28 de dezembro de 2010

A heresia do Americanismo

O AMERICANISMO

Se mencionamos aqui o americanismo, entre as heresias, é apenas a título de lembrança. Na realidade, não é uma heresia formal: é contaminação naturalista que desapareceria logo depois de denunciada e condenada. Os fatos são êstes. Entre os mais eminentes missionários católicos da América, estava o Pe. Isaac Thomas Hecker, fundador dos "Missionários de São Paulo". Nascera em Nova York, de pais protestantes. Converteu-se ao catolicismo em 1844 e entrou na ordem dos redentoristas em 1845, ordenando-se sacerdote em 1849. Voltando para a América, logo criou fama de grande orador. Mas parece que muito cedo começou a espalhar idéias que a Igreja condenaria com o nome de americanismo. Em desavença com a Congregação, o P. Hecker saíu dela e fundou nova Congregação que se expandiu com bastante rapidez. Morreu em 1888. Era um homem zeloso, verdadeiro apóstolo que compreendera a necessidade de se empregarem os meios mais modernos para o apostolado de nosso tempo, particularmente a imprensa. Em nosso século, também sob o patricínio de São Paulo, nasceu e foi muito aprovada uma Congregação que coloca no primeiro plano de seus métodos de apostolado tôdas as descobertas modernas: imprensa, cinema, televisão. Não foi, portanto, isso o que provocou a condenação do americanismo. Após sua morte, o padre Hecker foi celebrado por um biógrafo indiscreto, o Pe. Elliot. O livro apareceu em 1894. Foi traduzido para o francês em 1897. Um Padre de São Vicente de Paulo, Carlos Maignen, denunciou o panegírico numa brochura intitulada: O Pe. Hecker é santo? Seguiu-se viva polêmica. Terminou com a condenação do americanismo. Que significa americanismo? Em primeiro lugar é uma tendência que condena a constituição tradicional da Igreja, pretextando que "o futuro pertence às democracias" e que a palavra liberdade já exerce poder mágico sôbre os espíritos. De um modo ou de outro, a Igreja deveria deixar de ser uma religião de autoridade, para, como a protestante, se tornar religião de liberdade.
Em segundo lugar, conforme os americanistas, seria tempo de rever a escala dos valores espirituais. A idade média punha em primeiro lugar as virtudes passivas.: humildade, obediência, pobreza, mortificação, etc. Nossa época, segundo os americanistas, tem razão em dar maior importância às virtudes ativas, como sejam: energia na ação, apostolado externo, a luta pela palavra, imprensa, publicidade moderna; numa palavra, tudo o que se resume por êste têrmo em moda: o dinamismo, para fazer triunfar a verdade e a justiça! Os homens de ação são donos do mundo.
Tais aspirações são, evidentemente, as antípodas do quietismo como o esboçamos no início do presente capítulo. E por isso que tais idéias, atualmente, trazem o nome de ativismo, exatamente o contrário de quietismo. Mas a Igreja não aceita nenhuma das duas posições. O papa Leão XIII, que certamente pode ser chamado um "papa dinâmico", condenou peremptôriamente o americanismo em sua carta Testem benevolentiae, dirigida ao cardeal Gibbons, em 22 de janeiro de 1899.
Mas o ativismo, forma renovada do americanísmo, continua sendo uma tentação e mesmo um perigo para a própria Igreja de nossos dias.

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Monsenhor Cristiani. Prelado da Santa Sé. Breve História das Heresias. São Paulo: Flamboyant, 1962. Ps. 109-110.

Sacerdote Eternamente - Parte 15

SACERDOTE ETERNAMENTE
Dom Emmanuel Marie André

LIVRO SEGUNDO
COMO O MINISTÉRIO PODE SER DESNATURADO

CAPÍTULO VI
O que Pode ser o Ministério Quando Desnaturado


O ministério pode desatender à sua finalidade por muitas causas diversas, conforme mostramos nos capítulos precedentes. Tornar-se-á, então, mera rotina, empirismo ou uma espécie de trabalho maquinal, como se explica a seguir.

A rotina é um tipo de ministério eclesiástico que apenas se ocupa em atender ao que lhe é solicitado ou aos casos que se apresentam. Faz-se o que deve ser feito em virtude de uma certa ordem material, de um costume estabelecido que em si mesmo não merece censura. A semelhante ministério falta apenas aquilo, que também os cadáveres não têm: a alma, o espírito.

O empirismo é palavra chocante, quando aplicada à matéria em consideração. Faz lembrar, com desagrado, aqueles homens — chamados charlatães — que se proclamam detentores de um remédio infalível, capaz de curar todos os males. Quando no exercício do ministério o método seguido se assemelha ao desse tipo de homens, pode-se agir com vontade de obter bom êxito (não confundir com a boa vontade no sentido teologal), com desejo do bem, com empenho no sentido do bem; mas esse empenho é guiado por uma vontade pouco ou mal esclarecida. Pode-se caminhar largos passos esperando chegar, por fim, ao bom caminho, contudo, não se tem clara noção nem do que seja o bom caminho nem das condições requeridas para trilhá-lo com segurança.

Chamamos engenhosidade uma forma de ministério eclesiástico, na qual se faz grande aplicação de raciocínio, pois inventam-se mil meios, põem-se em cena mil estímu-los, empregam-se múltiplos recursos de imaginação. Mobiliza-se, em suma, o nosso espírito, mas é esquecido o Espírito de Deus.

Temos em mão um livro mui recentemente escrito, que foi muito promovido e até premiado em concurso. Esse livro é um verdadeiro método de engenhosidade em questão de ministério. Há nele cem tipos de expedientes, indicados seja para um executivo seja para seu adjunto, para o castelão como para a castelã, para o tabelião, para o médico, para o professor, para o guarda-florestal, etc., etc. Terminada a leitura desse livro, imaginamos: eis aí coisas que São Pedro e São Paulo não sabiam! Mas depois veio-nos à mente esta reflexão: melhor é saber o que sabiam São Pedro e São Paulo.

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ANDRÉ, Dom Emmanuel Marie. Tratado do Ministério Eclesiástico.

27 de dezembro de 2010

Domingo na Oitava do Natal: Sermão de Santo Antônio de Pádua (parte 2/5)

5. A seguir, sobre a tristeza da penitência. Simeão, aquele que ouve a tristeza. Dela fala o Apóstolo: A tristeza que é segundo Deus opera a salvação (cf. 2Cor 7, 10). E nos Provérbios: "O espírito triste seca os ossos" (Prov 17, 22), pelo peso da devassidão e petulância. Por isso Jó: "Castiga pela dor no leito, e faz enfraquecer todos os seus ossos. O pão lhe é abominável à sua vida, e a comida que antes desejava, à sua alma" (Job 33, 19-20). O leito é a deleitação carnal, na qual a alma jaz como que paralítica, dissoluta em todos os membros. Por isso, em Mateus: "Mostraram-lhe um paralítico jazendo num leito" (Mt 9, 2). O Senhor castiga pela dor no leito, quando incute a dor dos pecados na alma que repousa na deleitação carnal, e então ouve a tristeza, que faz enfraquecerem todos os seus ossos.
Daniel, tendo uma visão, disso: "Não ficou em mim nenhuma força, mas até a minha aparência mudou, e encolhi, e não tive mais forças" (Dan 10, 8). A quem aconteceu isso, torna-se abominável o pão, isto é, a deleitação carnal, à sua vida e à sua alma, isto é, à sua animalidade, o alimento antes desejável. Eis o que diz Daniel: "Não comi o pão desejável, carne e vinho não entraram na minha boca, nem fui ungido com unguentos" (Dan 10, 3).
Disse Salomão: "O coração que conheceu a amargura da sua alma, não se misturará na sua alegria um estrangeiro" (Prov 14, 10). Onde estiver a mirra da tristeza, aí não será admitido o verme da luxúria. Por isso Isaías diz: "Afastai-vos de mim, chorarei amargamente". Como a fumaça espanta as abelhas, assim a amarga e lacrimosa compunção expele os demônios, que rodeiam a alma como as abelhas, o favo. "E não trateis", ó afetos carnais, "de consolar-me", porque, como disse Jó, "vós todos sois consoladores pesados" (Job 16, 2). "A minha alma não quis ser consolada" (Ps 76, 3) pelo vosso consolo. "Vossas consolações, ó Senhor", e não as minhas - porque "ai de vós, que tendes o vosso consolo" (Lc 6, 24) -, "alegraram a minha alma" (Ps 93, 19). "Não trateis, pois, de consolarme sobre a devastação", isto é, aflição, "da filha" isto é, da carne, que é filha "do meu povo", isto é, da população dos meus cinco sentidos. Dele fala o Salmo: "Que submete o meu povo a mim" (Ps 143, 2).

6. Segue-se a respeito da obediência. Ana, "aquela que responde", assim como Samuel: "Fala, Senhor, que teu servo escuta" (1Reg 3, 10); e como Isaías: "Eis-me, enviai-me" (Is 6, 8); e como Saulo: "Senhor, que quereis que eu faça?" (At 9, 6). Diz o Eclesiástico: "A resposta suave quebra a ira" (Prov 15, 1), "e o modo de falar gracioso abundará no homem bom" (Eccli 6, 5). "A resposta suave" do humilde súdito "quebra a ira" do superior soberbo. Por isso se diz nos Provérbios: "A paciência" do súdito "aplaca o príncipe" (Prov 25, 15). "Não lutes contra o ímpeto da correnteza", como diz o Eclesiástico (Eccli 4, 32), isto é, a vontade do superior, "mas humilha a tua cabeça diante dele" (Eccli 4, 7)."E o modo de falar gracioso abundará no bom" súdito, de modo que pode dizer com Jó: Chamai-me, e responder-vos-ei (cf. Job 14, 15). Ele responde a quem chama e obedece de coração quem lhe é superior.
Eis que explicamos brevemente essas quatro virtudes, por que quem quer encontrar Jesus tem essas quatro pessoas, em meio às quais repousa a salvação. José e Maria levaram Jesus ao templo. Simeão e Ana professam e bendizem. Porque a pobreza e a humildade levam o Jesus pobre e humilde. A pobreza o leva nos braços.

