A VIDA EM BARTRÉS
Quanto mais suave corre a vida em Bartrés para a menina! O sítio Lagües é extenso e farto. A dona, que amamentara Bernadette, outrora, no tempo em que os Soubirous eram remediados, não a trata como a pastorinha vulgar. Aliás, a menina que é fraquinha, aproveita-se da abundância campesina.
Pela manhã a antiga ama põe-lhe na cesta um naco de toucinho com uma tigela de sopa e pirão de milho. Ei-la partindo, ao alvorecer, com seu cão Pegu, ajuizada, compenetrada da responsabilidade do ofício, com sua varinha que lhe serve de emblema.
A trezentos metros da casa, debaixo de um capão de grandes carvalhos, a meia encosta da rampa que corre ao longo da estrada de Lourdes, está o curral das ovelhas. É uma pequena abegoaria ou granja, abrigada por aquele capão que a esconde.
Seu lindo teto de colmo apertado e quente parece pender do lado oposto ao caminho e descer até o chão. Mas é a terra que surge a pruma naquele ponto e toca no teto, tão abrupta é a ladeira. O pezinho da pastorita, tão seguro quanto o de seus cordeiros, galga-a dançando. Fica, porém, levemente esfalfada
porque é asmática.
Puxa a porta feita de poucas tábuas. Uma baforada quente dá-lhe no rosto, e na escura nave onde penetrou um raio de luz, percebe a menina que as garupas rosadas fazem meia volta num movimento giratório e que o povinho por ela governado vira para sua pessoa uns dez ou doze rostos oblongos, olhos esquisitos, toucados de orelhas compridas, oblíquas e pendentes por um topete de lã muito fofa.
Um gesto da chibata e o redil se esvazia; soltando seu concerto de balidos de tons vários, as alimárias se espalham pelo capinzal. Trava-se sem dúvida, conversas entre elas e sua princesazinha.
Entendem-lhe a fala dialetal e Bernadette lhes conhece todas as vontades, e não troca as caras delas, que a nós parecem todas iguais com seu olhar um tanto bobo e sua expressão, mitológica. Os carneiros adultos e as ovelhas, que são as mães de família, inspiram-lhe certa discrição. Mas está muito à vontade
com os cordeirinhos. Apraz-lhe enfiar as mãozinhas na lã densa, segurá-los pelas juntas rígidas e longas
e sentá-los sobre os joelhos.
E não eram de papelão como os vossos, ó filhos de pais ricos!
Não há motivo de enfastiar-se. O pastorear faz-se ora aqui, ora acolá. " Os Lagües, escreve João Barbet, possuem vastas terras em vários lugares ".
Mas a paisagem é sempre a mesma nas colinas que cercam Bartrés, e os Pireneus azulados sempre surgem ao longe. Quando toca o meio-dia, Bernadette ajoelha-se para rezar o Angelus, depois tira a tampa da cestinha e vai estendendo o toucinho sobre o pão de centeio. Os dentes dos carneiros não param desde cedinho. Mas ela também está com fome. Pegu látelhe à roda. Bernadette, rindo-se, atira-lhe bocados de polenta que o cão abocanha no ar.
Quando a tarde fica parecendo longa, Bernadette esgaravata o chão à cata de pedrinhas. Logo que conseguiu juntar um bom montezinho delas, sai à procura de um local plano para aí construir um altarzinho à Virgem: trabalho de paciência, pois, falta o cimento. Mas Bernadette é habilidosa. Uma cruz feita de dois gravetos encima a construção.
Só falta encontrar flores para orná-la. Puxa então do bolso o terço, que vai desfiando conta após conta, diante do altarzinho mal seguro.
É assim que durante seus dias de solidão vai procurando uma companheira divina com quem possa comunicar seus pensamentos infantis.
Mas eis que o cordeirinho mais querido, o benjamim, ciumento dessa desatenção, vem correndo num galope desajeitado.
- " Dize-nos, Bernadette, por que é que preferes esse, que a nós nos parece igual aos demais?
- " É porque é o mais pequeno e eu gosto de tudo o que é pequeno ". Recomeça a brincadeira. Bernadette provoca o cordeirinho com a chibata: este ergue-se nas patas trazeiras com a testa para a frente. Bernadette dá-lhe um empurrão soltando uma gargalhada. Renova-se o ataque; desta feita o cordeiro, à fula, investe contra o altar e o desmancha.
Lá vai perdido todo o paciente trabalho.
" Eu não o castigava, confessará mais tarde a menina evocando as recordações de Bartrés. Não só isto, mas ainda eu lhe dava de comer na mão pão e sal de que gostava tanto! "
Na hora solar, que lhe é muito familiar, Bernadette levanta-se e com um gesticulado da chibata dá o sinal do regresso. Pegu fica alertado; rodeia e tange o rebanho. A menina vai à testa do cortejo e reconduz seu povinho ao curral. Ainda alguns beijos no focinho rosado do cordeirinho preferido, umas carícias aqui e acolá, pois Bernadette é menina meiga, e a porta fica fechada com cadeia e cadeado.
1 de dezembro de 2021
A Humilde Santa Bernadette - Colette Yver
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