jardim paterno -sempre as preferira a quaisquer outras porque lhe lembravam as cores do hábito dominicano.
Semanas passaram-se, e finalmente Rosa confiou a Fernando que tomara uma resolução. Se D. Gonçalo ainda quisesse proporcionar-lhe o dote, ela entraria para o convento agostiniano da Encarnação.
- Agostiniana?! Mas o que fez você mudar de ideia, Rosa? Eu pensei que você não queria entrar para o convento.
- Chiu... Fernando! Não precisa espalhar isso para ninguém.
- Quer dizer que não disse a papai nem mamãe?
Rosa acenou afirmativamente.
- Não, - disse pausadamente. - Até agora só o meu confessor em S. Domingos sabe da minha resolução, o Padre Alonso Velasquez.
- E que acha ele?
- Não disse muita coisa; apenas me deu a bênção e algumas palavras de aviso.
O jovem contemplou pensativo a irmã. Melhor do que ninguém na família, sabia ele quão fielmente ela se dedicara à oração e às boas obras. Fora sempre assim, mesmo quando eram pequeninos. E agora via-a prestes a fazer o maior de todos os sacrifícios.
- Alguma coisa o entristece, Fernando.
- Não é bem isso. Mas vou perdê-la, Rosa. Não posso imaginar o que será vir para casa e não encontrar você por aí. Você sempre esteve aqui quando eu precisava. Agora, quando eu quiser falar-lhe, haverá grades de permeio; outras freiras, quem sabe, estarão ouvindo o que eu disser. E' assim que é nos conventos, não é?
- Chiu!... Alguém pode ouvir...
- E o que tem isso? Afinal vai-se saber.
- Eu quisera poder contá-lo a todo o mundo, agora mesmo - exclamou Rosa. - Mas o Padre Alonso me diz que guarde segredo. Até de papai e mamãe. A propósito, você quer fazer-me um favor?
- O quê?
- A Madre Abadessa espera-me no Convento, no domingo que vem, à tarde. Você quer me levar, Fernando? Eu não posso ir sozinha.
O rapaz fez um gesto de aquiescência. O costume espanhol não permitia que moça alguma de boa família andasse pelas ruas desacompanhada. Muitas vezes tivera ele de acompanhar Rosa à igreja ou a algum convento.
- Claro que levo - disse ele imediatamente. - Talvez seja uma boa ação que vá ficar gravada na história.
O resto da semana Rosa andou muito ocupada, e não foi só com flores. De vez em quando dedicava-se a trabalho de agulha e bordado. Algumas senhoras abastadas eram suas freguesas e o dinheiro que lhe rendiam estas atividades eram de grande auxilio à casa.
"Não será muito diferente quando eu tiver ido embora", dizia ela para si, "graças a D. Gonçalo. Que faria eu sem um amigo tão bom? Não só me deu um dote, mas ainda prometeu olhar pela família e cuidar que tudo continue normalmente. O' Senhor! eu vos agradeço por D. Gonçalo. Abençoai todos os seus dias!".
Na hora combinada, domingo à tarde, Fernando e Rosa dirigiram-se para o Mosteiro da Encarnação. Difícil foi para a jovem sair sem despedir-se de seus pais, irmãos e irmãs, e de Mariana. Mas tinha de ser assim. O padre Alonso Velasquez receava os argumentos que haviam de chover se as intenções de Rosa fossem conhecidas pela família.
Quando o portão de madeira se fechou atrás deles, Rosa virou-se para seu irmão preferido:
- Espero que tudo isto seja a vontade de Deus, Fernando.
- E o que mais podia ser?
- Eu não estou tentando fugir a dificuldades.
- Claro que não! Muito mais você está assumindo, com entrar para o convento.
A jovem caminhava silenciosa pelas ruas, olhando pela última vez as acanhadas casas de adobe, os mendigos, os garotos indígenas brincando. Subitamente um cão branco e preto disparou brincalhão na direção dela. Fernando estendeu instintivamente o braço para protegê-la.
- Cuidado, Rosa. Ele pode mordê-la... E não está muito limpo...
- Oh! ele não morderia ninguém, Fernando. E' apenas um cachorrinho. Mas, que interessante! ele é preto e branco.
- Preto e branco! Lá começa você outra vez; ainda pensando nos dominicanos!
Rosa deu uma risada.
- Nem por isso, Fernando. Mas estou com vontade, se houver tempo bastante...
- De que?