7. Por isso, no Gênesis, lê-se: "Issacar é um asno forte, deitado nos confins; viu que o descanso era bom, e que a terra era ótima; abaixa o braço para carregar" (Gen 49, 14-15). Issacar quer dizer recompensa, e significa a pobreza, que abandona todas as coisas temporais, para poder receber a recompensa da eternidade. Ela é chamada "asno forte". O asno é um animal de carga, apascentado nos lugares ásperos e vis. Assim a pobreza carrega o peso do dia e do calor (cf. Mt 20, 12), e vive nas coisas grosseiras e ásperas. Migalhas de pão, diz São Bernardo, e simples água, vegetais ou legumes simples de modo algum são coisas deleitáveis, mas, no amor a Cristo e desejo da deleitação interior, é muito deleitável poder satisfazer com eles um ventre sóbrio e mortificado. Quantos milhares de pobres satisfazem deleitavelmente a natureza, com esses alimentos ou semelhantes! Seria facílimo e deleitável viver segundo a natureza, adicionando o condimento do amor de Deus, se a nossa insanidade no-lo permitisse.
Continua-se: "Deitado nos confins", não "entre os confins" (Gen 49, 14). Dois são os confins, a saber: a entrada e a saída da nossa vida. Nesses deita-se, descansa a pobreza. Contempla a paupérrima entrada do homem, e vê a sua vilíssima saída, e por isso não quer deitar-se entre os confins, para ouvir, como diz o livro dos Juízes, o murmúrio dos rebanhos (Judic 5, 16), isto é, a suave sugestão dos demônios. Habita ou deita-se entre os confins aquele que não contempla a entrada e a saída da sua vida, mas prefere descansar no prazer da carne e na vaidade do mundo.
Segue-se: "Viu que o descanso" da celestial bem-aventurança "era bom, e que a terra" da eterna estabilidade "era ótima; abaixou o braço para carregar" o pobre Jesus, Filho de Deus. Carrega Jesus quando suporta pacientemente, por amor dele, tudo o que lhe acontece de adverso. Por isso diz o Eclesiástico: "Recebe tudo o que for ligado a ti, e segura-o mesmo na dor" (Eccli 2, 4). A pobreza carrega-o nos braços, a humildade, no peito e nos braços. Por isso diz-se nos Cânticos: "O meu amado é para mim um raminho de mirra, e morará entre os meus seios" (Cant 1, 12). Nesse diminutivo, "raminho", denota-se a humildade; a mirra designa a amargura da Paixão do Senhor. O coração fica entre os seios, como se a esposa dissesse: Eu carrego no coração o meu amado Jesus, raminho de mirra, isto é, humilde e crucificado, para que eu seja humilde de coração, e fixe meu corpo à cruz com ele. Portanto, a pobreza e a humildade levaram Jesus ao templo, quer dizer: todos os que veem ao templo da Jerusalém celeste, que não é feito por mãos de homens.
Ainda, a penitência e a obediência professam e bendizem. Por isso diz o Salmo: "A confissão e a beleza estão diante dele" (Ps 95, 6), falando do penitente, cuja confissão é beleza. Porque a confissão limpa a lepra do pecado e enfeita com a graça do Espírito Santo. Por isso diz o Salmo: "Vestiste confissão e decoro" (Ps 103, 2), isto é, os penitentes, que são limpos pela confissão e decorados com a graça. Segue-se: "A santidade e a magnificência estão na sua santificação" (Ps 95, 6), falando do obediente, que o Senhor santifica com a santidade da consciência na mortificação da própria vontade, e a magnificência da vida na execução da ordem alheia. Eis onde habita o rei das virtudes. Tem, pois, essas virtudes, e encontrarás o Deus de sabedoria e o Deus das virtudes, Jesus.
A ele, caríssimos irmãos, imploremos humildemente, para que edifique a casa dos nossos costumes nessas quatro colunas, para que ele possa habitar conosco e nós com ele. Conceda-no-lo aquele que é bendito pelos séculos. Amém.

Sacerdote Eternamente - Parte 14

SACERDOTE ETERNAMENTE
Dom Emmanuel Marie André

LIVRO SEGUNDO
COMO O MINISTÉRIO PODE SER DESNATURADO

CAPÍTULO VI
De que modo o Ministério é Desnaturado na Administração dos Sacramentos 


Dissemos mais acima (Livro I, cap. VII) qual é o papel dos sacramentos na economia da religião e, conseqüentemente, no ministério eclesiástico.

Uma vez que os sacramentos não dão as disposições necessárias para sua frutuosa recepção, é evidente que o ministério será desnaturado se aquele que administra os sacramentos não tiver toda a solicitude necessária para fazer nascer essas disposições, toda indispensável atenção para percebê-las quando efetivamente existentes, e toda firmeza para negar os sacramentos quando não existirem as disposições requeridas pelo próprio Deus.

Quão facilmente as pessoas imaginam hoje que têm as disposições para recepção de um sacramento, desde que sintam vontade de recebê-lo, ou tenham a complacência de aceitá-lo!

Não sei se esta norma é aceita por muitos. Mas é fora de dúvida que, onde ela se pratica, o ministério é de todo carente das condições imprescindíveis para que produza frutos.

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ANDRÉ, Dom Emmanuel Marie. Tratado do Ministério Eclesiástico.

27 de dezembro: São João Evangelista


SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA

1. Naquele tempo: Disse Jesus a Pedro: "Segue-me" (Jo 21, 19) etc.
Neste evangelho, duas coisas serão explicadas: a imitação de Cristo, e o amor deste para com o seu fiel.

I. DA IMITAÇÃO DE CRISTO
2. Imitação de Cristo, como está escrito: "Segue-me". Isso disse a Pedro; isso diz também a todo cristão: "Segue-me", nu, segue o nu, despojado, segue o despojado. Por isso diz Jeremias III: "Chamar-me-ás Pai, e não cessarás de seguir após mim" (Jer 3, 19). "Segue-me", portanto, larga a bagagem, porque, carregado, não consegues seguir a mim, que vou correndo. "Corri para a sede" (Ps 61, 5), isto é, para a salvação do homem, diz ele. Para onde correu? Para a cruz. Corre também tu após ele, e como ele carregou a sua cruz por ti, toma também tu a tua por ti mesmo. Por isso Lucas IX: "Se alguém quiser seguir-me, abnegue-se a si mesmo", na renúncia à própria vontade, "e tome a sua cruz", na mortificação da carne, "todo dia", isto é, continuamente, "e assim me siga" (Lc 9, 32). "Segue-me", portanto, "assim". E, se quiser vir a mim e encontrar-me, "segue", que em latim, "sequere", vem de "seorsum quaere", isto é, busca separadamente. Por isso falou aos discípulos em Marcos VI: "Vinte à parte, a este lugar deserto, e descansai um pouco. Porque havia muitos que iam e vinham, e não tinham nem tempo para comer" (Mc 6, 31). Ai! Quantos afetos e barulhos de pensamentos carnais vão e vem pelo nosso coração, de modo que nem temos tempo para comer o alimento da doçura eterna, e de sentir o sabor da contemplação interior. E, assim, diz o piedoso mestre: "Vinde à parte" da turba tumultuosa, "para este lugar deserto", isto é, para a solidão da mente e do corpo, "e descansai um pouco". Deveras "um pouco" porque, como diz o Apocalipse VIII: "Fez-se silêncio no céu, por cerca de meia hora" (Apoc 8, 1). "Quem me dará penas como a pomba" (Ps 54, 7) etc.
Por isso Oseias II diz: "Eis que eu o aleitarei, e conduzi-lo-ei para a solidão, e falarei ao seu coração" (Os 2, 14). Note-se que, nessas três palavras, apontam-se os três estados: incipientes, proficientes e perfeitos. O incipiente aleita-se, quando a graça o ilumina, para que cresça e aproveite de virtude em virtude; e então se o conduz, do barulho dos vícios, do tumulto dos pensamentos, para a solidão, isto é, para a quietude da alma; e aí, já perfeito, fala-se-lhe ao coração; isso se dá quando sente a doçura da inspiração divina, e suspende-se totalmente na alegria da alma. Ó quão grande é, então, a devoção, admiração e exultação no seu coração! A grandeza da devoção o eleva sobre si mesmo, a grandeza da admiração o conduz para cima de si mesmo, a grandeza da exultação o torna alheio a si mesmo. "Segue-me", pois.
Fala como uma mãe piedosa, que, quando ensina a criança a andar, mostra-lhe um pão ou uma maçã, dizendo: Vinde atrás de mim, e dar-te-ei isso. E, quando ela se aproxima, e quase o toma, a mãe afasta-se um pouco, e mostra a coisa, dizendo: Segue-me, se queres recebê-la. Algumas aves também tiram os seus filhotes dos ninhos, e ensinam-lhes o seu voo, e a seguir-lhes (cf. Deut 32, 11). Assim Cristo, para que o sigamos, mostra-se como exemplo, e promete um prêmio no reino.

3. "Segue-me", pois, porque eu conheço um bom caminho, pelo qual te conduzirei. Desse se fala nos Provérbios IV: "Mostrar-te-ei o caminho da sabedoria; conduzir-te-ei pelas veredas da equidade: quando entrares por elas, os teus passos não se estreitarão, e, correndo, não acharás tropeço" (Prov 4, 11-12). O caminho da sabedoria é o caminho da humildade; todo o mais é caminho da estupidez, posto que de soberba. Isso explicou-nos dizendo: "Aprendei de mim" (Mt 11, 29) etc. A vereda tem a largura de dois pés, de modo que não se pode passá-la a dois; é chamada, em latim, "semita", que vem de "semi iter", ou seja, meio caminho. As veredas da equidade são a pobreza e a obediência, pelas quais Cristo conduz o pobre e obediente com o seu exemplo. Nelas não há tortuosidade, mas tudo é equidade e retidão. Mas, vede que coisa admirável: sendo elas estreitas, diz-se que os passos, nelas, não se estreitam. A estrada do mundo é larga e espaçosa, cuja largura os mundanos, como bêbados, conseguem medir, porque para o bêbado toda largura é estreita. Porque a malícia tem angústia, ao passo que a pobreza e a obediência, naquilo mesmo que tiram, aí dão liberdade, porque a pobreza torna o homem rico, e a obediência, livre. Quem corre atrás de Jesus por essas veredas não tem o tropeço das riquezas ou da própria vontade.
"Segue-me", pois, e mostrar-te-ei "o que olho nenhum viu, nem ouvido ouviu, nem ninguém imaginou no seu coração" (1Cor 2, 9). "Segue-me, e dar-te-ei", como diz Isaías XLV, "os tesouros escondidos, e os mistérios dos segredos" (Is 45, 3); e no mesmo livro, LX: "Então verás e afluirás, e o teu coração admirar-se-á e dilatar-se-á" (Is 60, 5). Verás Deus face-a-face como ele é (cf. 1Cor 13, 12; 1Jo 3, 2); afluirás às delícias e riquezas da dupla estola da alma e do corpo; o teu coração admirará as ordens angélicas, as mansões dos bem-aventurados, e assim se dilatará de alegria, em voz de exultação e confissão. "Segue-me", pois.

II. DO SEU AMOR PARA COM O SEU FIEL
4. Seu amor para com o seu fiel, como está escrito: "Voltando-se Pedro" (Jo 21, 20). Quem segue deveras a Cristo quer que todos o sigam, e assim volta-se para o próximo pela solicitude da alma, devota oração e pregação da palavra. Isso significa o voltar-se de Pedro. O mesmo se diz no último capítulo do Apocalipse: "O esposo e a esposa", isto é, Cristo e a Igreja, "dizem: Vem. E quem ouve diga: Vem" (Apoc 21, 17). Cristo, pela inspiração, e a Igreja, pela pregação, dizem ao hoemm: "Vem". E quem os ouve, diga ao seu próximo: "Vem", isto é, segue Jesus.
"Voltando-se Pedro, viu aquele discípulo que Jesus amava, seguindo-o" (Jo 21, 20). Jesus ama o que o segue; por isso diz nos Números XIV: "O meu servo Caleb, que me seguiu, introduzirei na terra que cotornou, e a sua posteridade a possuirá" (Num 14, 24). "Que Jesus amava": assim se designa João, não porque Jesus amasse só ele, mas porque o amava mais que os outros. Amava também os outros, mas era familiar a esse. Deu-lhe o melhor da sua doçura, porque, sendo virgem quando foi escolhido por ele, virgem permaneceu; por isso confiou-se a sua Mãe. Também foi ele que reclinou-se sobre o seu peito durante a ceia. Isso foi um sinal de grande amor, porque só ele reclinou-se sobre o peito de Jesus, "no qual estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência" (Col 2, 3); nisso já se previa o quanto escreveria dos mistérios divinos, mais que os outros.

5. Note-se que Jacó reclinou-se sobre uma pedra, e João sobre o peito de Jesus. Aquele no caminho, esse na ceia. Jacó simboliza os peregrinos, e João, os bem-aventurados. Aqueles no caminho, esses na pátria. Diz-se no Gênesis XXVIII: Jacó, saindo de Bersabé, ia para Harão. Querendo descansar, reclinou a cabeça numa pedra e dormiu. Viu, em sonho, uma escada levantada, e anjos subindo e descendo por ela, e o Senhor no topo da escada (cf. Gen 28, 10-13). Jacó, ainda peregrino, ainda imerso em muitas tristezas, saindo de Bersabé, que quer dizer sétimo poço, isto é, a concupiscência do mundo, que não tem fim, assim como do sétimo dia não se lê que tenha tido fim, rumava para Harão, que quer dizer excelso, isto é, a Jerusalém celeste. Por isso diz, com Habacuc: "Subirei ao nosso povo que está em paz" (Hab 3, 16), que triunfou sobre o mundo.
E, porque quer repousar do trabalho da sua peregrinação, também reclina a cabeça sobre uma pedra e dorme. A cabeça é a alma, a pedra, a constância da fé; a escada erguida, a dupla caridade; os anjos são os homens justos, subindo a Deus pela elevação da alma, e descendo ao próximo pela compaixão da alma. O justo peregrino, portanto, para descansar, coloca a alma sobre a constância da fé. Por isso dizem os Provérbios XXX: “As lebrezinhas, povo fraco, que fazem a sua habitação na pedra” (Prov 30, 26). A lebrezinha, animal tímido, também coloca suas esperanças na pedra da fé, para aí descansar e dormir, e ver em si mesmo erguida a escada da caridade.
E note-se que por dois motivos o Senhor está no topo da escada, a saber: para sustentá-la e para receber os que sobem por ela. Sustenta, pois, ele o peso da nossa fragilidade, para que consigamos subir pelas obras de caridade; recebe os que sobem, para que com ele, eterno e bem-aventurado, sejamos eternos e bem-aventurados. E então, naquela ceia da eterna plenitude, reclinar-nos-emos, com João, sobre o peito de Jesus. O coração fica no peito, e ao amor no coração. No seu amor, portanto, reclinar-nos-emos, porque o amamos de todo o coração e de toda a alma, e nele encontraremos todos os tesouros da sabedoria e da ciência.
Ó amor de Jesus! Ó tesouro guardado no amor, sabedoria de inestimável sabor e ciência do conhecimento! “Serei saciado quando aparecer a vossa glória” (Ps 16, 15); e: “Isto é a vida eterna: que vos conheçam a vós, único Deus verdadeiro, e quem enviastes, Jesus Cristo” (Jo 17, 3). Ao qual sejam dados o louvor e a glória pelos séculos eternos. Amém.

III. SERMÃO ALEGÓRICO
6. "Uma grande águia, com asas grandes, grande distância entre os membros abertos, cheia de penas e variedade, vem ao Líbano, e contempla o cerne do cedro" (Ez 17, 3). Isso em Ezequiel XVII. A águia é assim chamada devido à agudeza de sua vista, e o bem-aventurado João, que, por sutil intuição da alma, elevou-se sobre si mesmo e viu o Filho Unigênito, que é no seio do Pai, o Verbo, que existia no princípio, e no-lo contou (cf. Jo 1, 18.1). "E nós sabemos que o seu testemunho é verdadeiro" (Jo 21, 24).
Por isso Ezequiel I: "Face de homem, e face de leão à direita, e face de boi à esquerda, e face de águia, acima desses quatro" (Ez 1, 10). À direita, a prosperidade, à esquerda, a adversidade. Mateus e Marcos, designados pelo homem e pelo leão, estiveram à direita, porque escreveram sobre a Encarnação e pregação de Cristo, nas quais ele foi próspero. Lucas, porém, é designado pelo boi, que costumava ser oferecido em sacrifício, porque começou tratando do sacerdócio, e o conduziu para ser imolado ao templo e altar da cruz, local da adversidade da Paixão. João é designado na águia, que voa mais alto do que as outras aves, porque ele revelou mais alto mistério que os demais, e por diz-se estar "acima desses quatro". Mas é algo de muito admirar que se diga "acima desses quatro", sendo ele um dos quatro. O motivo é que ele estava elevado acima de si mesmo. Deveras sobre si mesmo, porque falou acima do homem, e por isso é chamado "grande águia, de asas grandes". Conta-se quais eram as grandes asas dessa águia na leitura da Missa de hoje, Eclesiástico XV: "Abriu a sua boca no meio da Igreja" (Eccli 15, 5). Eis o que ele disse no Apocalipse: "E vi e ouvi a voz de uma águia que voava pelo meio do céu" (Apoc 8, 13), que simboliza a Igreja, em cujo meio, isto é, comumente a todos, "abriu a sua boca. E encheu-o do espírito de sabedoria e inteligência" (Eccli 15, 5). Eis duas grandes asas, com as quais voou até o mistério da divindade: "No princípio era o Verbo" (Jo 1, 1) etc.

7. Tinha "grande distância entre os membros abertos". As virtudes são como membros da alma, que se abrem quando se estendem para as obras de caridade. Concorda acerca disso o que é dito na leitura da Missa de hoje: "Quem teme a Deus faz o bem, e quem carrega a justiça dentro de si a abraça; e ela lhe virá ao encontro como uma mãe honrada, e como uma mulher em sua virgindade o receberá" (Eccli 15, 1-2). O bem-aventurado João, por ter temido a Deus com um temor filial e casto, faz o bem, isto é, estendeu-se para as obras de caridade. Isso fica mais claro lendo-se a sua epístola, na qual escreveu sobre essa caridade de modo tão eficaz quanto pôde. "Começou a fazer e a ensinar" (Act 1, 1). Ele também teve a justiça dentro de si, pois, como diz o Eclesiástico L, era "como um vaso de ouro maciço, ornado de toda pedra preciosa" (Eccli 50, 10). E, por que carregava dentro de si a justiça, isto é, a verdade do evangelho, por isso abraçou-a, em seus frutos.
O Senhor disse no evangelho: Quem abandonar pai, mãe, esposa, receberá o cêntuplo (cf. Mt 19, 29) etc. O bem-aventurado João abandonou mãe e esposa pelo Senhor; e o Senhor lhe deu não outra mãe senão a sua própria. Por isso foi dito: "Vir-lhe-á ao encontro como uma mãe honrada". Santa Maria, Mãe do Filho de Deus, rica em virtudes, honrada pelos privilégios das graças, veio ao encontro do bem-aventurado João ao pé da cruz: ela à direita e ele à esquerda permaneciam em pé; e aí, como uma mulher na sua virgindade, recebeu-o: a virgem recebeu o virgem. Por isso João XIX diz: "Vendo Jesus, em pé, a sua mãe e o discípulo que amava, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Então disse ao discípulo: Eis aí a tua mãe. E daquela hora em diante, o discípulo recebeu-a como 'sua'" (Jo 19, 26-27), isto é, "mãe" e refúgio. Ó peroláceo resplendor da virgindade do bem-aventurado João, que mereceu ser tomado como filho da Mãe do Filho de Deus, e recebê-la como sua!