- De ir a S. Domingos para uma última visita.
O rapaz concordou.
- Está bem. Acho que podemos dispor de alguns minutos.
No interior da igreja dos dominicanos os dois irmãos separaram-se. Fernando permaneceu no fundo do templo, enquanto sua irmã prosseguia pela ala direita até à capela do Rosário. Aí ajoelhou-se ante o altar dourado dedicado a Nossa Senhora e uma vez ainda ofereceu-se como serva à Bem Aventurada Mãe e a Seu Filho.
- Ajudai-me a ser boa - implorou ela. - Mãe queridíssima, tende piedade dos pobres, dos ignorantes, dos sofredores! Pedi a Santo Agostinho que rogue por mim, a fim de que eu possa salvar muitas almas, como freira em sua santa Ordem.
À medida que os minutos passavam, Fernando se tornava inquieto. Rosa estava esquecendo que prometera ficar somente um pouco na igreja dos dominicanos. A Madre abadessa das agostinianas dissera-lhe que estivesse no convento a tempo das vésperas, e se quisessem chegar na hora, teriam. que andar depressa.
Ele deslizou para fora do último banco em que estivera sentado e dirigiu-se rapidamente para a irmã.
- Rosa, está na hora de sairmos.
A jovem levantou os olhos para ele. Suas faces estavam quase descoradas e uma expressão de espanto transparecia-lhe nos olhos arregalados:
- Fernando, alguma coisa aconteceu! Não posso mover-me. E' como se meus joelhos estivessem colados ao chão.
- O quê!?
- Sério! Desde que me ajoelhei tive que permanecer no mesmo lugar. Há uma força estranha retendo-me aqui.
O rapaz olhou-a assombrado. Que acontecera? Estaria sua irmã atacada de alguma doença esquisita? Ou estaria ela com alguma brincadeira? Um olhar, porém, a seu rosto empalidecido, convenceu-o de que ela dizia a verdade. Algo misterioso acontecera na capela de Nossa Senhora. Realmente, Rosa não podia levantar-se.
- Eu a ajudo, - disse ele com voz trêmula. - Pegue aqui o meu braço. Mas anda depressa com isso. Algumas pessoas na igreja já estão esquecendo suas orações. Daqui a pouco estaremos rodeados de uma multidão para ver o que há.
Rosa agarrou-se ao braço do irmão, mas nem o esforço combinado dos dois adiantou. Diante do altar da Senhora do Rosário, cheio de flores e tremeluzentes círios, continuou Rosa presa, de joelhos.
Fernando olhou em volta, como a procurar auxílio. Que haviam de fazer? Aquela hora as freiras já estariam no convento à espera da nova Irmã. Mandariam talvez até um recado à casa dos Flores para saber por que ela não teria vindo. Se tal acontecesse, os planos de Rosa deixariam de ser segredo.
- Faça uma oração ou qualquer coisa, - disse o rapaz aflito. - Deve haver um jeito de livrar você.
Rosa ergueu o olhar para a imagem de Nossa Senhora. Ocorreu-lhe subitamente que talvez Deus não a quisesse como agostiniana. Quem sabe fizera ele um milagre para provar a D. Gonçalo e aos outros que o lugar dela era no mundo e não num convento. Talvez - ó feliz ideia! -isso significava que, afinal, ela devia ser uma terciária dominicana!
- Querida Mãe, eu não serei freira se esta não é a vontade de Deus, -disse com simplicidade. - Voltarei para casa e viverei com minha família. Lá farei o possível para bem servi-l'O. Somente, por favor, deixe-me levantar-me.
Bem não terminara estas palavras, Rosa sentiu que podia ficar de pé. Cheio de assombro, viu-a o irmão de pé a seu lado.
"Mas que aconteceu, Rosa? Afinal, como pôde você levantar-se?"
Os negros olhos da donzela brilhavam.
- Foi ela, Fernando - a Mãe Santíssima! Ela não quer que eu vá para o mosteiro esta tarde. Ela quer que eu vá para casa. Ouvi sua voz em meu coração.
O moço meneou a cabeça. Que havia de dizer a madre abadessa? E D. Gonçalo de Massa?...