8. Por isso, continua-se falando dessa virgindade: "Cheia de penas e variedade". Jó XXIX diz algo parecido: "Morrerei no meu ninhozinho, e multiplicarei os meus dias como a palma" (Job 29, 18). A ave constroi o seu ninho com penas para o lado de dentro, fazendo-o macio, e isso por dois motivos: para que os ovos não se machuquem nos gravetos, e para que os filhotes, sem penas, encontrem nas plumas calor e quietude. O ninhozinho do bem-aventurado João foi a consciência humilde. Perceba-se que se diz "ninhozinho" e não "ninho". Porque a virgindade foi conservada pela humildade. A virgem soberba não é virgem, mas corrupta. O diminutivo de "ninho" denota a humildade. O seu ninhozinho foi construído com a maciez das plumas, isto é, enfeitado com a suavidade da pureza virginal, nas quais não se feriram os ovos dos pensamentos, e os filhotes das obras tiveram proteção e quietude.
Essa águia foi "cheia de penas e variedade", porque, da pureza da mente, vai à bela variedade das obras. Bela variedade a dos lírios misturados com rosas. Por isso mencionam-se essas duas flores na leitura da missa: "Vestiu-o com a estola da glória", quanto à pureza da virgindade, “ajuntou para ele um tesouro de formosura e exultação” (Eccli 15, 6), quanto à magnificência das obras. E, se não terminou a vida pelo martírio, mesmo assim foi mártir, visto que foi jogado em óleo fervente, exilado para Patmos, bebeu veneno em Éfeso, e ainda assim saiu, por graça de Deus, ileso, porque “os seus dias foram multiplicados como os da palma”. Nem o gelo nem o calor tiram a verdura da palma; assim o bem-aventurado João não perdeu a constância da alma nem a virgindade do corpo, quer pelas perseguições, quer pelas tentações; e assim morreu no seu ninhozinho, porque nela perseverou até a morte. Ou podemos chamar seu ninhozinho o sepulcro, no qual, celebrados os divinos mistérios, desceu vivo no dia de hoje, e, como se quisesse dormir, deitou-se.

9. Segue-se: “Veio ao Líbano, e tirou o miolo do cedro”. O monte do Líbano, que quer dizer brancura, é a pátria celeste, cujos príncipes são mais brancos do que a neve (cf. Lam 4, 7). E, no Apocalipse III: “Andarão comigo de branco, porque são dignos” (Apoc 3, 4). O cedro, árvore sublime (cf. 4Reg 19, 23; Is 2, 13) é a altura da divindade. Porque a águia voou, com suas grandes asas, para aquela pátria celeste, e contemplou o cerne do cedro, quando disse: No princípio era o Verbo etc. Ou então: o cedro imperecível é a humanidade de Jesus Cristo, que não conheceu a corrupção, e cujo cerne é a divindade. Contemplou, portanto, o cerne do cedro, e no-lo contou, dizendo: “O Verbo se fez carne, e habitou entre nós” (Jo 1, 14). O mesmo é dito na leitura da Missa: “Alimentou-o com o pão da vida e inteligência, e deu-lhe a beber a água da sabedoria salutar” (Eccli 15, 3). Alimentar-se com o pão da vida, beber a água da sabedoria nada mais é que contemplar o cerne do cedro. Roguemos, pois, ao bem-aventurado João, para que, por suas preces, conceda-nos o Senhor desprezar as coisas terrenas, voar às celestes, para que mereçamos ser restaurados pelo cerne do cedro. Conceda-no-lo aquele que é bendito pelos séculos dos séculos. Amen.

IV. SERMÃO ALEGÓRICO
10. "Grande águia" etc. Baseados nessa passagem, três coisas se hão de notar, do ponto de vista moral: a fé firme do penitente ou do homem justo, a esperança certa, e a caridade perfeita.
Da primeira, como está escrito: "Grande águia, com asas grandes, de longos membros". A águia é assim chamada devido à agudeza da sua vista ou do rostro, o qual, quando não consegue mais encontrar comida, bate numa pedra, e então diz-se que é renovado. "Renovar-se-á, como a da águia, a tua juventude", diz o Salmo (Ps 102, 5). Tanta é a agudeza da sua vista que, estando no ar, vê os peixinhos na profundidade da água. Assim o penitente, assim o católico, com o olho do coração, iluminado pela fé - porque o quanto creres tanto verás -, vê as coisas ocultas de Deus, e com a boca professa-o publicamente. Por isso o Apóstolo fala, sobre a agudeza da vista e do rostro: "O coração crê para a justiça, e a boca professa para a salvação" (Rom 10, 10). Águia deveras grande - porque grande e agudo é o olho da fé - é aquela que vê o Filho de Deus no seio do Pai descendo ao ventro da Virgem, nascido no estábulo, reclinado no presépio, envolvido num paninho, apresentado no templo com o sacrifício dos pobres, fugindo para o Egito, peregrino no mundo, montado num jumentinho, escarnecido pelo povo, flagelado, cuspido, bebendo fel e vinagre, suspenso nu no patíbulo, sepultado, libertando os cativos dos infernos, ressurgindo do sepulcro, ascendendo ao céu, enchendo os apóstolos do Espírito Santo, retribuindo a cada um segundo as suas obras no juízo. Eis a "grande águia", porque tem vista e rostro agudos. Sobre isso fala o Apóstolo: "A nossa boca está aberta para vós, ó coríntios" (2Cor 6, 11). O que cria no fiel coração, isso fazia patente com a boca, pregando.
Segue-se: "Com asas grandes". Das mesmas se fala no Apocalipse XII: "Foram dadas à mulher duas grandes asas, para que voasse ao deserto, para o seu lugar" (Apoc 12, 14). A mulher é a alma penitente, da qual Isaías LIV declara: "Mulher abandonada e de espírito melancólico, o Senhor te chamou" (Is 54, 6). Essas duas asas são a contrição e a confissão, com as quais voa para o deserto da penitência, onde encontra um lugar de paz e quietude. Note-se que se diz dessas asas que são grandes. Porque as asas da verdadeira contrição têm quatro grandes penas. A primeira é a amargura pelos delitos passados; a segunda, o firme propósito de não recair; a terceira, perdoar de coração todas as injúrias; a quarta, reparar o que fez contra cada pessoa.
Na asa da confissão também há quatro. A primeira é a humilhação da alma e do corpo perante o sacerdote. Está escrito que Maria sentava-se aos pés do Senhor (cf. Lc 10, 39); e em Isaías XLVII: "Desce, senta no pó, virgem filha da Babilônia; senta-te na terra" (Is 47, 1). "Desce" pela humildade da alma, "senta no pó" ou na "terra" da humilhação do corpo. A segunda é a acusação geral e singular da própria iniquidade: "Confessarei contra mim", diz o Salmista (Ps 31, 5); e ainda: "Fui eu que pequei, eu que agi iniquamente" (2Reg 24, 17). A terceira é a revelação das circunstâncias, que são: O que, a quem, onde, por que meios, com que frequencia, por que, como, quando (cf. Dom I in Quadrag., sermo alter, II). A quarta é o recebimento voluntário e devoto da penitência imposta pelo sacerdote, para que possa dizer, com Samuel: "Fala, Senhor, porque o teu servo escuta" (1Reg 3, 9).
Por isso fala-se, ainda, sobre a satisfação da penitência: "De membros longos". A mão, que antes era fechada para dar esmola, já se estende amplamente. Por isso, em Marcos III: Havia na sinagoga um homem que tinha a mão seca. O Senhor falou-lhe: Estende a tua mão. E, estendendo, ficou-lhe curada a mão (cf. Mc 3, 1. 5). Os joelhos estavam débeis e como que contraídos; os pés não faziam mais a sua função, porque a preguiça os privara disso; como dizem os Provérbios XXVI: "Diz o preguiçoso: A leonesa está na estrada e o leão nos caminhos. Como a porta gira sobre o seu eixo, assim o preguiçoso no seu leito" (Prov 26, 13-14); mas agora corre à oração, dobra os joelhos. Eis a "grande águia, com membros grandes".

11. A seguir, da segunda: "Cheia de penas e variedade". Semelhantemente em Jó XXXIX: "Acaso a águia se erguerá por tua ordem, e porá seu ninho nas alturas?" (Job 39, 27). O penitente ou religioso eleva-se das coisas terrenas com as supracitadas asas, ao preceito do Senhor, que diz: "Vinde após mim" (Mt 4, 19) etc.; e ainda: "Deixa que os mortos sepultem seus mortos" (Mt 8, 22); "e nas alturas", isto é, nos prêmios da vida eterna, "porá o seu ninho", isto é, a sua esperança. Esse ninho ela constroi com as penas da paciência e benignidade. Com elas construíra-se o ninho Jó, quando dizia XIII: "Mesmo que me mate, esperarei nele" (Job 13, 15). É fácil sofrer, se não falta paciência (Ovídio). "Cheia de penas e variedade." Quando a variedade de tentações e perseguições surge, o homem justo constroi o seu ninho com penas de paciência, recobre a si mesmo e aos filhotes, que são suas obras, e assim, em sua paciência, possuirá sua alma (cf. Lc 21, 19).

12. Segue-se da terceira: "Veio ao Líbano e contemplou o cerne do cedro". O cedro, a cujo odor fogem as serpentes, é a caridade, pela qual fogem do coração do justo as serpentes da inveja, ira, rancor e ódio. Por isso o Apóstolo, na primeira epístola aos Coríntios XIII, escreve: "A caridade não é invejosa", porque, por não desejar nada no presente mundo, não sabe invejar os sucessos alheios; "não age incorretamente", porque, dilatando-se no amor únicamente de Deus e do próximo, ignora tudo o que foge à retidão; "não pensa mal" (1Cor 13, 4-5), porque, consolidando o amor da pureza da alma, de modo a desarraigar todo ódio, não pensa em coisas impuras; e diz-se que vem ao monte Líbano, que quer dizer brancura, ao qual o justo vem e contempla o cerne do cedro. O cerne é a doçura da contemplação, ou a compaixão do próximo; quando se lança no amor de Deus, sente a sua doçura; quando se estende ao amor do próximo, então toma o cerne da compaixão.
Roguemos, pois, ao Senhor Jesus Cristo, que nos dê asas de contrição e confissão, para voarmos dos nossos pecados, colocar o ninho da esperança no céu, e tomar o cerne da dupla caridade.
Conceda-no-lo aquele que é bendito pelos séculos. Amém.

Traduzido por nós de http://www.santantonio.org/portale/sermones/indice.asp?ln=LT&s=0&c=0&p=0

26 de dezembro de 2010

Domingo na Oitava do Natal (Parte 1/5)

Sermão de Santo Antônio de Pádua (Parte 1/5)

TEMAS DO SERMÃO
Evangelho do primeiro domingo após o Natal do Senhor: "José e Maria...", que é dividido em três partes.
No primeiro tema do sermão, sobre a graça e a glória de Jesus Cristo, como está escrito: "Aprende onde está a sabedoria". O primeiro tema, sobre a pobreza, como está escrito: "Deus fez-me crescer". Ainda, sobre a miséria dos ricos, como está escrito: "Deus te golpeará com pobreza". Sobre a humildade, condenação dos soberbos e exaltação dos humildes, como está escrito: "Olhando o Senhor pela coluna de nuvem". Sobre a útil tristeza dos penitentes, como está escrito: "O espírito triste". Sobre a obediência, como está escrito: "Fala, Senhor". E, por fim, para os penitentes e religiosos, como está escrito: "Issacar é um asno forte".
No segundo tema, sobre a soberba e a humildade do coração, como está escrito "Depôs os poderosos". Sobre a utilidade da ruína para os pecadores convertidos, como está escrito: "Haverá ruína para o cavalo". Sobre a ressurreição da alma dos pecados, como está escrito: "A mão do Senhor pôs-se sobre mim"; e sobre a propriedade das prisões. Ainda, contra os amantes das coisas temporais, como está escrito: "Estendi as minhas mãos". Sobre o duplo parto de Santa Maria, como está escrito: "Antes de dar à luz"; e a Paixão do seu Filho, como está escrito: "Lembra-te da pobreza". Por fim, sobre as quatro estações do ano e o seu significado, como está escrito: "Quando chegará a plenitude dos tempos".
No terceiro tema, sobre a Anunciação ou o Natal do Senhor, como está escrito: "Quando tudo estava envolvido num grande silêncio". E um sermão moral sobre a penitência, como está escrito: "Quando tudo estava envolvido num grande silêncio".

EXÓRDIO. SOBRE A GRAÇA E A GLÓRIA DE JESUS CRISTO
1. Naquele tempo: "José e Maria, mãe de Jesus, estavam admirados com o que diziam sobre ele" (Lc 2, 33).
Disse Baruc: "Aprende onde está a sabedoria, onde está a prudência, onde está a virtude, onde está a inteligência, para que saibas tanto onde está a longa vida e sobrevivência, quanto a luz dos olhos e a paz" (Bar 3, 14). Diz o Salmo: "O Senhor dará a graça e a glória" (Ps 83, 12); a graça no presente, e a glória no futuro. As primeiras quatro premissas referem-se à graça, e as últimas quatro, à glória. A sabedoria, palavra que vem do latim, "sapere", sentir sabor, está no gosto da contemplação; a prudência, em precaver-se das ciladas; a virtude, em suportar as adversidades; a inteligência, em recusar os males e escolher os bens. Por outro lado, a longa vida será a dos santos na eterna bem-aventurança; por isso: "Eu vivo, e vós viveis" (Jo 14, 19); a sobrevivência, na fruição da alegria; por isso: "Eu disponho do reino a vosso favor, para que comais e bebais sobre a minha mesa" (Lc 22, 29-30) etc.; a luz dos olhos, na visão da humanidade glorificada de Cristo; por isso, em João: "Pai, os que me deste, quero que, onde eu esteja, eles estejam comigo, para verem a minha glória, que me deste" (Jo 17, 24); a paz, na glorificação do corpo e da alma; por isso Isaías diz: "Conservarás a paz, porque em vós, Senhor, temos esperado" (Is 26, 3). Sobre a longa vida e a luz dos olhos fala-se no Salmo: "A fonte da vida está junto de vós, e na tua luz veremos a luz" (Ps 35, 10); sobre a paz e a sobrevivência: "Que pôs os teus fins em paz, e te sacia com a flor do trigo" (Ps 147, 14). A flor do trigo é a fruição da alegria da humanidade de Jesus Cristo, com a qual se saciarão os santos.
Ou então: Aprende, ó homem, a amar Jesus, e então aprenderás onde está a sabedoria etc. Ele é a sabedoria; por isso, nos Provérbios, lê-se: "A sabedoria construiu para si uma casa" (Prov 9, 1). Ele é a prudência; por isso disse Jó: "A sua prudência", isto é, a prudência do Pai, "golpeou o soberbo" (Job 26, 12), isto é, o diabo. Ele é a virtude, como disse o Apóstolo: É a virtude de Deus e a sabedoria de Deus (cf. 1Cor 1, 24). Nele está toda a inteligência, a cujos olhos todas as coisas são manifestas (cf. Hebr 4, 13). Ele é a vida: "Eu sou o caminho, a verdade e a vita" (Jo 14, 6). Ele é a sobrevivência, posto que é o pão dos anjos, a refeição dos justos. Ele é a luz dos olhos: "Eu sou a luz do mundo" (Jo 8, 12). "Ele é a nossa paz, que de dois fez um" (Eph 2, 14).
Aprende, ó homem, essa sabedoria, para que saboreies; essa prudência, para que te cuides; essa virtude, para que tenhas sucesso; essa inteligência, para que conheças; essa vida, para que vivas; essa sobrevivência, para que não desfaleças; essa luz, para que vejas; essa paz, para que descanses. Ó bom Jesus, onde vos procurarei? Onde vos encontrarei? Onde, encontrando a vós, encontrarei esses bens? Possuindo-vos, possuirei esses bens? Procura e acharás. E, pergunto, onde mora ele? Onde se apascenta ao meio-dia? (cf. Cant 1, 6) Queres ouvir onde? Dize, peço-to. Em meio a José e Maria, a Simeão e Ana, encontrarás Jesus. Por isso, no evangelho de hoje, lê-se: "José e Maria, mãe de Jesus, estavam admirados" etc.

2. Nesse evangelho, essas quatro pessoas se propõem, e veremos o que cada uma significa do ponto de vista moral. José quer dizer "aquele que acrescenta"; Maria, "estrela do mar"; Simeão, "aquele que ouve a tristeza"; Ana, "aquela que responde". José simboliza a pobreza; Maria, a humildade; Simeão, a penitência; Ana, a obediência. Dissertaremos sobre cada um.

I. SOBRE A POBREZA, HUMILDADE, PENITÊNCIA E OBEDIÊNCIA
3. José acrescenta (cf. Gen 49, 22). Quando o homem miserável dá-se às delícias, dilata-se nas riquezas, então decresce, porque perde a liberdade. O cuidado com as riquezas fá-lo servo, e enquanto serve essas coisas, diminui para si, dentro de si mesmo. Infeliz da alma que é menor do que aquilo que possui: é menor quando se submete às coisas, ao invés de submetê-las a si. Essa submissão servil é mais óbvia quando se possui com amor, e com dor se perde. Porque essa dor é grande servidão. E o que mais seria? Não há verdadeira liberdade senão na pobreza voluntária. Esse é o José, que acrescenta, e diz, no Gênesis: "Deus me fez crescer na terra da minha pobreza" (Gen 41, 52). Na terra da pobreza, diz ele, e não da abundância, "Deus me fez crescer": cresce naquela, e decresce nessa. Por isso, o segundo livro dos Reis diz que "Davi, aproveitava e ficava cada vez mais robusto, enquanto a casa de Saul decrescia todo dia" (2Reg 3, 1). Davi, que diz no Salmo: "Eu sou mendigo e pobre" (Ps 39, 18), "aproveita como a luz resplandescente, e cresce até o dia perfeito" (Prov 4, 18), e robustece-se cada vez mais, porque a pobreza alegre e voluntária rendeu-lhe essa força. Por isso, diz Isaías: "O espírito dos fortes", isto é, dos pobres, "é como um turbilhão que empurra a parede" (Is 25, 4) das riquezas. As delícias e riquezas prendem e dissolvem. Por isso, diz Jeremias: "Até quando te dissolverás nas delícias, ó filha vagabunda?" (Jer 31, 22).
A casa de Saul, que quer dizer abusador, isto é, os ricos deste mundo, que abusam dos bens e dons do Senhor com os apetites do seu corpo, decresce todo dia. Por isso disse Moisés, no Deuteronômio: "O Senhor te castigará com pobreza, febre, frio, ardor, agitação, ar insalubre, e gosto ruim na boca, e serás perseguido até perecer" (Deut 28, 32). O senhor castiga, isto é, permite que castiguem, o rico deste mundo com pobreza, porque sempre quer ter mais; febre, porque tortura-se e dói-se vendo a felicidade alheia; frio, isto é, temor de perder as coisas adquiridas; o ardor de adquirir o que não possui; a agitação da gula; o ar insalubre da má fama; o gosto ruim da luxúria. É assim que decresce a casa de Saul. A casa de Davi, porém, mendigo e pobre, cresce de virtude em virtude na terra da sua pobreza.

4. A seguir, sobre a humildade. Maria, estrela do mar. Ó humildade! Estrela radiante, que ilumina a noite, guia até o porto como uma chama coruscante, e mostra o rei dos reis e Deus, que diz: "Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração" (Mt 11, 29). Quem não tem essa estrela "é cego e míope" (2 Pt 1, 9), a sua barca será destruída pela tempestade, e ele submergirá em meio às ondas. Por isso se diz, no Êxodo, que "Olhando o Senhor, pela coluna de nuvem e fogo, para os exércitos dos egípcios, matou o seu exército, e virou as rodas dos carros, e eles afundaram. Os filhos de Israel, porém, passaram a pé enxuto pelo meio do mar, e as águas dele ficaram como muros, à direita e à esquerda" (Ex 14, 24-25. 29). Os egípcios, que a nuvem tenebrosa obnubilava, são os ricos e poderosos deste século, que a fumaça da soberba põe em trevas, os quais o Senhor mata; e vira-lhes as rodas dos carros, isto é, a dignidade e glória daqueles que giram pelas quatro estações do ano; e os afunda no fundo do inferno. Os filhos de Israel, porém, iluminados pelo resplendor do fogo, são os penitentes e pobres de espírito, iluminados pelo resplendor da humildade; a pé enxuto, eles passam pelo mar deste mundo, cujas águas, isto é, amargas inundações, são-lhes como muros, porque eles se armam e defendem-se da prosperidade da direita e da adversidade da esquerda, de modo a não serem elevados pelo prestígio popular, nem precipitados pela tentação da carne.
Sobre isso, fala o Deuteronômio: "Mamarão das inundações do mar como do leite" (Deut 33, 19). Note-se que ninguém pode mamar nada, se não o apertar com os lábios. Os que têm a boca aberta no ganho de dinheiro, na negociação da vanglória, no favor popular, não conseguem mamar das inundações do mar. É difícil separar os lobos do cadáver, as formigas da semente, as moscas do mel, os beberrões do vinho, as meretrizes do prostíbulo, os comerciantes do mercado. Salomão, nos Provérbios, disse algo semelhante: "O provérbio é o seguinte: O adolescente está no seu caminho; mesmo envelhecendo, não sairá dele" (Prov 22, 6). Só os humildes, que fecham seus lábios ao amor das coisas temporais, mamam das inundações do mar como do leite.
Ó estrela do mar! Ó humildade de coração, que convertes o mar amargo e impróprio em doce e formoso leite! Ó quão doce é para o humilde a amargura! Quão leve a tribulação, que suporta pelo nome de Jesus! As pedras foram doces para Estêvão, a grelha para Lourenço, os carvões ardentes para Vicente: por Jesus, mamaram as inundações do mar como leite.
Na palavra "mamar", nota-se a avidez com deleitação. Só a humildade sabe mamar das tribulações e dores com avidez e deleitação. Por isso, nos Cânticos: "Quem te dará a mim, meu irmão, mamando nos peitos de minha mãe?" (Cant 8, 1). Fala-se aí de três pessoas: a mãe, a irmã e o irmão. A mãe é a penitência, que tem dois seios: a dor da contrição, e a tribulação da satisfação; a irmã é a pobreza; o irmão, o espírito de humildade. Diz, pois, a irmã pobreza: Quem me te dará dará, ó meu irmão, espírito de humildade, para que com avidez mames nos seios de nossa mãe? Eis o irmão e a irmã, José e Maria, o esposo e a esposa, a pobreza e a humildade. "Quem tem esposa é esposo" (Job 3, 29). Bem-aventurado o pobre, que toma a humildade como sua esposa.
Traduzido por nós de: http://www.santantonio.org/portale/sermones/indice.asp?ln=LT&s=0&c=0&p=0