15 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

VII. UM AMIGO NA NECESSIDADE

Quando Rosa ficou mais crescida, obteve do pai permissão para cuidar de outras mulheres pobres e doentes. Uma sala especial foi reservada para essas infelizes. Recebeu o título de "Enfermaria", e em pouco tempo tornou-se um verdadeiro refúgio para as pobres doentes de Lima. Passados meses, vários índios começaram a propalar que tinham sido curados na "Enfermaria", especialmente depois de Rosa ter-lhes deixado segurar a estatuazinha do Menino Jesus. Aquela estatueta, insistiam eles, era milagrosa, e a própria Rosa referia-se a ela como ao "Doutorzinho".
Apesar da popularidade da filha entre os pobres de Lima, Maria de Oliva perdia às vezes a calma, quanto ao número de casos na "Enfermaria".
- Não haverá hospitais bastantes em Lima para que nossa casa se transforme também num? - perguntou certo dia a seu marido. - Há o de Sant'Ana, o de Santo André, o de São Lázaro! Com efeito, Gaspar, não vejo motivo por que Rosa há de manter aqui estas mulheres. Isto me põe doente!
Gaspar Flores limitou-se a sorrir. Raro era o dia em que, sua enérgica esposa não se queixasse de alguma coisa.
- Temos uma casa enorme, Maria. Certamente Rosa pode usar uma sala para sua caridade.
- Caridade! Gaspar, podes compreender isto no ano de 1606? Rosa tem vinte anos e ainda não se casou. Então não tenho direito de reclamar, vendo-a gastar horas e horas com doentes índios e negros? Por que não há de ela interessar-se em travar conhecimento com algum jovem distinto?
- Que adiantaria isso? Sabes o que ela nos disse.
A sombra de um desgosto toldou o rosto de Maria. Então Gaspar acreditava realmente que sua filha não poderia casar-se nunca, porque se prometera a Deus quando tinha cinco anos. Que absurdo! Nenhuma criança de cinco anos entende essas coisas.
- Se Rosa não se casar, eu morrerei de vergonha, declarou ela, decisivamente. - Todo mundo já começa a falar. Dizem que há qualquer coisa de errado nela, que ela é esquisita...
Gaspar soltou um suspiro. Rosa fora sempre diferente de seus outros filhos. Mesmo quando pequenina tinha coisas que o deixavam intrigado. As histórias que ela contava, por exemplo. Seria possível que o Menino Jesus lhe ensinara a ler e escrever? Que ela via o Anjo da Guarda? Que a Virgem Maria lhe aparecia frequentemente, enquanto ela trabalhava no jardim?
- Talvez seja a vontade de Deus que Rosa entre para um convento -disse ele, reatando a conversa. - Ao menos um de nossos onze filhos devemos à vida religiosa, Maria. Rosa está bem adequada, ao que me parece...
- A menina entra para o convento, mas só passando sobre o meu cadáver - anunciou amargada a esposa. - Durante anos tenho colocado todas as minhas esperanças num bom casamento para ela. Achas que vou me deixar agora desapontar?
Ora, pensou Gaspar, que adianta discutir? Nos vinte e nove anos de vida conjugal Maria fizera sempre o que queria.
Muitos havia em Lima, entretanto, que concordavam com Gaspar, declarando que Rosa possuía todas as qualidades de uma vocação religiosa. E por acaso, entre estes contava-se o tesoureiro da cidade, D. Gonçalo de Massa.
Natural de Burgos, na Espanha, D. Gonçalo chegara em Lima em 1601, e pouco depois travara conhecimento com a família Flores. A despeito de sua riqueza e alta linhagem, era um homem extremamente humilde, e seus servos negros e índios consideravam-se felizes de trabalhar em casa dele. Não ouvia D. Gonçalo cada manhã a missa numa das igrejas da cidade? E não dera ordens que nenhum pobre fosse jamais despedido de sua porta sem ter a fome saciada? E quanto a sua esposa, Dona Maria de Usátegui - onde se encontraria mais fiel cristã?
Na manhã em que Gaspar e sua mulher discutiam o futuro de Rosa, D. Gonçalo estava a caminho da igreja dos dominicanos para ouvir a missa. Era segunda-feira de Páscoa, uma brilhante e alegre manhã em fins de Março. Enquanto a carruagem rodava ligeira pelas ruas estreitas, D. Gonçalo ria-se, imaginando a recepção que o aguardava. Como sempre, era esperado por um bando de crianças, garotos esfarrapados, que sabiam que ele lhes trazia sempre, numa bolsa, um punhado de moedas de prata. Reboavam os gritos de boas-vindas, à aproximação do veículo, e ansiosos, os pequenos se precipitavam para o bom homem.