Sacerdote Eternamente - Parte 13

SACERDOTE ETERNAMENTE
Dom Emmanuel Marie André

LIVRO SEGUNDO
COMO O MINISTÉRIO PODE SER DESNATURADO

CAPÍTULO V
De que modo o Ministério é Desnaturado Quanto à sua Segunda Parte: A Pregação 


Há mais de um modo de desnaturar o ministério, no que concerne à pregação da palavra de Deus.

Antes de mais nada, desnatura-se o ministério quando simplesmente se deixa de pregar, merecendo-se então as palavras que o Espírito Santo aplicava a pastores por demais negligentes aos quais chamava de: canes muti, non valentes latrare (cães mudos, incapazes de ladrar — Is 56,10).

O Senhor se referia assim às sentinelas de Israel, homens desatentos e ignorantes, cães que não sabem latir, homens cujos olhos só estão abertos para a vaidade, homens sempre adormecidos que só amam seus próprios sonhos: Speculatores ejus coeco omnes, nesciarunt universi: Canes muti, non valentes latrare, videntes vana, dormientes, amantes somnia (Esses vigias são todos cegos, ignoram tudo; são cães mudos, incapazes de ladrar, interessados em coisas vãs, dorminhocos, amantes do sonho — Is 56,10).

A tais palavras do Espírito Santo nada há que acrescentar.

Em seguida, desnatura-se o ministério quando se prega como palavra de Deus o que não é palavra de Deus. Eis o que o Senhor diz a Jeremias:

Falso prophetae vaticinantur in nomine meo; non misi esos et non praecepi eis, neque locutus sum ad eos; visionem mendacem et divinationem et fraudulentiam cordis sui prophetant vobis (profetas que falsamente profetizam em meu nome; não os enviei, não os instruí, nem lhes falei; visão mentirosa, fantasia, fraude, ilusão de seu próprio coração, eis o que eles profetizam — Jer 14,14).

Enfim, mesmo pregando a palavra de Deus, poder-se-á fazê-la sofrer certas alterações como as que São Paulo tinha em mente quando chamava certos pregadores de corruptores, falsificadores, adulteradores da palavra de deus: Adulterantes verbum Dei (2 Cor 2,17 e 4,2)(7).

Adulteram a palavra de Deus, manejando-a dolosamente, todos quantos não a professam tal como lhes foi transmitida, íntegra, pura e sincera, mas de mistura com sabedoria profana ou com doutrina judaica, isto é, com deturpações e erros. Ou então se transmitindo a palavra de Deus deixam de visar à glória de Deus para buscar vantagens pessoais, e querendo agradar os homens acomodam às suas terrenas paixões a palavra de Deus.

Para concluir este capítulo, lembramos que a palavra de Deus deve ser pregada com o Espírito de Deus; e o Espírito de Deus não estará conosco se não formos homens de oração. Isso faz-nos ver mais uma vez como todo ministério está na dependência da oração, que São Pedro colocou antes de tudo mais: Nos vero orationi et ministério Verbi instantes erimus (At 6,4).

(8): Na primeira dessas passagens, São Paulo diz: Kapeleuontes, e na segunda: dolountes. A primeira designa o trabalho dos mercadores que introduzem substâncias estranhas em suas mercadorias (p. exp. os mercadores de vinho). A segunda palavra, dolountes, designa toda espécie de falsificação ou adulteração. 

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ANDRÉ, Dom Emmanuel Marie. Tratado do Ministério Eclesiástico.

26 de dezembro: Santo Estêvão, Protomártir


Sermão de Santo Antônio de Pádua
1. Naquele tempo: "Dizia Jesus às turbas de judeus: Eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas" (Mt 23, 1. 34) etc. Neste evangelho, duas coisas se hão de notas: a perseguição dos justos e a comparação de Cristo com a galinha.

I. DA PERSEGUIÇÃO DOS JUSTOS
2. Perseguição dos justos, como consta: "Eis que eu envio" etc. Nesta primeira cláusula, do ponto de vista moral, será demonstrado como os mundanos e carnais destroem em si ou repelem de si as muitas inspirações da divina graça.
"Dizia, pois, às turbas de judeus." Os judeus, que amavam as coisas transitórias, pelas quais tanto trabalhavam, são os mundanos, dados à carne, que, como diz o livro dos Juízes XII, não conseguem dizer "Scibboleth", que quer dizer espiga ou grão, mas dizem "Sibboleth", isto é, palha (cf. Judic 12, 6). Buscam a palha e em palha se transformam, queimando no eterno fogo.
Diz-se-lhes: "Eis que eu vos envio profetas, sábios e escribas". Note-se que, nessas três pessoas, designa-se a tríplice inspiração da divina graça. Os profetas são o temor do juízo e o horror do inferno, que Deus envia às almas pecadoras, para profetizar-lhes o terrível juíz e a vingadora geena. Por isso Naum I escreve: "Quem permanecerá em pé diante da face da sua indignação? E quem resistirá, na ira do seu furor? A sua indignação se espalhou como o fogo, e as pedras foram derretidas por ele" (Nah 1, 6). E Joel II: "Diante da sua face há um fogo devorante, e após ele uma chama ardente" (Joel 2, 3). Desses profetas diz o Senhor, em Jeremias XLIV: "Mandei-vos os meus servos profetas, levantando de noite e enviando, e dizendo: Não façais a palavra da abominação desse modo. E não ouviram, sem inclinaram seu ouvido, para que fossem convertidos dos seus males" (Jer 44, 4-5). O Senhor levanta à noite e envia profetas, quando, mesericordiosamente, incute o temor do juízo e o horror do inferto nas almas que estão na noite do pecado. Mas o infeliz não recebe a inspiração, nem inclina o ouvido da obediência, para converter-se dos males à penitência.
Do mesmo modo, "sábios" são aquelas divinas inspirações que ordenam os pensamentos, ponderam as palavras, decoram as obras, harmonizam a vida, e tudo dispõem retamente. Quem aprender com esses sábios tornar-se-á sábio. Deles diz o Eclesiástico VIII: Não desprezes o discurso dos sábios, e presta atenção nos seus provérbios; aprende a doutrina e a inteligência deles (cf. Eccli 8, 9-10). A sua gloriosa escola, a sua feliz doutrina, louvável disciplina, que instruem os costumes e destroem os vícios.
E ainda "escribas", que são as devoções da alma, que no livro da memória escrevem a imundície da nossa concepção, a vileza do nascimento, a malícia da iniquidade, a miséria da peregrinação, a brevidade do tempo, a lembrança da morte. Lê essa escritura da verdade; estuda nesse livro; no qual, como diz Ezequiel II, estão as lamentações, os cantos e ais (cf. Ez 2, 9). As lamentações da imundície da concepção e da vileza do nascimento; o canto lúgubre da malícia da iniquidade e da miséria da peregrinação; os ais da brevidade do tempo e da lembrança da morte. Eis os profetas que o Senhor misericordioso e piedoso vos envia todos os dias, para incutir-vos a dor, os sábios, para instruir os costumes, e os escribas, para pôr-vos na memória o estado da vida.

3. Mas os ingratos Judeus, isto é, os amadores das coisas temporais, com tantos males retribuem os tantos benefícios que receberam. "E, deles, matareis e crucificareis uns, e flagelareis outros nas vossas sinagogas" (Mt 23, 34). Relacionemos cada um. Matarão os profetas, crucificarão os sábios e flagelarão os escribas. Os soberbos e vangloriosos matarão os profetas; os gulosos e luxuriosos crucificarão os sábios; os avaros e usurários flagelarão os escribas. A soberba e a vanglória matam no homem o terror do juízo e o horror do inferno. Por isso, hoje, Estêvão diz aos Judeus, Atos VII: "Dura cerviz," eis a soberba, "e incircuncisos de coração e ouvidos," eis a vanglória: não querem entender nem ouvir a não ser o que agrada; "vós sempre resistis ao Espírito Santo, como os vossos pais. Que profeta não perseguiram os vossos pais? E mataram aqueles que lhes preanunciavam o advento do Justo" (Act 7, 51-52). Assim os matam em si mesmos, porque preanuciam sobre o advento em vistas ao juízo.
Os gulosos e luxuriosos crucificam e afligem os sábios; são aqueles de pensamento corrompido, palavras lascivas, obras dissolutas, costumes indecentes. Por isso dizem eles, Sabedoria II: "Enchamo-nos de vinho precioso e unguentos; e a flor do tempo não passe para nós. Coroemo-nos de rosas, antes que murchem; não haja nenhum prado que não seja transitado pela nossa luxúria" (Sap 2, 7-8).
Os avaros e usurários flagelam os escribas nas sinagogas, isto é, nas suas consciências, onde estão os tronos e a sinagoga de Satanás (cf. Apoc 2, 9. 13). Os infelizes não atentam para o estado, entrada e saída das suas vidas. Na entrada, nem bolsa nem dinheiro, na saída, pobre estopa e saco; na entrada, nus, na saída, envolvidos com curto pano. E de onde tudo isso para eles? Da rapina e da usura. Por isso escreve Habacuc II: "Ai daqueles que multiplicam o que não é seu! Até quando aumenta para si uma grande dívida?" (Hab 2, 6). Faz como o besouro, que junta muito esterco e faz com ele, com grande trabalho, uma bola; mas, passando logo o jumento, põe a pata em cima do besouro e da bola, e, num momento, são destruídos aquele e aquilo em que trabalhou o dia inteiro. Assim o avaro ou usurário, junta o dia todo o esterco do dinheiro, trabalha o dia todo, mas, inesperadamente, o diabo o estrangula. E assim a alma é dada ao demônio, a carne é dada aos vermes e o dinheiro é dado aos parentes.