- Deus vos abençoe, meus amiguinhos - gritava ele, espalhando pelo ar uma chuva de moedas. - João, cuidado com os cavalos, não atropeles a criançada.
- Si, senhor - sorria o cocheiro índio.
Mas nem ele nem os cavalos precisavam de recomendação para andar com cautela. Já sabiam o que os esperava quando D. Gonçalo saía para a missa de manhã.
A carruagem chegara quase à igreja, quando os grandes sinos da catedral começaram subitamente a soar. O dobre solene e pesado anunciava que a morte viera para alguma pessoa importante. Logo outros sinos juntaram suas vozes à fúnebre música. De todos os cantos da cidade ressoavam as graves badaladas, num contraste flagrante com os repiques exultantes de Páscoa, no dia anterior.
D. Gonçalo quedou-se atento nas almofadas de sua bela viatura. "E' o meu velho amigo, o Padre João de Lorenzana, que morreu!", pensou ele. "Por que não fui vê-lo ontem como tinha planejado? Não me faltava tempo, ainda que fosse domingo de Páscoa".
Agora era tarde. E, enquanto a carruagem enveredava por uma rua lateral, D. Gonçalo murmurou uma ligeira prece pelo bondoso Padre dominicano, que fora seu confessor. Aí brilharam-lhe os olhos ao divisar uma figura familiar que descia a rua - o santo negro, Martim de Porres.
Martim fora a princípio um simples terceiro auxiliar em S. Domingos. Três anos antes, contudo, em obediência aos pedidos de seus superiores, ele se tornara Irmão leigo. A maior parte de seus vinte e sete anos ele os despendera ajudando os desafortunados de Lima. Pouco importava se os infelizes eram ricos ou pobres, espanhóis, índios ou negros. A caridade do Irmão Martim desconhecia limites. Um dia não se passava, em que as maravilhas operadas por suas orações faltassem a algum indivíduo ou lar da cidade.
- Deus seja louvado! - exclamou D. Gonçalo. - Justamente a pessoa que eu queria ver. João, deixa-me aqui, e conduz o carro para casa. Desejo falar ao Irmão Martim.
- Si, senhor - concordou sorridente o índio.
O Irmão dominicano vinha andando vagarosamente, a cabeça inclinada e movendo os lábios em oração. Vestia um hábito branco remendado sob um velho capote preto. Do braço pendia-lhe um cesto de mantimentos. Um cãozinho castanho, a cauda ereta, trotava-lhe satisfeito no encalço.
- Espere um instante, Martim!
O religioso virou-se e olhou.
- Bom dia, Excelência. Que as bênçãos desta santa Páscoa permaneçam convosco para sempre.
D. Gonçalo estendia-lhe nervosamente a mão.
- Irmão Martim, será que estes sinos estão dobrando pelo Padre João de Lorenzana? Terá o bom homem nos deixado?
Aos lábios do Irmão aflorou um sorriso.
- Estive com o Padre João esta manhã. Ele já não está doente.
- Não está mais doente? Mas não é possível! Semana passada ele estava às portas da morte.
- Ele se levantará amanhã.
Dom Gonçalo ficou estarrecido.
- Então os sinos estão tocando por outra pessoa?
- Sim, Excelência. Acaba de chegar uma mensagem de Sana. O Arcebispo Turíbio faleceu lá há quatro dias.
- Não pode ser...
- Expirou na tarde de Quinta-feira Santa - informou calmamente o Irmão Martim. - Se bem que nenhuma mensagem pudesse ter chegado aqui, até hoje, muita gente já adivinhou a verdade. As Irmãs do convento da Encarnação, por exemplo, viram na quinta-feira passada uma cruz brilhante no céu. Nessa noite havia, também, um eclipse da lua. As Irmãs acreditam que estes eram sinais de que o Senhor chamara a si o Arcebispo.
Nesse ínterim o contínuo badalar dos sinos trouxera para a rua centenas de pessoas. E quando a noticia se espalhou de que o querido Arcebispo estava morto, muitos romperam em pranto. Que fariam sem o bondoso homem que, durante vinte e cinco anos, fora o seu pastor espiritual? que partilhara com os pobres todos os seus bens mundanos?
D. Gonçalo deixou escapar um suspiro.
- Estive em Callao toda a semana passada, Martim. Estava lá um navio chegado da Espanha e eu tinha ordem de inspecionar a carga. Mas não tenho escusa para minha ignorância a respeito do Arcebispo. Hoje de manhã minha filha Micaela tentou dizer-me alguma coisa sobre aqueles sinais no céu. Deus me perdoe! Eu estava muito apressado para ouvi-la.