4. Segue-se: "E sereis perseguidos de cidade em cidade" (Mt 23, 34). Ai! Não basta a miséria de extinguir ou repelir em si a inspiração da divina graça, mas, perseguindo, a expulsam também dos seus filhos, esposas e outros, como de cidade em cidade. Por exemplo: Se o filho do usurário é assaltado pelo temor do juízo ou da pena do inferno, e assim propõe viver honestamente e chorar a miséria desta vida, o seu pai, percebendo-o, persegue nele esta graça com tudas as suas posses; e assim faz com a filha, a esposa e a família.
"Para que caia sobre voz todo o sangue dos justos", isto é, a devida vingança pelo derramamento do sangue, "do sangue do justo Abel", que quer dizer "luto", "até o sangue de Zacarias", que quer dizer "aquele que se lembra de Deus", "filho de Baraquias" (Mt 23, 35), que quer dizer "bênção do Senhor". Eis quantos males impetram os homicidas! Matam em si e nos seus o luto da penitência e a memória da Paixão do Senhor, que como bênção foi dada por Deus Pai ao mundo inteiro. "O qual matastes entre o templo e o altar" (Mt 23, 35), isto é, no átrio do templo. Dele, o Apocalipse XI fala: "Joga fora o átrio, que está fora do templo, e não passe por ele, porque foi dado aos gentios" (Apoc 11, 2), isto é, àqueles que vivem como pagãos. O templo é a Igreja triunfante; o altar, a militante; o átrio, a vaidade mundanam na qual é assassinada a memória da Paixão do Senhor.

II. DA COMPARAÇÃO DE CRISTO COM A GALINHA
5. Comparação de Cristo com a galinha, como está escrito: "Jerusalém, Jerusalém" (Mt 23, 37). [Jesus] chora sobre os homens, e não sobre as pedras, afetado de piedade. "Que matais os profetas", os profetas que anunciaram o Senhor, "e os apedrejas" (Mt 23, 37). É devido a essas palavras que esse evangelho é lido no dia de hoje, no qual o bem-aventurado Estêvão foi apedrejado pelos judeus, reprovando cuja dureza - "Dura cerviz!", disse ele (Act 7, 51) -, suportou a dureza das pedras. Mas: Alegra-se a paciência na dureza (Lucano). Ontem nasceu o Senhor, hoje o seu servo é apedrejado; ontem o rei foi envolvido em panos, hoje milhares despojam-se da veste corruptível; ontem o Salvador foi deitado num presépio, hoje Estêvão é colocado no céu. [Estêvão] quer dizer "regra", "coroado" ou "observador". O seu exemplo é nossa regra: "Ajoelhando-se, orou pelos que o apedrejavam: Senhor, não lhes imputeis este pecado" (Act 7, 60); coroado pelo próprio sangue; observador do Filho de Deus: Vejo os céus abertos, e Jesus à direita de Deus (cf. Act 7, 56).
Segue-se: "Todos os dias quis reunir os teus filhos, como a galinha reúne os seus pintinhos debaixo de suas asas, e não quiseste" (Mt 23, 37). Como se dissesse: Eu quis e tu não quiseste, e tudo o que congreguei, por minha vontade sempre o fiz, fi-lo apesar de não o quereres, porque sempre foste ingrata.

6. Em outro sentido. O Senhor reprova a alma ingrata: "Jerusalém, Jerusalém". Que quer dizer "temor perfeito", isto é, consumado, ou "temerá perfeitamente". Uma casa é chamada imperfeita antes que esteja acabada. Note-se que o nome "Jerusalém" é repetido duas vezes, porque a alma infeliz, que matou os profetas em si mesma, como foi dito acima, duas coisas temerá: verá o juíz irado acima de si, e a poderosa e ardente geena abaixo de si; e então temerá perfeitamente. Mas agora não teme, porque nesse dia [não quer conhecer] o que é para a sua paz (cf. Lc 19, 42).
"E apedrejas aqueles que são enviados a ti" (Mt 23, 37), isto é, repeles de ti, pela dureza do coração, as inspirações e visitações da divina graça. Isaías XLVIII: "Sei que és duro, e a tua cerviz uma barra de ferro, e a tua fronte de cobre" (Is 48, 4). A barra de ferro significa a inflexível soberba (diz Agostinho: Erguer o pescoço é um sinal de soberba); a fronte de cobre, a irreverência. Por isso Ezequiel III diz: "Toda a casa de Israel tem a testa gasta e o coração duro" (Ez 3, 7).
"Todos os dias quis congregar os teus filhos, e não quiseste." Note-se que a justificação do homem dá-se por duas coisas, a saber: a própria deliberação e a inspiração divina: o Criador coopera com a sua criatura. Por isso, na obra da nossa justificação, é requerido o consentimento voluntário, como diz Isaías I: "Se quiserdes e me ouvirdes, comereis dos bens da terra" (Is 1, 19). O livre arbítrio nessa obra é indicado quando se diz: "Se o meu povo me ouvisse" (Ps 80, 14) etc. Porque se nós, nessa obra, nada fazemos, em vão imploramos o seu auxílio, e falsamente o chamamos cooperador. Porque uma coisa é fazer e outra é ajudar. O que é auxiliar, senão cooperar com quem obra? Bem entendeu tê-lo como auxiliador e cooperador aquele que disse: "Sede o meu ajudante e o meu libertador, Senhor, não tardeis" (Ps 69, 6). Todos os dias pedimos o seu auxílio, quando, nas orações diárias, dizemos: "Ajudai-nos, ó Deus, nossa salvação" (Ps 78, 9). Fica patente que essa obra é realizada a dois, na qual o Criador coopera com a sua criatura.
Essa obra é do nosso próprio esforço e da divina graça. Nada adianta alguém apoiar-se no livre arbítrio se não for apoiado pelo divino auxílio. A nossa justificação perfaz-se pela nossa própria deliberação e pela inspiração divina. Apenas querer a justiça é já ser justo. Somente de acordo a vontade deles chamamos, com razão, aos homens justos ou injustos, ainda que as suas obras ajudem o nosso juízo. Faze, pois, o que toca a ti, oferecendo a tua vontade, e Deus fará o que está da sua parte, infundindo a graça.
Note-se que que nem um anjo, nem um homem, nem o diabo pode tirar o livre arbítrio, nem Deus quer obrigar pela força. Mas, ó alma, ele benignamente quer reunir os teus filhos, isto é, os teus afetos, que estão dispersos pelas coisas temporais e vícios, para que habites unanimemente na casa (cf. Ps 67, 7): tu, nela, de boa vontade dever oferecer-te a ti mesma, e desejá-lo.

7. "Como a galinha reúne os seus pintinhos sob as suas asas." Note-se que a galinha faz-se fraca com os pintinhos fracos; chama-os para comer até ficar rouca; protegendo-os sob as asas, enfrenta asperamente a ave de rapina. Assim Cristo, Sabedoria do Pai, por nós, fracos, fez-se fraco. Por isso diz Isaías LIII: "Desejamo-lo, desprejado e último", isto é, o mais vil dos homens, "homem de dores e conhecedor da fraqueza" (Is 53, 2-3). Quem quiser consolar o fraco deve revestir-se do sentimento do fraco. Por isso o quarto livro dos Reis IV diz que Eliseu "deitou-se sobre um menino (morto), e a sua carne esquentou-se" (4Reg 4, 34). O deitar-se de Eliseu é a Encarnação de Cristo, da qual recebemos a fé e recuperamos a vida. Chamou-nos ao alimento da sua doutrina, clamando tanto que a sua garganta ficou rouca (cf. Ps 68, 4).
Note-se que o rouco não tem melodia na voz, mas fala gravemente, e assim não é muito bem ouvido. Assim hoje, a doutrina de Cristo não tem a melodia da adulação, porque não elogia os pecadores, não promete coisas temporais; mas soa gravemente, porque ensina a castigar a carne e despreza o mundo; por isso não é muito ouvida. Por isso lamenta-se em Jó XIX: "Eu chamei pelo meu servo e ele não respondeu; suplicava por ele com minha própria boca. A minha esposa sentiu horror ao meu hálito, e eu orava aos filhos do meu seio" (Job 19, 16-17). A esposa de Cristo são os clérigos, engravidados pela sua herança, que, antes dos outros, sentem horror ao hálito, isto é, à sua pregação, que procede do seu íntimo, porque, como disse Jó, a sabedoria é trazida dos lugares secretos (cf. Job 28, 18).
Do mesmo modo, para proteger-nos, estende os seus braços, como asas, na cruz, e com ásperos espinhos opôs-se ao diabo, que planejava a nossa captura. Com a coroa de espinhos, como um elmo, na cabeça, a cruz, como um escudo, no braço, o cravo, como clava, na mão, e, assim armado, expulsou o nosso adversário. A ele, pois, louvor e glória pelos séculos eternos. Amém.