Martim sorriu.
- Acho que sei por que, Excelência. Queríeis assistir à missa na igreja dos Dominicanos... Vejo, porém, que vos estou atrasando...
D. Gonçalo meneou a cabeça.
- Não, Martim. Tenho algum tempo ainda. Mas você... vai a algum lugar com este cesto de víveres?
O religioso concordou com um gesto da cabeça.
- Há na próxima rua uma pobre mulher leprosa. Quereis fazer uma oração para que ela melhore de saúde?
D. Gonçalo não pôde deixar de achar graça. O Irmão Martim tinha um jeito especial de fazer suas obras de caridade, e sempre pedia aos outros que rezassem por seus protegidos doentes. Quando estes apareciam subitamente curados, atribuía o fato extraordinário à bondade das outras pessoas. As vezes até dizia que o caso era devido a algum novo remédio.
- Está bem, rezarei uma oração, - replicou D. Gonçalo, - mas você, de fato, não me engana, Martim. Não terminamos justamente o santo período da Quaresma? Nesse tempo você há de ter feito boas obras bastantes para curar um exército de leprosos.
Martim meneou a cabeça.
- O' Excelência, por que zombar de mim? Eu sou apenas um pobre negro.
- Um pobre negro que se consome pelos outros. Deus o abençoe, Irmão Martim. E reze também por mim!
Com um rápido aperto de mão, despediu-se D. Gonçalo de seu santo amigo, e dirigiu-se apressado para a igreja dos dominicanos. Grande número de pessoas enchia o templo quando ele chegou, pois várias missas estavam sendo celebradas em sufrágio da alma do Arcebispo Turíbio. Um jovem Irmão leigo conduziu o recém-chegado a um dos primeiros assentos do lado da Epístola, junto à capela do Rosário. Aí o Padre Francisco da Vega, recentemente eleito Provincial dos dominicanos, celebrava a Missa.
D. Gonçalo dispôs-se para assistir com o devido zelo ao santo Sacrifício, mas uma distração veio logo perturba-lo, na figura de duas pessoas que lhe atraíram o olhar a pouca distância. A primeira era um rapaz de vinte e dois anos que, inquieto, mudava de posição a cada momento. A segunda era uma jovem de vinte anos, com a cabeça é os ombros envoltos numa mantilha de rendas, negra, numa atitude toda absorta nos movimentos do padre no altar.
- Aquela é Rosa Flores, - disse consigo D. Gonçalo. Eu havia de saber que ela traria Fernando à igreja num dia como este.
Embora o tentasse, D. Gonçalo achou cada vez mais difícil desviar o pensamento da jovem ajoelhada a poucos passos. Que tranquilidade a sua, seguindo os gestos do Padre Francisco da Vega a oferecer o Santo Sacrifício. No entanto ela devia estar fraca; justamente na véspera sua mulher lhe contara que Rosa mal provara algum alimento durante toda a quaresma.
"Ela estaria melhor num convento - pensou D. Gonçalo. - Provavelmente a única coisa que a impede é o fato de sua família ser pobre. Precisam do dinheiro que ela ganha na venda de flores. Além disso, Gaspar Flores é muito pobre para dar um dote à filha.
Subitamente uma ideia surgiu no espírito de D. Gonçalo. Não poderia ele ajudar? Como homem de alta influência política não lhe faltava dinheiro nem prestígio. Seria coisa de nonada para ele, providenciar para que Rosa tivesse um dote adequado e que a família recebesse uma espécie honrosa de auxílio.
"Vou fazê-lo! - disse a si mesmo. - Será realmente um prazer ajudar a menina".
E, enquanto considerava a parte que estava para representar na vida daquela jovem, D. Gonçalo sentiu-se inundado de uma grande onda de felicidade.
Mas quando ele oferecesse a Rosa a possibilidade de ser freira, qual dos cinco conventos de Lima ela escolheria? divagava ele. - Talvez o mais recente, o convento franciscano de Santa Clara, que o bom Arcebispo (Deus tenha sua alma!) fundara dois meses antes...
Quanto mais examinava a ideia, melhor lhe parecia. A vida de uma pobre clarissa era dura, mas Rosa com certeza sabia suportar o sofrimento. De acordo com sua esposa, raro era o dia em que a menina não tivesse algum sacrifício, aceito alegremente, a oferecer a Deus.
"Uma vez no convento - devaneava o bom homem ao menos uma tribulação lhe será poupada. A mãe pode querer casa-la com alguém que não seja digno dela... "
De repente soaram as campainhas, e D. Gonçalo olhou para o altar com ar de culpado. "Que se passa comigo? censurou-se. - Não prestei a menor atenção a esta Missa... "

14 de julho de 2021

Santa Rosa de Lima - O Anjo dos Andes

VI. UM SANTO VEM A LIMA

Passaram-se tempos. Na tarde de 23 de Agosto de 1601 vigília da festa de S. Bartolomeu - Mariana, a criada índia, voltava pela rua de S. Domingos, trauteando uma animada canção. De manhã, bem cedo, deixara ela a casa de seu amo Gaspar, com dois enormes cestos de flores. Os cestos voltavam vazios, e na bolsa tilintavam as moedas de prata. Fora um dia dos melhores no mercado. Cada uma das flores alcançara excelente preço.
- Aposto que não há ninguém como a senhorita Rosa, quando se trata de cultivar flores, - pensava ela. - Sua mãe vai ficar bem satisfeita com o resultado de hoje.
Quando, porém, Mariana abriu a porta de trás e percorreu a vasta habitação não viu sinal nem de Maria Oliva nem das crianças. Não havia em casa ninguém a quem pudesse contar as boas novas.
"Agora me lembro", resmungou, "a família toda foi à igreja dos franciscanos. Aquele novo pregador, padre Francisco Solano, prega lá hoje. Já começam a chamar o bom homem de "São Francisco", por causa das coisas extraordinárias que tem feito".
Mariana tirou o largo chapéu de palha e dirigiu-se para a cozinha. Dai a poucos minutos ela teria de começar o jantar. O dia já ia declinando -aquele raro dia de sol, pois em Lima no mês de Agosto poucos dias de sol havia. Nisto a cidade não se parecia nada com Arequipa e Cuzco, outras cidades peruanas lá em cima, sobre os Andes. Em Agosto, geralmente, a costa é úmida e nevoenta, enquanto nas montanhas o sol brilha esplêndido dia após dia.
"Faço fogo num instante e isso há de ajudar a livrar da friagem da noitinha". - disse Mariana para si. - "Quanto a este dinheiro, é melhor colocá-lo num lugar seguro. E' a maior quantia que deram até hoje as flores da senhorita Rosa".
Um canto melodioso interrompeu Mariana no seu cuidado de recontar e guardar as moedas de prata. Alguém estava cantando lá no fundo do jardim, e intercalando as notas suaves da canção percebia-se o trilo argentino de um rouxinol. Mariana largou o dinheiro e precipitou-se para a porta na ponta dos pés. Ouviam-se distintamente as palavras do cântico:

Tu cantas a teu Criador, Eu canto ao meu Amor. Para ambos nós é deleite Louvar do Céu o Senhor!

"Então a senhorita Rosa estava aqui o tempo todo" pensou Mariana. -"Eu devia ter adivinhado. Ela passa todo o tempo livre naquele nicho que construiu".
Não levou muito tempo e o fogo brilhou na grande lareira. Mariana deu uma corrida ao poço perto da porta dos fundos, encheu de água a chaleira e pô-la ao fogo para ferver. Rosa ainda estava cantando, acompanhada pelo rouxinol, quando ela, finalmente, se meteu pelo caminho areento, em direção ao fundo do jardim. O céu estava escurecendo, e uma leve brisa soprava através dos galhos das árvores altas. Mariana teve u m arrepio.
- D. Rosa! Está na hora de aprontar a janta!
Não houve resposta. A pobre mulher deu um suspiro e pôs-se a procurar o caminho na escuridão cada vez mais densa. O jardim da família Flores, cheio de arbustos e flores, era um lugar muito agradável de dia, mas à noite o caso era diferente. As grandes folhas pendentes das bananeiras pareciam torcidas e ameaçadoras. As oliveiras e figueiras apareciam sombrias e estranhas. Muitas vezes Maria de Oliva se queixara de que o jardim não era lugar seguro à noite.
Rosa, entretanto, não se amedrontava pela escuridão. Três anos antes, quando ela tinha apenas onze anos, construíra com suas próprias mãos um pequeno oratório num sítio distante o mais possível da casa. Era, na verdade, uma espécie de cabana feita de ramos e galhos curvados; no interior pusera um altarzinho com um crucifixo e velas. O oratoriozinho, dissera ela à família, era um bom lugar para se trabalhar e rezar.