III. SERMÃO ALEGÓRICO
8. "Farás um candelabro dúctil de ouro puríssimo, e os braços, cálices, botões e lírios do mesmo material. Seis braços sairão dos lados, três de um lado e três de outro" (Ex 25, 31-32). Isso em Êxodo XXV).
"Farás um candelabro" etc. Disso fala Mateus V: "Não se acende uma lanterna para pô-la sob o alqueire, mas sobre o candelabro, para que ilumine todos os que estão em casa" (Mt 5, 15). A graça do Espírito Santo, "lanterna que arde e ilumina" (Jo 5, 35), foi posta sobre o candelabro, isto é, Santo Estêvão, como disse Zacarias IV: "Vi, e eis um candelabro todo de ouro, e as suas lâmpadas sobre a sua cabeça" (Zach 4, 2). Essa lâmpada, ou lanterna, não foi posta sob o alqueire, isto é, o lucro temporal, mas iluminava todos os que estavam na casa, isto é, a Igreja. Por isso Lucas, na leitura de hoje, escreve: "Estêvão era cheio de graça e fortaleza, fazia prodígios e grandes sinais no povo" (Act 6, 8).
Ele foi o candelabro "de ouro puríssimo", que significa a sua áurea pobreza. Assim, pois, como está escrito no Gênesis II, o ouro daquela terra, isto é, Hevilat, que quer dizer parturiente, isto é, a Igreja primitiva, era ótimo. Mas ai!, que transformou-se em escória! Era "dúctil". Dúctil quer dizer batido. O bem-aventurado Estêvão também foi batido, pelas pedras, com os braços abertos para abraçar seus inimigos. Por isso: "Apedrejavam Estêvão, que rezava e dizia: Senhor, não lhes imputeis este pecado" (Act 7, 59-60). Acerca disso, há concordância no terceiro livro dos Reis XXI: "Conduziram Nabot, Jezraelita, para fora da cidade, e mataram-no apedrejado" (3Reg 21, 13). Porque ele não quisera que a sua vinha, herança dos seus pais, fosse transformada numa horta (cf. 3Reg 21, 2-3). Assim o bem-aventurado Estêvão foi apedrejado: "Expulsando-o da cidade, apedrejaram-no" (Act 7, 58); porque contradizia os judeus, que queriam transformar a Igreja primitiva numa horta, isto é, da observância das suas cerimônias e tradições.

9. Segue-se: "Seis braços sairão dos lados, três de um lado e três do outro". Os seis braços fazem-nos notar aquelas seis coisas que a Missa de hoje menciona sobre o bem-aventurado Estêvão, a saber: a fé, quando diz: "Escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo" (Act 6, 5), no que se nota o quanto a sua fé foi viva e formada; a graça e a fortaleza, quando acrescenta: "Cheio de graça e fortaleza" (Act 6, 8); a sabedoria e a ousadia na pregação, quando ajunta: "Não puderam resistir à sabedoria e ao espírito com que falava" (Act 6, 10), e ainda: "Homens de dura cerviz e incircuncisos de coração" (Act 7, 51) etc.; a oração pelos que o apedrejavam, quando diz: "Senhor, não lhes imputeis este pecado" (Act 7, 60). Vivia pela fé; comunicava com a graça; resistia com a fortaleza; instruía com sabedoria; confutava com o espírito de audácia; auxiliava com a oração.
Nesses braços havia cálices, botões e lírios. Pela concavidade do cálice, está simbolizada a humildade do coração; pela redondeza dos botões, a solicitude pelas necessidades fraternas; pelos lírios, a pureza do corpo. Eis o candelabro de ouro no tabernáculo do Senhor, iluminando a mesa da proposição, isto é, a Igreja ou a alma fiel: o protomártir Estêvão, insigne pelas virtudes, decorado com o sangue, triunfante nos céus. Por cujas preces nos conduza às alegrias eternas aquele que é bendito pelos séculos dos séculos. Amém.

IV. SERMÃO MORAL
10. "Farás um candelabro dúctil de ouro puríssimo." O candelabro designa a alma de qualquer fiel. Disso fala o Senhor a Aarão no livro dos Números VIII: "Quando puserdes as sete lanternas, o candelabro seja erguido na parte austral, para que as lanternas estejam voltadas contra a região boreal, para a mesa dos pães da proposição" (Num 8, 2). As sete lanternas são a graça do Espírito Santo, a fé no Verbo Encarnado, o amor ao próximo, a doutrina da palavra divina, a luz do bom exemplo, a reta intenção da alma e a constância nos propósitos.
Da primeiro diz Jó XXIX: "Reluzia a sua lanterna sobre a minha cabeça, e, à sua luz, eu caminhava nas trevas" (Job 29, 3). A lanterna sobre a cabeça ilumina, quando a graça ilumina a mente, e, então, nas treavs do presente exílio, vê claramente onde põe o pé da obra.
Da segunda lemos em Lucas XV: "Qual mulher, tendo dez dracmas, e perdendo uma, não acende a lanterna e revira a casa, até que a encontre?" (Lc 15, 8). As nove dracmas são as nove ordens dos anjos; a décima, Adão com a sua posteridade, que foi perdida quando foi expulsa do paraíso. Mas a "mulher", isto é, a Sabedoria de Deus Pai, "acendeu uma lanterna", quando colocou a luz da sua divindade na nossa frágil cabeça. E assim "revirou a casa", isto é, o mundo ou o inferno, "até encontrá-la".
Da terceira, nos Provérbios VI: "O mandamento é uma lanterna, e a lei, luz, e os golpes da disciplina são o caminho da vida" (Prov 6, 23). "Dou-vos um novo mandamento: que vos ameis uns aos outros" (Jo 13, 34), "é uma lanterna"; e na primeira epístola de São João II: "Quem ama o seu irmão permanece na luz, quem o odeia está em trevas" (1Jo 2, 10-11). E esta "lei" do amor, da qual dependem a lei e os profetas (cf. Mt 22, 40), é "luz". E "os golpes da disciplina são o caminho da vida", isto é, que conduz à vida. Dela escreve o Apóstolo aos Hebreus XII: "Toda disciplina, no presente, parece ser tristeza, e não alegria", eis os "golpes"; "depois, porém, dá aos que nela se exercitam um grande fruto de paz e justiça" (Hebr 12, 11), eis o "caminho da vida".
Da quarta, no Salmo: "A vossa palavra é uma lanterna para os meus pés" (Ps 118, 105), e Pedro, na segunda epístola I: "Temos uma profecia firmíssima, a qual bem fazeis em obedecer, e a qual é como uma lanterna iluminando um lugar com fumaça, até que clareie o dia e nasça um luzeiro nos vossos corações" (2Pt 1, 19).
Da quinta, em Lucas: "Estejam cingidos os vossos rins, e tenhais lanternas acesas nas vossas mãos" (Lc 12, 35). Gregório diz: Temos lanternas nas mãos, quando, pelos exemplos das boas obras, mostramos a luz aos nossos próximos.
Da sexta, em Mateus: "O teu olho é a lanterna do teu corpo. Se o teu ohlo for simples, todo o teu corpo estará iluminado" (Mt 6, 22). O olho é a intenção, o corpo, a obra. Se a intenção for simples, isto é, sem a dobra da fraude, toda a obra será iluminada, por que é iluminada pela lanterna da reta intenção.
Da sétima fala-se nos Provérbios, sobre a mulher forte, terminando assim: "A sua lanterna não se apagará de noite" (Prov 31, 18). Como se dissesse: A obscuridade da tentação diabólica não apagará a luz da alma constante.
Essas sete lanternas devem ser postas sobre a alma, para que "esteja voltada contra a região boreal", isto é, contra o vento norte, isto é, o diabo, para que a alma assim iluminada descubra as astúcias de Satanás, e cuide-se; iluminem também a "mesa dos pães da proposição", que significa a conduta de cada fiel, da qual, se a refeição da alma for celestial, será oferecido tudo aquilo que for iluminados pelas ditas lanternas, nas trevas da presente cegueira. E note-se que este "candelabro" o Senhor manda que seja "erguido na parte austral", não na ocidental. A parte austral é a vida eterna: "Deus virá do sul", diz Habacuc (Hab 3, 3). A alma de cada fiel, quando eleva-se fazendo algum bem, eleve-se na parte austral, para que, o que quer que faça, não o faça em vão, mas para a glória celestial. Portanto, "farás um candelabro".

11. Segue-se: "Dúctil". Pelo martelo da contrição produz-se e extende-se a alma no amor do Redentor, que cresce com os golpes, dilata-se com a dor, porque a paciência alegra-se nas durezas (Lucano). Semelhantemente, lemos no Eclesiástico XX: "O sábio, na palavra, faz-se sábio" (Eccli 20, 29). Quando ele se golpeia com a palavra da própria acusação ou confissão, produz-se a si mesmo no amor de Deus. E, visto que pelo golpe da contrição vem ao coração a pureza, ajunta-se: "De ouro puríssimo". Dele se fala no Apocalipse XXI: "Essa cidade é de um ouro puro, semelhante a um vidro puro" (Apoc 21, 18). A alma do justo, sede ou cidade da sabedoria, é chamada ouro puro, porque resplende pela pureza do pensamento; e se, vez por outra, pela fragilidade da condição humana, recebe manchas, imediatamente as mostra na confissão, e assim aproveita para o amor de Deus e do próximo.
Por isso continua: "Seis lanternas sairão dos lados" etc. As seis lanternas no cantelabro são como certos braços do amor que há no homem justo, com o qual a alma abraça Deus e o próximo. Dos braços com que abraça Deus fala-se no Deuteronômio VI e em Lucas X: "Ama o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e com todas as tuas forças" (Deut 6, 5; Lc 10, 27). Agostinho assim explica: De todo o coração, isto é, com a inteligência sem erro; de toda a mente, isto é, com a memória sem esquecimento; de toda a alma, isto é, com a vontade sem contrariedade.
Ainda, os braços com que a alma abraça o próximo são esses: perdoar o pecador, corrigir o errado, alimentar o faminto. Desses braços saem cálices, botões e lírios. O cálice é a graça da doutrina celestial, da qual bebem os amigos e se embriagam os queridos. Esse é o cálice de prata de José, colocado no saco de Benjamim (cf. Gen 44, 2. 12), isto é, no coração do homem justo. O botão é a revolução do pecado na confissão.
Por isso diz Isaías XXIII: "Toma a cítara", isto é, a confissão, "contorna a cidade", isto é, a tua alma ou vida, para que tudo revires, e nada te fique escondido, "canta bem", acusando-te a ti mesmo, "repete o cântico", culpando-te, chorando, "para que se lembrem de ti" (Is 23, 16) diante de Deus. Faze como o cantor, que canta à porta dos ricos, para receber algum benefício. Nos lírios, a gloriosa e suave companhia da angélica bem-aventurança. O amado se apascenta entre os lírios (cf. Cant 2, 16), e diz no Apocalipse III: "Aquele que vencer será vestido com vestimentas brancas" (Apoc 3, 5). Como o anjo da Ressurreição, que apareceu coberto com uma estola branca (cf. Mc 16, 5).
Conduza-nos para tomarmos aquela estola, aquele que é bendito pelos séculos eternos. Amém.


Traduzido por nós de http://www.santantonio.org/portale/sermones/indice.asp?ln=LT&s=0&c=0&p=0