"A maior parte das meninas de quinze anos - pensava Mariana - andam ansiosas por se divertirem. D. Rosa é o contrário. Seu maior cuidado são ainda as almas, como salvá-las do inferno, como tornar-se mais agradável a Deus - aí está o que lhe enche os pensamentos".
Estava tão escuro como úmido, quando, por fim, Mariana parou. Lá, escondido entre as bananeiras, descobriu ela o oratoriozinho de Rosa. Alarmado, o rouxinol soltou ainda uma nota. Mariana afastou para um lado a folhagem de um galho.
- Senhorita Rosa! Não sabe que pode apanhar um resfriado mortal, sentada aí nesse lugar úmido? Então não pode rezar em outro lugar qualquer?
Da sombra de sua ermidazinha veio o riso claro de Rosa. Era um riso musical, quente e melodioso, e no mesmo instante Mariana se arrependeu de ter falado tão asperamente.
- Estou muito bem, Mariana. O passarinho e eu...
- Bem que eu ouvi. Mas está na hora de jantar. Seria melhor guardar suas cantigas para amanhã.
Rosa abandonou o acanhado abrigo.
- Acho que está esfriando, Mariana. Não o tinha percebido, pois estive tão ocupada a tarde toda. Primeiro costurei um pouco. Depois, quando ficou escuro demais, o passarinho veio e...
Mariana deu uma olhadela no oratório. Uma cruz de madeira estava encostada na parede. Era da altura de Rosa. A boa criada sentiu calafrio, ao verificar que Rosa estivera fazendo outras coisas, além de costurar e cantar hinos. Uma parte da tarde ela passara carregando a pesada cruz pelo jardim, em lembrança da caminhada dolorosa de Nosso Senhor ao Calvário. Era um exercício que ela praticara alguns anos - um método especial de fazer a Via Sacra, quando se achava sozinha.
- Vamos embora, D. Rosa. Eu preciso de ajuda no jantar.
A menina acenou que sim e pegou um pano grande de linho. Era uma toalha de altar que Maria de Oliva lhe pedira para embainhar. O trabalho estava pronto desde cedo.
No caminho para casa, Rosa notou alguém andando na cozinha, perto da janela.
- Mamãe deve ter voltado já da igreja, - disse.
- Não havia de me admirar, D. Rosa. Ela foi há tanto tempo. Provavelmente o Padre Francisco pregou outro de seus lindos sermões.
- Ele deve ser maravilhoso!
- Daqui a pouco saberemos. Mas não corra dessa maneira! Pode tropeçar numa pedra!
Rosa aquiesceu. A escuridão, que enchia todo o jardim, pouco lhe importava. Conhecia palmo a palmo o lugar. Entretanto, diminuiu os passos. Não seria caridoso deixar Mariana descobrir sozinha o caminho naquelas trevas.
- Eu gostaria de ter ido à igreja esta tarde, Mariana. Todo mundo em Lima fala sobre a santidade do Padre Francisco. Ele é missionário há onze anos, e dizem que tem convertido milhares de índios.
- Então, por que não foi ouvi-lo?
- Eu tinha que embainhar esta toalha para mamãe.
- Ora, minha filha, isso podia esperar, e sua mãe só teria de ficar muito contente...
- Eu quis fazer um pequeno sacrifício.
- Sacrifício! Dona Rosa, se eu escuto outra vez esta palavra . . .
- Não fique zangada, Mariana. Eu gosto de fazer sacrifícios. E' a minha maneira de ser útil aos outros. As vezes penso que é para isto que nasci -para que possa rezar e sofrer pelos outros.
- Se fizer sacrifícios demais, não há de durar muito neste mundo.
Rosa esboçou um sorriso.
- Não me importa. Sei que ficarei quanto tempo Deus quiser. E agora, Mariana, vou contar-lhe um segredo.
- O quê?
- Amanhã é a festa de S. Bartolomeu...
- Isto não é segredo.
- Não, mas o que vou dizer é. Quando eu morrer, acho que vai ser na festa de S. Bartolomeu. Todos os anos, quando se aproxima o 24 de Agosto, eu fico tão animada. O' Mariana, deve ser esplêndido viver no Céu e ver Deus para sempre.
- Dona Rosa, não deve dizer tais coisas.
- E por que não? Muita gente fica esperando ansiosa o dia do aniversário, mas para mim acho mais grato prever e ansiar pelo dia da morte. E' com efeito um grande dia, Mariana. O dia em que começa a verdadeira vida.
A índia fez um grande sinal da cruz.
- Não deixe sua mãe ouvir essas esquisitices de morrer no dia de S. Bartolomeu. Não lhe agradaria nada, dona Rosa. Além disso, não é correto fazer a gente pensar que a senhora conhece o futuro. Isso compete a Deus.
Rosa acenou com a cabeça, concordando.
- Foi ele quem me disse - explicou simplesmente.
E era verdade. Muitas vezes, no âmago de sua alma, Rosa ouvia coisas espantosas. Uma vez era Nosso Senhor que lhe falava, outras era a Virgem Maria, ou então S. Catarina de Sena. E sempre davam-lhe a entender que os homens e mulheres devem fazer penitência por seus pecados. Pois uma alma com uma manchinha, embora insignificante, não pode entrar no Céu. Ou o pecador satisfaz por si mesmo, no purgatório ou neste mundo, ou alguém em lugar dele: e era isto que Rosa entendia com ser útil aos outros.
"Eu quero satisfazer pelos pecados dos outros", dizia ela; "Senhor, dizei-me o que quereis que eu faça".
Mariana e sua patroazinha atingiam já a porta dos fundos, quando um grito as fez estacar subitamente. Por cima do alto muro de tijolos que resguardava da rua o jardim dos Flores, viera o grito lamentoso de uma mulher oprimida pelo sofrimento. Rosa perscrutou ansiosa a escuridão.
- Deve ser alguém ferido, Mariana. O grito veio exatamente do portão.
- Mãe de Deus, filha, não vá ver o que é. Nada há que dizer, seja lá o que for.
- Mas não podemos ficar aqui sem fazer nada.
Rosa pôs-se a correr em direção ao portão, e logo outro grito atravessou a noite. Ouvindo o distúrbio, Maria de Oliva abriu a janela da cozinha.
- Que está acontecendo ai fora, Mariana? Por que não está aprontando o jantar?
A criada juntou as mãos nervosamente.
- Dona Rosa saiu à rua, senhora. Ela... ela pensa que há alguém ferido.
- Saiu à rua! A esta hora?
No mesmo instante o portão abriu-se rangendo nos gonzos e uns passinhos leves ecoaram na areia do caminho.
- Está tudo bem, mamãe. Esta pobre mulher deu uma queda e feriu-se no joelho.
Maria de Oliva inclinou-se para fora da janela, e ficou quase sem fala ao ver Rosa caminhando vagarosamente para casa e ajudando uma índia que se lhe apoiava ao ombro.
- Ela está meio morta de fome, e machucada, mamãe. E está com frio, também.
Maria de Oliva olhou desalentada para o jardim escurecido. A maior parte dos índios em Lima era uma gente suja. Muitos eram doentes, e Rosa não só tocava com suas mãos num deles, mas, pelo visto, ia conduzir a criatura para dentro de casa. A índia estava ferida - vá lá, mas então que fosse para o hospital de Sant'Ana, no outro lado da cidade. Jerônimo de Loaysa, o primeiro Arcebispo, tornara-o acessível a qualquer índio doente.
Maria estava quase dominada de impaciência e aborrecimento. Algo, entretanto, a retinha no íntimo, e pela primeira vez na vida, ela não encontrava palavra para desabafar. Uma hora antes estivera ouvindo o sermão de um frade franciscano. Fora um sermão sobre a caridade. O padre Francisco Solano, de volta de seus recentes trabalhos missionários no Paraguai e na Argentina, não poupara os ouvintes. Não tinha palavras dulçorosas para o egoísmo.
"Ou amais ou não amais o vosso próximo", dissera ele. "Ou nele vedes Nosso Senhor Jesus Cristo ou vosso próprio orgulho. E aquilo que vedes é que indica se ides para o Céu ou para o Inferno. O' meus irmãos! Não vos desvieis jamais de um homem porque é pobre, porque é ignorante, porque tem a pele de outra cor que a vossa! Lembrai-vos, é bem possível que vos estejais desviando de Deus".
Maria de Oliva saiu da janela e foi abrir a porta da cozinha.
- Traz a mulher para dentro - murmurou. - Ao menos podemos dar-lhe uma boa refeição.